VII
Na noite
seguinte os carreiros fizeram igualmente alta e prepararam seu jantar.
Desta
vez, desde o primeiro momento sentia-se um inexplicável mal-estar; sufocava-se.
Todos bebiam muito e não podiam estancar a sede. A lua se elevou, rubra e
velada, como se estivesse doente. Também as estrelas tinham um aspecto doentio;
o nevoeiro era mais espesso, a distância mais turva. A natureza parecia
enlanguescer na espera de alguma coisa. Não havia mais, em torno da fogueira, a
mesma animação da véspera: nada de conversação; todos se aborreciam, falavam
indolentemente e como que a contragosto. Pantelei não fazia outra coisa senão
suspirar, queixava-se das pernas e falava de morte súbita.
Dimov,
deitado de barriga, calava-se e mascava uma palha. A expressão de seu rosto
denotava desgosto, como se a palha não soubesse bem, e era má e f atigada.
Yássia queixava-se de dor aguda no queixo e predizia tempos ruins. Emeliano, de
sucumbido, nem agitava os braços mais, e ficava imóvel a olhar sombriamente o
fogo. Iegôruchka também sentia tédio. A caminhada a passo o fatigara e o calor
do dia dera-lhe dor de cabeça.
Quando
ficou pronta a comida, Dimov, enervado, pôs-se a mexer com os companheiros.
— Olá., verruga, já estás aboletado e és o primeiro a
meter a tua colher? disse, olhando Emeliano com cólera. Que voracidade! Faz
questão de ser o primeiro a avançar no caldeirão. Como foi cantor de igreja,
julga-se um grande senhor; muitos cantores de tua espécie pedem esmola na
estrada…
— Por que te metes comigo ? perguntou Emeliano, também
encolerizado.
— Não te plantes em primeiro lugar junto do caldeirão!
Não te faças de importante!
— És um imbecil, eis tudo! exclamou Emeliano, bufando de
raiva.
Pantelei
e Vássia, sabendo por experiência própria como acabam as discussões deste
gênero, intervieram e quiseram persuadir Dimov de não procurar briga por um
nada.
— Um
cantor como ele, continuou o demônio, a sorrir com desdém… todo o mundo pode
cantar dessa maneira! Põe-te no portal da igreja e canta:
"Uma esmola por caridade, pelo amor de Deus!" Ah, pedaço de…
Emeliano
não replicou. Seu silêncio irritou Dimov. Olhou o velho cantor com ódio
manifesto e disse:
— Não quero te agarrar pelo pescoço; isto seria
importância demais para ti!
— Por que te irritas comigo, Mazeppa f exclamou
Emeliano. Queres espancar-me?
— Como foi que tu me chamaste f… perguntou Dimov,
empertigando-se, com os olhos a faiscar. Como foi mesmo? Como? Então eu sou
Mazeppa? Sim? Então, lá vai! Segura isto!
Dimov arrancou das mãos de Emeliano a colher e a jogou
longe. Kiriúchka, Vássia e Stiôpka pularam e a foram buscar. Emeliano olhou
para Pantelei com uma expressão de súplica. A fisionomia se lhe enrugou
repentinamente, numa crispação de ódio. As pálpebras tremiam e o velho cantor
pôs-se a chorar como uma criança.
Iegôruchka,
que há muito tempo detestava Dimov, sentiu que o ar se tornava
insuportavelmente mais pesado, que o fogo do brasido lhe queimava o rosto. Quis
correr a plena força para as carroças pela escuridão a dentro. Mas os olhos
maus e tristonhos do monstro o fascinavam.
Querendo
dizer, com exaltação, a Dimov alguma coisa que o ferisse profundamente, avançou
um passo contra ele e gritou:
— Tu és o pior de todos! Não te posso tolerar!
Depois disto, deveria ter corrido para o comboio,
mas não arredou um passo do lugar e continuou:
— No outro mundo, o teu lugar é no inferno! Hei-de me
queixar a Ivan Ivánovitch. Ousas ainda fazer mal a Emeliano ?!
— Tu, também? Berra à vontade!… respondeu casquinando
Dimov. O menor dos leitões, com leite ainda a escorrer da boca, se põe a dar
conselhos ?!… E se eu te puxasse as orelhas ?
