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VI

O
comboio levou o dia todo junto ao rio e partiu só quando o sol se deitava.
Iegôruchka estava novamente esticado sobre um fardo. A carroça gemia docemente
e oscilava. Em baixo caminhava Pantelei, batendo os pés, dando palmadas nas
ancas e resmungando. No ar, trissava como na véspera a música da estepe.

Iegôruchka,
deitado de costas, com as mãos na cabeça, contemplava o céu. Viu incendiar-se,
depois extinguir-se o poente; os anjos da guarda, cobrindo o horizonte com as
suas asas de ouro, preparavam-se para dormir. O dia passara risonhamente; a
noite se anunciava calma e agradável; eles bem poderiam ficar em paz em sua
casa, no céu… Iegôruchka viu o firmamento escurecer, o nevoeiro descer a
pouco e pouco sobre a terra e iluminarem-se uma após outra todas as estrelas.

Quando
se observa por muito tempo o céu profundo, sem se desviar os olhos, nossas
idéias e nossa alma fundem-se na consciência de nossa solidão; sente-se a gente
irreparavelmente só e tudo aquilo que era tido antes na conta de familiar e
caro, afasta-se indefinidamente e torna-se sem valor. As estrelas que do alto
do céu tremeluzem há milhares de anos, o próprio céu incompreensível, e a
névoa, indiferentes todos à curta vida do homem, acabrunham a alma
com o seu silêncio. Quando se fica a sós com eles e tudo se faz para
compreender sua razão de existir, a idéia da solitude, que aguarda a cada um de
nós no túmulo, vem ao espírito e a essência da vida aparece, desesperada,
terrível…

Iegôruchka
pensou em sua avó que dormia agora no cemitério, embaixo das cerejeiras.
Recordou-a deitada no esquife, com as moedas de cobre sobre os olhos; lembrou
em seguida como a cobriram com uma mortalha e a desceram à cova. Lembrou-se do
ruído seco das pás de terra a cair sobre o caixão… Imaginou sua avó
nesse caixão estreito e escuro, abandonada por todos, sem ninguém que a
socorresse. Sua imaginação mostrava-lhe a avòzinha acordando, não compreendendo
onde se achava, querendo livrar-se da mortalha, pedindo auxílio e, finalmente,
arrasada de terror, morrendo uma segunda vez. Imaginou mortos sua mamãe, o
padre Cristóforo, a condessa Dranítski, Salomão; contudo, mais se esforçava por
figurar-se a si próprio dentro da tumba escura, longe de casa, sem socorro, e
morto, e menos compreendia tudo aquilo. Pessoalmente não admitia para ele a
possibilidade de morrer e como que tinha o sentimento de que não morreria
nunca…

Quando
chegasse à idade de morrer, Pantelei marcharia à altura de seu cavalo, e
começaria a evocação de velhos pensamentos:


Não há nada a dizer, murmuraria… eram pessoas de bem… Tinham levado o
garoto para aprender, mas como se acha ele lá longe, a gente não o ouve
dizer.  Em Slavianoserbsk, digo, não há estabelecimentos que nos
conduzam até o grande espírito… não há, é verdade… E o garoto vai bem; nada
a dizer… Crescerá e ajudará seu pai… Tu, Iégory, agora és pequenino, mas
quando fores grande, sustentarás teu pai e tua mãe. Isto é lei de Deus…
Honrarás teu pai e tua mãe… Também eu, sim, tinha filhos; mas morreram
queimados… E minha mulher morreu queimada com eles.. . É verdade, na véspera
de Heis minha isba pegou fogo… Eu não estava em casa; tinha ido a
Orei… sim, a Orei… Maria saltou para fora, mas se lembrou de que os meninos
dormiam dentro da isba; então voltou depressa e morreu com eles…
Sim… no dia seguinte, encontraram-se apenas os ossos.

Por
volta da meia-noite, o carreiro e Iegôruchka estavam novamente acocorados em
torno de uma pequena fogueira. Enquanto ardiam junto deles as altas ervas,
Kiriúchka e Yássia foram buscar água, não se sabe onde, numa pequena nascente.
Sumiram nas trevas, mas durante todo o tempo escutava-se a sua conversa e o
tinido de seus baldes; portanto a fonte devia estar muito próxima. O clarão do
braseiro espalhava sobre a terra uma grande mancha rubra e vacilante. Embora a
lua fulgisse, tudo por trás da mancha rubra parecia dum negro opaco. A luz
batia nos olhos dos carroceiros e eles só viam unia parte da estrada. Na obscuridade,
esboçavam-se a custo visíveis, como colinas de contornos imprecisos, as
carroças com os fardos e os cavalos. A vinte passos do braseiro, no limite da
estrada e do campo, eleva va-se uma cruz de túmulo, de madeira, inclinada para
um lado. Quando a fogueira ainda não estava acesa e podia-se enxergar ao longe, Iegôruchka tinha notado
uma outra velha cruz de madeira, igualmente inclinada, que estava do outro
lado da estrada.

De volta da
fonte, Kirúichka e Vássia encheram o caldeirão e o colocaram ao fogo. Stiôpka,
com a colher amassada, ocupou seu posto à fumaça, junto do caldeirão, e
observava pensativamente a água, esperando que aparecesse a ferrara. Pantelei
e Eme-Jiano, sentados lado a lado, calavam-se, pensando não se sabe em que. Dimov deitado sobre a barriga, a cabeça apoiada nos punhos, espiava o fogo. A sombra de
Stiôpka bailava em cima dele, e seu belo rosto ora se cobria de sombra, ora
tingia-se de púrpura… Kiriúchka e Vássia, à distância, catavam ervas secas e
casca de bétula para o fogo. Iegôruchka, de mãos nos bolsos, estava de pé ao
lado de Pantelei e olhava o fogo a consumir a erva.

Todos
descansavam, e pensando em não se sabe o que espiavam às escondidas a cruz
sobre a qual dançavam manchas vermelhas. Numa tumba isolada há qualquer coisa
de triste, de melancólico, de poético ao mais alto grau. Ouve-se o seu silêncio
e sente-se, nesse silêncio, a presença da alma de um desconhecido, deitado sob
a cruz. Será que essa ahna se encontra bem na estepe? Não a estrangula a
angústia durante uma noite de luar ? A estepe, perto da tumba, parece triste,
abatida e pensativa; a vegetação parece mais lúgubre; e tem-se a impressão de
que os grilos gritam mais discretamente… Não existe um transeunte que não
reze pela alma solitária e não dê as costas à tumba até que ela fique bem longe
atrás e mergulhada no nevoeiro…

—  Avô,
perguntou Iegôruchka, por que há aquela cruz ?
Pantelei contemplou a cruz, depois virou-se para Dimov e inquiriu:

—  Micola
(16), não foi ali que os ceifeiros assassinaram os mercadores ?

Dimov
ergueu-se indolentemente no cotovelo, olhou a estrada e disse:

—  Foi ali exactamente…

Fez-se
silêncio. Kiriúchka juntou erva seca, fez uma bola e lançou-a debaixo do
caldeirão. O fogo flamejou mais vivo. O fumo negro envolveu Stiôpka e, na
penumbra, sobre a estrada, por trás das carroças, perpassou a sombra da cruz.

—    Sim, foi ali que os mataram… afirmou tristemente
Dimov. Os mercadores, pai e filho, iam vender ícones. Pararam não longe daqui,
na posta que hoje em dia pertence a Ignate Fômitch. O velho havia bebido seu
bocado; vangloriou-se de possuir bastante dinheiro consigo. Os mercadores, é
coisa conhecida, falam mais do que deveriam falar.. . Não se podem conter de
mostrar a todo o mundo aquilo que têm. Ora, naquele dia, alguns ceifeiros
dormiam na posta. Escutaram as gabolices do mercador e prestaram atenção.

—    Ah, Senhor! Virgem Soberana! suspirou Pantelei.

—    No dia seguinte, ao nascer do sol, os mercadores
dispuseram-se para a partida. Os ceifeiros juntaram-se a eles.

(16)    Maneira familiar de Nicolai, usada pelos
campóníos.

—  Vossas Senhorias, propuseram, façamos a viagem juntos! Será mais
divertido e menos arriscado, porque o local é deserto…

Os mercadores, para não estragar as
imagens, iam a passo; isto convinha muito bem aos ceifeiros. Dimov ajoelhou-se
e espreguiçou-se:

—    Sim, continuou ele bocejando, a princípio não houve
nada. Mas quando os mercadores chegaram a este lugar, os ceifeiros os agrediram
com as suas foices. O filho era valente: arrancou a foice a um deles e os
enfrentou bravamente… Mas como era natural ganharam os ceifeiros; eles eram
oito. Retalharam os mercadores, sem deixar um só pedaço intacto em seus
corpos. Feita a façanha, arrastaram os dois homens para a estrada e colocaram o
pai de um lado, o filho do outro. Em frente dessa cruz, do outro lado da
estrada, existe uma outra… Não sei, mas devia estar ali.  Não é vista daqui.

—   
Existe sim, confirmou Kiriúchka.

—   
Dizem que eles acharam muito pouco
dinheiro.

—    Muito pouco, corroborou Pantelei. Uma centena de
rublos.

—    Sim, e três dos ceifeiros morreram em seguida, pois o
mercador jovem também os havia atingido com diversas foiçadas… Perderam muito
sangue… e a um deles o rapaz decepou um braço. Eneontraram-no perto de
Kúrikov, sobre um talude; estava apoiado nos calcanhares, a testa entre os
joelhos, como se sonhasse; examinaram-no, mas ele não tinha mais alma; estava
morto. ..

—    Foi achado pelas gotas de seu sangue… informou
Pantelei.

Todos olharam a cruz e restabeleceu-se o silêncio. De
alguma parte, provavelmente da pequena nascente, fez-se ouvir uni grito
melancólico de pássaro: "Eu durmo! eu durmo! eu durmo!"

—    Há muita gente má neste mundo, sentenciou Emeliano.