Iegôruchka
nem podia respirar. E ele, a quem isto jamais acontecera, se pôs de repente a tremer
em todo o corpo, bateu os pés e gritou com a voz estridente :
— Bate-me! bate-me!
As lágrimas brotaram-lhe nos olhos.
Envergonhou-se e correu, zonzo, para a sua carroça. A impressão causada pelo
seu grito, ele não a pôde ver; deitado sobre o fardo de lã, a chorar, agitava
nervosamente os pés e as mãos, soluçando:
— Mamãe, mamãe!
E tudo neste instante,
as pessoas, as sombras em redor do braseiro, os fardos escuros, as fulgurações
afastadas, tudo lhe parecia selvagem e terrível. E o medo o dominava. E ele se
perguntava com desespero como e por que caíra naquela região perdida, na
companhia de mujiques horrendos? Onde estariam agora o seu tio, o padre
Cristóforo e Denisska ? Por que ficam lá tanto tempo? Seria que o haviam
esquecido 1 A idéia de ter sido esquecido e abandonado ao léu da sorte
produzia-lhe calafrios e o medo era tão grande, que, por várias vezes, se
sentiu tentado a pular do fardo e correr, de volta, pela estrada; mas, a
lembrança das cruzes sombrias e tristonhas que, infalivelmente, tornaria a ver,
e os relâmpagos ruti-lando ao longe, o retiveram. E era só balbuciando:
"mamãe, mamãe!" que sentia algum alívio.
Os
carroceiros, com toda a certeza, não estavam mais à vontade. Depois que
Iegôruchka fugiu de perto do braseiro, silenciaram por muito tempo, e em
seguida começaram a falar, a meia voz, de alguma coisa que se aproximava e que
era preciso evitar, preparando-se a partida o mais depressa possível. Jantaram
apressadamente, apagaram o fogo e começaram a atrelar em silêncio. Pela sua precipitação, pelas frases entrecortadas, era claro que pressentiam alguma
desgraça.
Antes
de se porem em marcha, Dimov aproximou-se de Pantelei e lhe perguntou
adocicadamente:
—
Como é que ele se chama?
—
Iégory…
Dimov pôs
um pé na roda, segurou-se na corda que amarrava o fardo e alçou-se até ele. Iegôruchka
viu o seu rosto e sua testa enrugada; a fisionomia era pálida, fatigada, séria,
mas não exprimia mais raiva.
— Iéraf
(21) perguntou baixinho. Vamos, bate-me!
Iegôruchka
olhou-o espantado e, neste momento, um relâmpago fuzilou.
— Bate-me, bate-me, agora! repetiu
Dimov.
(21) Diminutivo de Iégory.
E sem
esperar que Iegôruchka o atacasse ou lhe desse uma resposta, pulou em terra e
disse:
— Estou enojado…
Depois,
gingando, balançando os ombros, caminhou vagarosamente ao comprido do comboio
e repetia com voz queixosa e descontente:
— Estou
enojado, Senhor! Emeliano, não te aborreças, disse-lhe, passando perto do
velho cantor.
Nossa vida é uma lástima, atroz, cruel!
À direita,
um outro relâmpago, e, como se fora refletido no gelo, refulgiu mais distante
ainda.
— Iégory! gritou Pantelei, jogando cá de baixo um objeto
escuro e grande. Segura!
—
Que é isto ? perguntou o menino.
— Um encerado. Yai chover; ele te
protegerá,
Iegôruchka ergueu-se um pouco e olhou em volta… O horizonte estava profundamente escuro e, agora mais do que há pouco, piscava — como com grandes cílios — uma
pálida luz. O negrume parecia fazê-lo pender à direita, envergado pelo peso das
nuvens.
— Avôzinho, vai haver tempestade? indagou Iegôruchka.
— Ai, meus pés doentes, gelados! queixou-se Pan-telei
com sua voz cantante, sem o ouvir, e saltitando.
À esquerda,
no céu, como se alguém riscasse um fósforo, brilhou um pálido raio
fosforescente que logo se apagou. Ouviu-se um ruído como se, em algum lugar,
ao longe, alguém caminhasse num telhado de zinco; provavelmente pisasse com os
pés descalços, porque o zinco ressoava surdamente.
— Todo o céu está preto! gritou
Kiriúchka.