—     
Muita, muita! afirmou Pantelei, e ele
aproximou-se do fogo com uma expressão de terror. Vi tanta, tanta coisa em
minha vida; tenho visto muitos santos e justos; mas os pecadores que tenho
visto São sem conta… Salva-nos, tem
piedade de nós, Rainha Celeste!… Lembro uma vez, faz trinta anos, talvez
mais, eu conduzia um negociante de Moreht-ehansk. O homem era bom, bonito e
tinha dinheiro … o tal negociante. Era um bom sujeito… Viajávamos e
paramos para passar a noite numa posta. Na Rússia as postas não são como nesta
terra (17). Lá as postas têm os teetos como os alpendres, ou digamos mesmo,
como as granjas das nossas boas fazendas. Só que as granjas são mais altas.
Paramos e tudo ia bem, meu negociante num pequeno cômodo, eu ao lado dos
cavalos, como convém. Então, irmãos, rezei minhas orações antes de deitar e saí
para dar uma voltinha pelo pátio. A noite estava negra; não se via nada, era
inútil olhar. Andei alguns passos, como por exemplo daqui até as carroças, e vi
brilhar um fogo… Que história!… Os proprietários, creio, estavam deitados
havia muito tempo; e, salvo eu, não havia ali outros viajantes. Donde vinha
aquele fogo ? Assaltou-me a dúvida. Cheguei-me mais perto… em direção do fogo… Tem piedade de nós, Senhor, salva-nos, Rainha
Celeste!… Olho e, ao rés do chão, vejo uma pequena janela gradeada… na
casa… Deitei-me na terra e espiei… E quando dei com a coisa, um frio
percorreu-me todo o corpo…

(17)    Não nos devemos esquecer que a cena se passa na
Pequena Rússia.

Kiriúchka,
procurando não fazer bulha, lançou um novo punhado de erva ao fogo. Quando a
erva acabou de estalar e pipocar, o velho prosseguiu:

—    Espiei: era um subterrâneo sombrio e terrível. Sobre
um barril ardia uma pequena lanterna. No meio do subterrâneo achavam-se uns dez
homens de camisas vermelhas. De mangas arregaçadas, afiavam compridos
facões… Eh! eh! tínhamos caído num covil de ladrões!… Que fazer 1 Corri
ao quarto do negociante, acordei-o de mansinho e disse-lhe:

—    Não te espantes, compadre, mas estamos em maus
lençóis…   Caímos num antro de salteadores.

Ele transfigurou-se e murmurou:

—  Agora
que vai ser de nós, Pantelei? Tenho muito dinheiro, pertencente a órfãos…
Deus é o senhor de minha alma; não tenho medo de morrer; mas, tenho medo de
perder o dinheiro dos órfãos!

Que
tínhamos a fazer? As portas estão fechadas, não se pode sair, nem se ir embora;
se houvesse uma paliçada, ainda se poderia saltá-la, mas o pátio era coberto
por um teto.

Digo eu:


Não tenhas medo, negociante, e reza a Deus. Talvez o Senhor não queira fazer
mal aos órfãos. Fica e finge não saber de nada. Durante este tempo procurarei
descobrir qualquer coisa…

Pois
muito bem!… Pedi a Deus que me esclarecesse o espírito. Trepei no carro e
docemente, docemente, para que ninguém ouvisse… comecei a arrancar a palha
do teto. Fiz um buraco e saí… Em seguida saltei do teto e corri pela estrada
enquanto tive fôlego. Corri, corri e fiquei mais morto do que vivo… Talvez
tivesse feito cinco ver st as numa só estirada, talvez mais… É preciso
dar-se graças a Deus: avistei um povoado. Corri para uma isba e comecei
a bater na janela: "Ortodoxos, digo, eis o que se passa, não deixem
perecer uma alma cristã…" Acordei todo o mundo… Os mujiques reuniram-se
e vieram comigo, um com uma corda, outro com um cajado, outro com um forcado…
Quebramos a porta-cocheira da posta e voamos ao subterrâneo.

Os
bandidos já haviam amolado os facões e preparavam-se para cortar a cabeça do
negociante. Os mujiques os amarraram, a todos, e os conduziram às
autoridades. O negociante, cheio de alegria, deu-lhes três notas de cem rublos,
a mim cinco peças de ouro francesas e inscreveu meu nome em seu livro de
missas. Dizem que se acharam depois no subterrâneo ossadas humanas… Sim,
ossadas humanas… Roubavam as pessoas, em seguida tiravam-lhes a vida, para
que não ficassem vestígios… Foram punidos pelo carrasco de Morchtchansk.

Pantelei
terminou sua história e percorreu o auditório com os olhos. Todos mantinham-se
calados e o fitavam. A água já fervia e Stiôpka, com a esciuna-deira, retirava
a espuma.


Está pronto o toicinho? perguntou Kiriúchka a meia voz.

—  Espera um pouco…   Já, já.

Stiôpka,
sem tirar os olhos de Pantelei e como receando que ele começasse a contar
alguma coisa sem ele, foi. a correr até as carroças.

Voltou
logo com um pilão de madeira e pôs-se a esmagar o toicinho.

—    Uma outra vez eu viajava com outro mercador, continuou
Pantelei a meia voz, como dantes, e sem levantar os olhos. Chamava-se, se não
me falha a memória, Piôtre Grigórovitch. Era um belo sujeito… esse
mercador… Paramos do mesmo modo numa posta… ele num pequeno cômodo, eu
junto aos cavalos … Os donos, marido e mulher, pareciam bons, meigos; seus
agregados, também. No entanto, irmãos, não pude dormir; meu coração pressentia
alguma coisa; pressentia, eis tudo. A porta-coeheira estava aberta e havia
muita gente pelos arredores, e contudo eu sentia medo, não me sentia à vontade.
Todos dormiam havia muito tempo; era noite fechada; cedo nos deveríamos
levantar. Deitado sozinho sob o carro, tal qual um mocho eu não fechara os
olhos um só instante… Eis senão quando escuto, irmãos:
"top-top-top". Alguém deslizava perto do carro. Levanto a cabeça e
vejo uma mulher em fralda de camisa, de pés nus…

—   
De que precisas, mulher?
perguntei-lhe.

Ela
estremece da cabeça aos pés; seu rosto está desfigurado.

—  Levanta,
diz ela, compadre. Que desgraça! Os patrões estão mal intencionados. Querem
acabar com a vida de teu negociante… Escutei o patrão e a patroa falarem em
voz baixa.

Não
fora em vão que meu coração me havia prevenido.

—   
Quem és ? quis saber.

—   
Sou a cozinheira.

—   
Bem…

Saí
de debaixo do veículo e fui ver meu mercador. Despertei-o e lhe disse:
"Piôtre Grigórovitch, as coisas não vão bem. Terás tempo para dormir depois
; agora trata de vestir-te e, para evitarmos cenas desagradáveis, tratemos de
nos pôr ao fresco o mais depressa possível…" Começava a vestir-se quando
a porta se abriu e bonito. .. Olho. Mãe do céu! Entram em nosso quarto o
patrão, a patroa e três empregados. . . O negociante tem muito dinheiro, disseram
eles com os seus botões; repartiremos entre nós… Todos os cinco trazem uma
comprida faca na mão… Um facão… O patrão fecha a porta e diz: "Façam
suas orações, viajantes… Se gritarem, não lhes deixaremos sequer rezar antes
de morrer!"

Rezar
como ? De medo, tínhamos a garganta apertada. O negociante pôs-se a
chorar e disse: "Ortodoxos! vocês decidiram matar-me porque querem o
dinheiro meu… Que seja assim! Não sou o primeiro nem o último; há inúmeros
negociantes assassinados nas postas. Mas por que, irmãos cristãos, matar o meu
cocheiro? Que necessidade de lhe fazer sofrer por minha causa?" Disse isto
com a voz comovida. Mas retruca o dono da posta: "Se o deixarmos vivo,
será o primeiro a nos denunciar; tanto faz matar um como dois. Para sete
pecados, basta uma expiação. (18)   Tratem de rezar, é o que lhes podemos
conceder; não adianta conversa!" Pusemo-nos de joelhos um ao lado do
outro; choramos e rezamos. Ele lembrou-se dos filhos; eu era jovem naquele
tempo; queria viver… Olhamos a imagem e oramos com piedade tamanha que até
hoje, ao recordar-me, vêem-me as lágrimas aos olhos… Olha-nos a patroa e
diz: "Filhos de Deus, não vão para o outro mundo com má recordação de nós
e não peçam ao Senhor que nos puna! O que fazemos é por necessidade!"
Rezamos, rezamos, choramos, choramos; e Deus nos ouviu, ou por outra, teve pena
de nós. No momento exato em que o patrão segurava o negociante pela barba para
passar-lhe a faca pelo pescoço, alguém, inesperadamente, bate à janela. Estremecemos
e as mãos do patrão caíram… Alguém batia à janela, gritando: "Piôtre
Grigórovitch, estás aí í Apronta-te, vamos partir!" O patrão, vendo que
vinham buscar o negociante, teve medo e pôs sebo nas canelas. Nós corremos mais
do que depressa para o pátio; atrelamos e nunca mais nos viram ali.

—    Quem tinha batido na janela? perguntou Di-mov.

—    Provavelmente um santo de Deus ou uni anjo… pois não
podia ser mais ninguém… Quando saímos do pátio, não havia um só homem na
rua…  Foi o poder divino!

Pantelei
contou ainda outras coisas e em todas as suas narrativas as "longas
facas" tinham sempre importante papel e sentia-se uma forte dose de invenção.
Teria ele ouvido essas histórias de outra pessoa ou as criara ele mesmo naquele
passado distante e, já fraca a memória, misturava agora o real com a
imaginação, não mais sabendo distinguir um do outro ? Talvez tudo
isso ao mesmo tempo. A vida é terrível e misteriosa, e por terrível que seja a
narrativa que se faz na Rússia, embelezando-a com façanhas de ladrões,
grandes facas e milagres, ela parecerá sempre verdadeira à alma dos ouvintes.
A cruz na estrada, as silhuetas rechonchudas dos fardos, o acaso que agrupou
essas criaturas em torno do braseiro, tudo era por si mesmo tão maravilhoso e
tremendo, que o fantástico do que tinha sido ou do que não tinha sido não
entrava em linha de conta, empalidecia e se confundia com a vida.

(18)    Provérbio russo.

Todos
comiam do caldeirão, mas Pantelei, sentado à parte, comia sua papa numa
escudela de madeira. Sua colher não era igual às dos demais: era de cipreste e
terminava numa cruz. Iegôruchka, vendo-a, lembrou-se de sua lamparina e
perguntou docemente a Stiôpka:

—   
Por que o avôzinho senta à parte?