Entre a distância e o horizonte, à direita, fulgurou
um clarão tão vivo que
iluminou uma parte da estepe e o céu, por segundos, se encheu de luz. Uma
nuvem enorme, entretanto, avançava sem maior pressa, em massa compacta;
debruçavam-se às suas bordas farrapos negros. Farrapos iguais, numa luta de
morte entre si mesmos, se iam acumulando à direita e à esquerda do horizonte.
Este aspecto retalhado, esfarrapado, lhe dava ares de embriaguez, de
impudência… O trovão roncava surdamente. Iegôruchka persignou-se e se enfiou
ligeiro debaixo da manta.
— Estou enojado!
O grito de
Dimov repercutiu pelas carroças da frente e, pelo tom da sua voz, percebia-se
que ele recomeçava a se irritar.
— Estou enojado!
Súbito,
o vento se levantou com uma força tal que quase arrancou das mãos de Iegôruchka o embrulho e a
manta. Esta, violentamente sacudida, jogou-se por todos os lados, fustigando o
farelo e o rosto do menino. O vento atirou-se pela estepe aos uivos; turbilhões
imensos e desordenados; com a vegetação era tamanho o estrépito produzido que
não se escutava mais nem o trovão nem o ranger das rodas. Parecia que o vento
saía de uma nuvem negra, carregando outras nuvens de pó, e o cheiro de chuva e
terra molhada. A lua obscureceu-se, parecia turva; as estrelas velaram-se
mais ainda e viam-se, nas margens da estrada, torvelinhos de poeira e suas
sombras comprimir-se à retaguarda. Agora, sem dúvida, o furacão turbilhonava,
e, levantando pó, ervas secas, penas, elevava-se até o céu. Bem perto da nuvem
negra como que voavam sementes de cardo e isto • devia ser horrível para elas.
Mas, através da poeira que grudava os olhos, nada mais se distinguia do que o
clarão dos coriscos.
Iegôruchka, julgando
que a chuva estivesse prestes a cair, pôs-se de joelhos, cobrindo-se com a
manta.
— Pan-te-lei! gritou alguém lá na frente… A… a…
a…
— Não se ouve nada, respondeu Pantelei em voz forte e
entoada.
—
Para a frente!…
O trovão estrondou
furioso e rolou à direita, à frente das carroças.
— Santo! Santo! Santo! Senhor dos
exércitos! murmurou Iegôruchka, fazendo o sinal-da-cruz. O céu e a terra estão
cheios da tua glória!
A parte negra do céu
abriu-se como uma bocarra e soprou um fogo brando. O trovão recomeçou, imediatamente,
a ribombar. Apenas calou-se ele e um brilho cintilou tão violentamente que
Iegôruchka, pelos buracos do encerado, viu de súbito toda a enorme estrada a
perder de vista, todos os carroceiros e até o colete de Kiriúchka. Os farrapos
negros subiam pela esquerda e um deles, grosseiro, disforme, parecendo uma
pata com garras, alongava-se para a lua. O menino decidiu fechar fortemente os
olhos, não atendendo a mais nada, até que tudo estivesse acabado. A chuva, não
se sabe como, não foi longa. Iegôruchka, na esperança de que a nuvem fosse talvez
passar, arriscou lá de baixo da manta uma espiada. Estava tudo espantosamente
escuro. Ele não pôde ver nem a Pantelei, nem aos fardos, nem a si mesmo. Virou
um pouco para o lado onde se achava a lua não fazia um instante, mas lá também
reinava a mesma escuridão da carroça. As fulgurações, dentro do negrume,
pareciam maiores e mais coruscantes, fazendo mal à vista.
— Pantelei! chamou Iegôruchka.
Nao teve resposta. Mas
o vento, pela derradeira vez, forçou a manta e fugiu por qualquer banda.
Ouviu-se um rumor regular e tranqüilo. Uma grande gota fria caiu no joelho de
Iegôruchka. Uma outra correu-lhe pela mão. Percebendo que os joelhos não
estavam cobertos, quis arranjar o encerado; mas, neste momento, algo caiu e
pôs-se a tamborilar sobre a estrada, os varais, os fardos: era a chuva.
O encerado e a chuva se cumprimentaram um ao outro e
começaram a conversar vivamente, de maneira jovial, mas desagradável de ouvir,
como duas pegas.
Iegôruchka
conservava-se de joelhos, ou melhor, estava sentado sobre os calcanhares.