—    Ê um velho-crente, murmuraram Kiriúchka e Stiôpka,
entreolhando-se como se falassem de uma fraqueza ou de um vício secreto.

Calaram-se
todos e pensavam. Depois das histórias terríveis, não se queria mais falar em
coisas banais.

De
repente, em meio ao silêncio, Vássia inteiriçou-se e, tendo fixado seus olhos
ternos num ponto, pôs-se a escutar.

—   
Que há? indagou Dimov.

—   
Vem aí um homem, respondeu Vássia.

—   
Onde o vês ?

—   
Lá ao longe…   Há um ponto
branco.

Onde olhava Vássia não
se via mais do que trevas todos se puseram a escutar, mas nada ouviram igualmente.

—  Vem pela estrada 1 insistiu Dimov.
Transcorreu um minuto de silêncio.

—  Talvez
seja o negociante enterrado aqui que passeia na estepe, opinou Dimov.

Todos
olharam para a cruz, depois entre si e, finalmente, desataram numa risada: tiveram
vergonha de seu medo.

—  Por
que havia de passear? observou Pantelei.
Apenas passeiam assim os endemoninhados… Mas os negociantes… os negociantes
receberam a coroa dos mártires…

Ouviram-se
passos; alguém caminhava rapidamente.

— Ele traz alguma coisa, informou Vássia.

Ouviu-se
o capim e as ervas estalarem sob os passos do viajante. Enfim escutaram-se as
passadas bastante perto. Alguém tossiu; a luz piscou, pareceu abrir-se; caiu o
véu e os carroceiros viram um homem diante de si.

Seria
porque o fogo brilhasse ou porque todos quisessem ver principalmente o seu
rosto, que todos viram não o seu físico, não as suas vestes, mas o seu
sorriso. Era um sorriso extraordinariamente bom, amplo e claro como o de uma
criança que desperta; um desses sorrisos comunicativos aos quais é difícil não
se corresponder imediatamente com um outro sorriso.

O
desconhecido, examinado, mostrou ser um homem de uns trinta anos, nem belo,
nem extraordinário. Era um pequeno-russo de alto porte, nariz longo, pernas e
braços compridos. Tudo nele parecia longo e apenas o pescoço era-lhe tão curto
que o fazia parecer corcunda. Trajava uma camisa branca de gola bordada, largas
calças brancas e botas novas. Parecia um elegante, comparado aos carroceiros.
Tinha nas mãos uma coisa branca, grande e, ao primeiro exame, estranha. Atrás
do homem despontava o cano de uma carabina, também longa.

Saído
das trevas para aquele círculo luminoso, parou como deslumbrado e, durante meio
minuto, olhou como se quisesse dizer: "Vejam que sorriso eu tenho".
Depois dirigiu-se ao braseiro, sorriu ainda mas limpidamente e disse:

—   
Bom apetite, irmãos!

—   
Sê benvindo, respondeu Pantelei
por todos.

O
desconhecido colocou ao lado do braseiro o que trazia nas mãos: uma grande
abetarda morta; depois saudou mais uma vez.

Todos se acercaram da abetarda e a
examinaram.

—    Bela ave. Com que a mataste? interrogou Di-mov.

—    Com chumbo graúdo. Com o miúdo, não seria possível;
ela não deixa ninguém se aproximar… Querem comprá-la, irmãos? Deixo-a por vinte
copeks.

—    Para que nos serviria? Assada é boa, mas cozida, é
dura; não se pode usar os dentes.

—    Ah! que aborrecimento! Devo levá-la à casa dos barines,
na fazenda grande; dão-me cinqüenta copeks; mas é longe, dista
quinze verstas.

O desconhecido sentou-se e colocou a arma
perto dele. Parecia sonolento, cansado; sorria, franzia os
olhos por causa do fogo e tinha-se a impressão de que pensava em alguma coisa
muito agradável. Deram-lhe uma colher, ele pôs-se a comer.

—  Quem és?

O
desconhecido não compreendeu a pergunta. Ficou sem responder e nem sequer
olhou para Dimov. Aparentemente esse homem risonho não sentia o gosto do que
comia pois mastigava maquinalmente, preguiçosamente, levando à boca a colher ou
demasiado cheia ou quase vazia; não estava ébrio mas, na sua cabeça,
agitava-se alguma coisa de sensacional e louco.

—   
Estou perguntando quem és, repetiu
Dimov.

—    Eu? disse o desconhecido, sobressaltando-se:
Constantino Zvônik, de Rôvno…  a quatro léguas

daqui.

E
querendo mostrar logo de princípio que ele não era um mujique como os
outros, mas alguém melhor, Constantino tratou de acrescentar:

—   
Temos colméias e criamos porcos.

—   
Vives com teu pai ou possuis terra
à parte ?

—    Não, vivo só, agora… Moramos separados. Casei-me
este mês, depois de São Pedro; agora sou um homem casado!…   Faz hoje dezoito
dias.

—    Boa coisa! declarou Pantelei. Uma mulher, é bom; é a
bênção de Deus!

—    Sua jovem esposa dorme e ele a trocar pernas na
estepe! disse Kiriúchka a rir. Que malandro!