Quando a chuva começou a bater no encerado, inclinou-se para a frente a fim de
abrigar os joelhos, que tinham sido repentinamente molhados. Apressou-se em
cobri-los, mas, no entanto, em menos de um minuto ele sentiu pouco abaixo das
costas e da barriga da perna uma umidade penetrante. Voltou à posição
primitiva, deixou os joelhos à chuva e se pôs a imaginar um meio de, naquela
escuridão, colocar de novo no seu lugar o encerado que ele não via mais. Os braços
também já estavam encharcados; a água corria-lhe pelas mangas e atrás do
pescoço; os ombros se enregelavam e ele decidiu não fazer mais nada, ficar
sentado imóvel e esperar pelo fim.
— Santo! Santo! Santo!… murmurava.
De
repente, de imprevisto, sobre sua cabeça, o céu se fendeu com um tremendo,
ensurdecedor estalido. Iegôruchka agachou-se e reteve a respiração, esperando
que os destroços da tempestade lhe caíssem sobre as costas e sobre a nuca. Os
olhos se lhe abriram involuntariamente e ele viu em seus dedos, nas suas
mangas gotejantes, nas ondas de chuva que cascateavam da manta sobre os fardos
ou para o chão, na terra, incandescer-se, cinco vezes seguidas, um fulgor de
cegar. Um novo estalo ressoou mais forte e mais terrível. O firmamento não
roncava nem resmungava mais, e sim emitia sons curtos, iguais aos estalidos da
madeira seca. "Trac-trac-trac!" martelava distintamente o
trovão, rolando pelo céu, aos trambolhões, e o raio caiu perto das primeiras
carroças com um: "tra" maldoso e rápido.
Até então
os relâmpagos tinham sido temíveis, mas com aquele trovão tornaram-se
sinistros. Sua luz mágica penetrava as pálpebras fechadas, levava o frio até
dentro do corpo. Que fazer para não os ver ? Iegôruchka resolveu virar a
cara para baixo. Prudentemente, como se temesse que alguém o viesse
surpreender, pôs-se de quatro, e deslizando as mãos húmidas sobre os fardos
foi-se ajeitando.
Trac-trac-trac... Um rugido passou-lhe sobre a cabeça, ecoou debaixo
da carreta e desfez-se: Trai
Os
olhos de Iegôruchka reabriram-se contra a vontade e ele percebeu novo perigo.
Atrás da carroça avançavam três enormes gigantes com suas compridas lanças. O
relâmpago brilhou sobre a lâmina das lanças e iluminou nitidamente os rostos
deles. Eram seres de dimensões colossais, encapuçados, de cabeça baixa e
caminhar pesado. Pareciam estar tristes e acabrunhados, imersos em seus
pensamentos. Talvez não andassem atrás do comboio para fazer mal, mas algo de
horrível havia à sua aproximação.
Iegôruchka
virou-se rapidamente para a frente e, tremendo dos pés à cabeça, gritou:
— Pantelei! Avôzinho!
"Trac-trac-trac", lhe respondeu o céu.
A
criança abriu os olhos para ver se os carreiros continuavam ali. Um raio
coriscou em dois lugares diferentes, iluminando toda a estrada com o comboio e
seus condutores. Sobre o caminho corriam rios em furiosos remoinhos. Pantelei
caminhava perto da carreta. Seu chapéu alto e os ombros estavam cobertos com
um pequeno encerado de casca de tília. O rosto mão exprimia nem medo nem
emoção, como se os relâmpagos o houvessem cegado e o trovão o tivesse deixado
surdo.
— Avô,
gritou Iegôruchka em prantos, os gigantes !
Mas
o avô não o escutou. Emeliano ia à frente, mais afastado. Coberto por um grande
encerado, de alto a baixo, tinha a forma de um triângulo. Vássia, completamente
desprotegido, caminhava tão erecto como nunca, levantando bem alto os pés, sem
dobrar os joelhos… Ao clarão dos relâmpagos, parecia que o comboio não
avançava, que seus condutores estavam petrificados e que o pé de Vássia,
erguido no ar, estava paralisado. ..
Mais
uma vez Iegôruchka chamou pelo avô. Não recebendo, porém, resposta alguma,
assentou-se imóvel e resolveu esperar que tudo acabasse. Estava certíssimo de
que o raio o iria matar a qualquer minuto, que seus olhos se iriam abrir ao
imprevisto e que iria ver os horripilantes gigantes. Não se persignava mais,
nem sabia onde estava o avô, nem pensava em sua mãe: embotava-se com o frio e
com o pensamento de que não terminaria mais aquela tempestade.