Constantino,
como se o houvessem picado no lugar sensível, estremeceu, pôs-se a rir e
enrubesceu…

—  Eh!
senhor, é pior : ela não está em minha casa! disse retirando vivamente a colher
da boca e olhando todos os carroceiros, alegres e admirados. Ela não  está lá!
Partiu para a casa da mãe por dois dias.
Palavra como partiu!  Estou solteiro.

Constantino
fez um gesto vago com a mão e sacudiu a cabeça. Queria continuar a pensar mas
a alegria que lhe aflorava ao rosto impedia-o disso. Como se estivesse mal
sentado, tomou outra posição, riu e repetiu o gesto. Tinha vergonha de
transmitir a estranhos seus risonhos pensamentos, mas queria ao mesmo tempo,
irresistivelmente, distribuir com outros sua alegria.

—    Partiu para a casa de sua mãe em Demídovo, disse
ruborizando-se e mudando a carabina de lugar. Voltará amanhã. .. Disse que
estaria de volta para jantar.

—   
B tu te aborreces? perguntou-lhe
Dimov.

—    Sim, meu Deus! Como poderia ser de outro modo ?
Acabamos de nos casar… ela se vai embora               E como é viva, Deus
do céu!   É tão boa,

tão bela; gosta tanto de
cantar; é pólvora da boa! Quando está presente, minha cabeça roda, e sem ela é
como se eu tivesse perdido alguma coisa. Peram-bulo pela estepe feito um
imbecil. Caminho desde o almoço; é uma coisa incrível.

Constantino
esfregou os olhos, contemplou o fogo e pôs-se a rir.

—   
Tu a amas? indagou Pantelei.

—     
É tão boa, tão bela, repetiu Constantino
sem escutar; uma tão boa dona de casa, com tanto espírito e bom senso que é
difícil encontrar-se outra igual, nas mesmas condições, em toda a provincial.
.. Partiu… É que ela se aborrece; sei disso! Conheço-te, minha pega! Disse
ela que viria amanhã para o jantar… Eis a história!… exclamou Constantino,
quase a gritar, elevando de repente a voz e mudando de posição. Agora ela me
ama e se aborrece ; e antes não queria casar-se comigo.

—   
Agora come, disse Kiriúchka.

—    Não queria casar-se comigo, continuou Constantino.
Tive que lhe fazer a corte três anos seguidos. Vi-a na feira de Kalátchik.
Amei-a com todas as forças até à loucura! Eu estava em Rôvno, ela em Demídovo,
a vinte e cinco verstas um do outro, e eu não sabia mais o que fazer.
Enviava-lhe casamenteiros e ela lhes respondia: "Não quero nada com
ele!" Ah, pega! Tentei agarrá-la por aqui, por ali, dando-lhe presentes de
brincos, pães doces, meio pud (19) de mel. "Não quero" dizia
ela. Que fazer? Julgando bem eu não era talhado para ela. Ela é jovem, bela,
fogosa; eu, sou velho; breve terei trinta anos; e como sou belo!… Uma barba
espessa, em ponta; pele clara, um botão de rosas. Como me comparar a ela?
Vivemos ricamente, é verdade; mas também eles, os Vakhrámenko, vivem bem…
Possuem três juntas de bois, têm dois operários. Apaixonei-me dela, irmãos,
perdi a cabeça. Não durmo, não como, tenho na cabeça idéias tão extravagantes e
uma tal confusão, que Deus nos livre! Quero vê-la e ela está em Demídovo… E que pensam ? Deus me castigue se minto! eu ia lá três vezes por semana para
vê-la.

(19)    Medida
de capacidade usada na Rússia.

Descuidei meus
negócios; como que fiquei ausente. Quis até empregar-me como operário em
Demídovo para ficar mais perto dela. .. Andava excitado. Minha mãe chamou uma
pitonisa, meu pai bateu-me mais de dez vezes; sofri três anos e tomei uma decisão:
"Se maldito, desta vez vou para a cidade e faço-me cocheiro…" Mas
não era essa a minha sorte! Na Páscoa fui a Demídovo para vê-la uma última
vez…

Constantino inclinou a
cabeça para trás e soltou uma risadinha alegre, como se acabasse de enganar
alguém com muita arte.

—    Dei com ela perto do córrego na companhia de rapazes,
prosseguiu ele; fiquei furioso. .. Puxei-a à parte e disse-lhe, talvez durante
uma hora, diferentes coisas.. . E ela começou a me amar. Três anos e ela não
havia jeito de gostar de mim; e com aquelas palavras que lhe disse, ela me
amou!

—   
Que palavras? indagou Dimov.

—    Que palavras? Não me lembro. Será que se pode lembrar
?… A coisa corria como unia bica, ta-ta-ra-ta-tá, sem uma folga. Hoje em dia
não posso repetir uma só. O facto é que casou comigo… Agora, lá se foi minha
pega para casa da mãe; e eu, sem ela, percorro a estepe; não posso ficar em casa…   Impossível!

Constantino
esticou desajeitadamente os pés, deitou-se no chão, pousou a cabeça nas mãos,
depois levantou-se e sentou-se de novo. Todos agora compreendiam que ele era
um homem amoroso e feliz, feliz até à tortura. Seu sorriso, seus olhos e cada
movimento   exprimiam  uma  felicidade   arrasante.

Não esquentava lugar, não
sabia que posição tomar; não sabia o que fazer, para não sucumbir ao peso de
tantos pensamentos agradáveis. Tendo aberto o coração diante de desconhecidos,
ficou afinal sentado tranqüilamente e pôs-se a refletir, contemplando o fogo.

Ao verem um
homem feliz, todos sentiram certo desapontamento, desejando também felicidade.
Todos cismavam. Dimov levantou-se e contornou vagarosamente o braseiro. Por
sua atitude, pelo movimento de seus omoplatas, via-se que estava lânguido e
desapontado; ficou um instante de pé, fitou Constantino e tornou a sentar-se.

O braseiro
já se apagava. O clarão não vacilava mais. A mancha rubra sumia, escurecia… E
à medida que o fogo se extinguia, o luar se tornava mais vivo; já se podia ver
a estrada em toda a sua extensão, os fardos de lã, os varais dos carros, os cavalos
que mastigavam; do outro lado desenhava-se confusamente a outra cruz…

Dimov
apoiou uma face sobre a mão e pôs-se a cantar docemente uma canção dolente.
Constantino, sonolento, sorriu e o acompanhou com a voz aguda. Cantaram durante
meio minuto e calaram-se… Emeliano estremeceu, estirou os braços e mexeu os
dedos.

—  Irmãos,
pediu, suplicante, cantemos alguma
coisa religiosa!

As lágrimas vieram-lhe aos olhos.

—    Irmãos, repetiu, pondo a mão no coração, cantemos
alguma coisa religiosa!

—   
Não sei, respondeu Constantino.

Recusaram-se
todos. Emeliano pôs-se a cantar sozinho. Agitou as duas mãos, sacudiu a
cabeça, abriu a boca, mas pôde apenas emitir um sopro rouco, afônico. Cantava
com as mãos, com a cabeça, os olhos e até com a verruga; cantava
apaixonadamente, cheio de dor; e mais enchia o peito para arrancar ao menos uma
nota, mais ficava átono.

Iegôruchka,
como os outros, foi invadido pelo tédio. Foi para sua carroça, trepou sobre o
fardo e deitou-se. Mirava o céu e pensava no felizardo Constantino e na mulher.
Por que as pessoas se casam? Por que há mulheres neste mundo? Iegôruchka
apresentava a si próprio perguntas nada claras e concluía que o homem só é
feliz quando a seu lado vive uma mulher carinhosa, faceira e linda.

A condessa
Dranítski voltou-lhe à lembrança, dando-lhe a impressão de que, provavelmente,
deve ser muito agradável viver com semelhante mulher. Ter-se-ia casado com ela
com muito prazer, se não o pusessem na berlinda por causa disto. Revê Iegôruchka
os seus lindos cílios, suas brilhantes pupilas, a caleça, o relógio com o
cavaleiro de ouro, e se pôs a imaginar que estava naquela mesma caleça ao lado
dela. Uma noite tépida, serena, descia sobre ele e lhe murmurava qualquer coisa
ao ouvido e, então, parecia-lhe que era a bela dama que se inclinava para ele,
envolvia-o num sorriso e o queria beijar.

No braseiro
restavam, apenas, dois olhinhos vermelhos que se iam minguando mais e mais. Os
carroceiros e Constantino, sombrios, imóveis, assentados de permeio com aquela
gente, pareciam bem mais numerosos. As duas cruzes destacavam-se igualmente e
lá longe, bem à distância, sobre a grande estrada… eram outras pessoas, não
havia dúvida, que cozinhavam o almoço.

"Nossa
Mãe Rassia (a Rússia) é a cabeça do mundo !" pôs-se a cantar, de
repente, Kiriúchka com uma voz selvagem; mas engasgou-se e se calou. O eco da
estepe agarrou-lhe a voz no voo, carregou-a e parecia que no espaço era a
própria brutalidade que rolava sobre rodas toscas e pesadas.

—  É tempo
de partir, disse Pantelei; levantem-se, rapazes!

Enquanto
atrelavam, Constantino rodeava as carroças e vangloriava-se da mulher.

—  Adeus,
irmãos, gritava, quando o comboio se pôs em movimento. Muito agradecido pelo acolhimento ! Preciso ir para outra lareira. Não posso me demorar
mais aqui!

E, em
pouco, desaparecia na bruma. Por muito tempo ouviram-no andar na direcçao do
lugar onde brilhava outra fogueira, para repartir sua ventura com pessoas
estranhas.

Quando Iegôruchka
acordou no dia seguinte, era bem de madrugada. O sol não se tinha levantado
ainda; e a caravana estava parada. Um homem de gorro branco, com uma vestimenta
de estofo cinza, barato, montado num cavalo cossaco, conversava qualquer coisa
com Dimov e Kiriúchka. perto da primeira carroça. À frente, duas verstas mais
ou menos, percebiam-se longos alpendres, pouco elevados, caiados, e algumas
casas com tecto de telha. Próximo às casas, nem árvores nem pátios.

—  Avô, perguntou Iegôruchka, que aldeia
é esta?

—  São as
fazendas dos armênios, meu menino, respondeu Pantelei. Habitam nelas os
armíacos. Nada maus, esses armíacos…

O
homem vestido de cinzento, terminando de conversar com Dimov e Kiriúchka, fez
recuar o seu garanhão e olhou para a banda das fazendas.