De súbito, ressoaram várias vozes.
— Iégory, meu anjo, estás dormindo? perguntava lá de
baixo Pantelei. Desce! Estás surdo, tontinho?
— Acabou a tempestade! exclamou alguém em bonita voz de
baixo, desconhecida, fungando como se acabasse de beber um bom copo de
aguardente.
Iegôruchka
abriu os olhos. Em baixo, perto da carreta, estavam de pé, Emeliano o
triângulo, e os gigantes. Estes últimos já estavam, agora, bem diminuídos de
tamanho e quando o menino os fitou bem mostraram ser simples camponeses,
trazendo ao ombro não lanças perigosas mas sim forcados. Entre Pantelei e o
triângulo achava-se a janela iluminada de uma isba baixa. A caravana
tinha chegado a uma aldeia.
Iegôruchka
lançou fora o encerado, apanhou seu embrulho e apressou-se em descer da
carroça. Agora que havia gente falando e janelas cheias de luz, o menino não
tinha mais medo, embora o trovão não se houvesse silenciado completamente e os
relâmpagos ainda zebrassem o céu.
— Uma bela tempestade, não há dúvida, murmurava
Pantelei. Louvado seja Deus Nosso Senhor!.. . A chuva amoleceu um pouco os meus
pés, mas isto não é nada… Já desceste, Iégoryl Entra na isba,.. Não
há-de ser nada.
— Santo! Santo! Santo… repetia Emeliano em voz
sibilante; na certa já tomou outro rumo… Vocês são daqui? perguntou aos
gigantes.
— Não, de Glínovo… Somos glinoveses… Trabalhamos
para os senhores Plater.
—
São vocês que batem o grão ?
— Isto e outras coisas. Atualmente estamos recolhendo o
fermento. Que relâmpagos! que relâmpagos! Há muito tempo que não víamos
tempestade assim.
Iegôruchka
entrou na isba. Uma mulher velha, magra, papuda, de queixo pontiagudo,
cumprimentou-o. Segurava na mão uma candeia, semicerrava os olhos e
suspirava:
— Que
tempestade Deus nos mandou!… E os nossos que passam a noite na estepe. Devem
estar mais mortos do que vivos!… Tira o capote, senhorzinho, disse ela.
Tremulo de
frio e encarquilhado, Iegôruchka tirou o capote encharcado, depois abriu
exageradamente as mãos e os pés e não se mexeu por um bom pedaço de tempo. Ao
menor movimento, sentia uma desagradável impressão de humidade e de frio; as
mangas e as costas da camisa estavam ensopadas e a calca, colada às pernas; a
cabeça gotejava.
— Por
que, mocinho, ficar aí inteiriçado ? perguntou-lhe a velha. Vem sentar-te.
Com as
pernas bem abertas, Iegôruchka aproximou-se da mesa e sentou-se junto da
cabeça de alguém. A cabeça se mexeu, soprou, fez um movimento de queixo,
sossegou outra vez. Para lá da cabeça, ao comprido do banco, se estirava um montículo
coberto de um paletó de pele de carneiro. Era uma camponesa que dormia.
A
velha suspirou, retirou-se e voltou logo com uma melancia e um melão.
— Come,
meu senhorzinho! É tudo que tenho para
te oferecer.
Depois,
procurando na gaveta da mesa, pegou uma grande faca afiada, muito parecida
àquelas com que os ladrões liquidam os negociantes nas postas.
— Come, paizinho!
Iegôruchka, tremendo como se estivesse febril, comeu
uma talhada de melão com pão preto, depois uma outra de melancia. Sentiu mais
frio ainda.
— Os nossos estão na
estepe, murmurou a velha, enquanto ele comia. Paixão do Senhor! Precisava acender
uma vela diante do ícone, mas não sei onde Stepânida as escondeu. .. Come,
paizinho, come!…
A velha
bocejou, botou a mão direita nas costas c cocou o ombro esquerdo.
— Devem ser duas horas agora, disse ela. Já é quase
tempo de se levantar. Os nossos estão na estepe. .. Estão encharcados, sem
dúvida…
—
Avôzinha, eu queria dormir, pediu
Iegôruchka.