—    Que história, pensa um pouco! suspirou Pantelei,
tremendo com o frescor matinal. Ele mandou um homem às fazendas, em busca de
papel, e o camarada nada de voltar… Não seria bom enviar-se Stiôpka?

—   
Avô, quem é ? interrogou
Iegôruchka.

—   
Varlâmov.

Deus
meu!… Iegôruchka ergueu-se vivamente, pôs-se de joelhos e examinou o gorro
branco… No homem de cinza, de talhe curto, calçando botas altas, cavalgando
um rocinante de má estampa, e tagarelando com os mujiques no momento em
que todos os cidadãos importantes dormiam, como reconhecer o misterioso, o
desaparecido Varlâmov, procurado por todos, que "voltava sempre" e
que tinha mais dinheiro do que a condessa Dranítski ?

—  Não
se pode negar, é um sujeito de valor…
dizia Pantelei, olhando as fazendas. Que Deus lhe dê saúde! É um bom patrão…
É Varlâmov Semione Alexandrovitch… — É sobre pessoas assim que a terra pode
descansar… Eis a verdade!…Ainda não cantam os gaios e ele já está de pé… Qualquer
outro estaria a dormir ou se divertiria com seus   convidados,   fariam   tarí-barí-rasta-barí
(20), mas ele passa o dia todo na estepe… Ele circula.
Não falta nunca num negócio… Não!… É formidável !

Varlâmov
não tirava os olhos das fazendas e conversava.   Seu cavalo escarvava o chão.
impaciente.

(20)    Provavelmente uma onomatopéia russa.

—  Semione
Alexandroviteh, gritou Pantelei tirando o chapéu, permite que eu mande
Stiôpka! Emeliano, grita daí que mandem Stiôpka!

Finalmente
apareceu um cavaleiro. Muito inclinado para um lado, e fazendo girar mais alto
que a cabeça seu chicote de cabo curto, como se tomasse parte numa exibição
eqüestre e quisesse maravilhar cada espectador com o seu atrevimento, lançou-se
para a caravana com a ligeireza de um pássaro.

—  É
provavelmente um de seus guardas, disse Pantelei; ele tem guardas desse tipo,
talvez cem ou mesmo mais.

Tendo
alcançado a primeira carroça, o cavaleiro parou o cavalo e, de chapéu na mão,
entregou a Varlâmov um livro. Varlâmov retirou do livro alguns papéis, leu-os
e exclamou:       …

—  Onde está o bilhete de Ivantehuk?

O
cavaleiro tornou a pegar o livro, examinou os papéis e bateu os ombros. Começou
a falar, provavelmente para se desculpar e pediu licença para ir mais uma vez
às fazendas. O cavalo de Varlâmov pôs-se agitado, como se Varlâmov se tivesse
tornado mais pesado. Varlâmov agitou-se também.

—  Vai!
berrou ele encolerizado, levantando o chicote para o cavaleiro.        ;

Depois
virou o cavalo e, examinando os papéis no livro, foi-se a passo, em toda a
extensão do comboio.

Quando se aproximou da
última carroça, Iegôruchka arregalou os olhos para melhor o enxergar..
Varlâ-mov era já um velho; seu rosto, com uma curta barba grisalha, muito
simples, moreno, estava vermelho, húmido do orvalho e coberto de veias
azuladas. Exprimia a mesma secura de Ivan Ivánovitch, o mesmo fanatismo pelos
negócios. Mas, contudo, quanta diferença nos dois homens! Em Kusmitchov, a par
da secura imperante, havia sempre a preocupação, o medo de não encontrar
Varlâmov, e estar atrasado, de perder um bom preço; nada de semelhante, habitual
nas pessoas humildes e nos subalternos, se via no semblante de Varlâmov. Este
homem fazia, ele mesmo, os seus preços, não procurava ninguém e não dependia de
ninguém. Posse qual fosse a vulgaridade de seu exterior, sentia-se em tudo,
até em sua maneira de segurar o chicote, a consciência de sua força e de seu
poder aclimatado na estepe.

Ao passar
diante de Iegôruchka, não lhe prestou a mínima atenção; apenas seu cavalo o
olhou com seus enormes olhos ingênuos, com indiferença. Pantelei saudou
Varlâmov. Este o percebeu e, sem destacar os olhos da papelada, correspondeu,
resmungando:

— Bom dia, velho!

O
final da conversa de Varlâmov com o cavaleiro e seu chicote brandido no ar
tinham produzido penosa impressão em todo o comboio; tinham todos a fisionomia
fechada. O cavaleiro, desencorajado com a cólera do homem poderoso, sempre de
cabeça descoberta, de bridas soltas sobre o pescoço do cavalo, mantinha-se
perto da primeira carroça, como se custasse a acreditar que o dia lhe houvesse
começado tão mal.

— É
um brutalhão. .. murmurava Pantelei; c espantosamente bruto!  Mas é um sujeito
formidável.

Tendo
examinado os papéis, Varlâmov meteu o livro no bolso.

O garanhão,
como se compreendesse, sem esperar a ordem, estremeceu e lançou-se estrada a
fora.

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