— Deita-te, senhorzinho, deita-te, retorquiu a velha
aos bocejos. Senhor Jesus Cristo! Eu estava, dormindo e me parecia ouvir alguém
bater. Acordo e vejo a tempestade que Deus nos mandou. . . Devia ter acendido
uma vela, mas não as achei.. .
Falando
consigo mesma, a velha apanhou no banco alguns trapos, provavelmente sua roupa
de cama., pegou dois casacos de pele de carneiro, pendurados em pregos, e
começou a fazer a cama de Iegôruchka.
— A
tempestade não passa já… resmungava a mulherzinha. Queira Deus que não lavre
incêndios por aí! Deita-te, paizinho, dorme… Deus te guarde, meu netinho.
Não vou levar embora o melão; talvez o comas ao te levantares.
Os
suspiros e os bocejos da velha, a respiração pausada da mulher que dormia, a
penumbra da isba e o barulho da chuva atrás da janela, predispunham ao
sono. Iegôruchka tinha vergonha de se despir diante da velha; tirou somente as
botinas, estendeu-se e se cobriu com um dos paletós de pele de carneiro.
— O garoto já se deitou? sussurrou Pantelei, minutos
depois.
— Já, respondeu a velha em voz baixa. Paixão do Senhor,
como troveja, como troveja; parece que não tem fim!. ..
— Acaba já, resmungou Pantelei, assentando-se… Já está
mais calmo… Os rapazes foram para
as isbas, mas dois deles ficaram vigiando os cavalos… Os rapazes…
Não se pode fazer isto… Roubarão os cavalos. .. Fico aqui um minuto e irei
substituí-los. .. Não pode ser! Roubarão os cavalos…
Pantelei
e a velha, sentados lado a lado aos pés de Iegôruchka, conversavam aos cochichos,
entremeando as frases com suspiros e bocejos. O menino não conseguira ainda
aquecer-se. Embora coberto coin um grosso casaco de pele de carneiro, bem
quente, tremia todo e algumas crispações lhe sacudiam as mãos e os pés, até as
entranhas lhe tremiam. Despiu-se debaixo da coberta, mas não o fez muito facilmente.
A febre aumentava.
Pantelei
saiu para acordar os companheiros e depois voltou; Iegôruchka não estava mais
dormindo e tremia… Alguma coisa lhe serrava a cabeça, pesava-lhe no peito e perseguia-o;
ele não sabia o que fosse: o cochicho dos velhos ou o cheiro pesado da lã. A
melancia e o melão tinham-lhe deixado um gosto desagradável de metal. Além
disto, ainda o mordiam as pulgas.
— Avô,
estou com frio, disse ele sem reconhecer a própria voz.
— Dorme, netinho, dorme, suspirou a
velha.
Tito, com suas pernas finas, aproximou-se do leito
e agitou os braços. Depois
cresceu até tocar no teto e transformou-se num moinho. O padre Cristóforo, não
como estava sentado na briska, mas em vestimentas sacerdotais, com o
hissope na mão, deu a volta ao moinho e o aspergiu com água benta. E o moinho
parou. Iegôruchka, compreendendo que era delírio, abriu os olhos.
— Avô, avôzinho, dá-me água!
Ninguém
lhe respondeu. Iegôruchka sufocava, e não podendo mais ficar, levantou-se,
vestiu-se, e saiu da isba. Raiava a madrugada. O céu estava nebuloso,
mas não chovia mais. Tremendo e cobrindo-se com o paletó molhado, o menino
atravessou o pátio sujo e aguçou o ouvido no silêncio. Na frente, um pequeno
estábulo, com telhado de caniços, com a porta semiaberta. Olhou para dentro,
entrou e se sentou a um canto escuro, num molho de forragem.
Os
pensamentos se embaralhavam; estava com a cabeça pesada, a boca seca, e aquele
gosto repugnante de metal. Olhou o chapéu, arrumou a pena de pavão que o
ornamentava e se lembrou como tinha ido comprá-lo com a mamãe. Meteu a mão no
bolso e tirou um pedaço de betume, marrom, colante; como fora parar ali? O
menino pensou, cheirou; parecia mel. Ah! era o pão doce da judia! Coitado, como
estava desmanchado!
Iegôruchka
revistou o casaco. Era um agasalho cinzento, em forma de redingote, com botões
de osso.
Em casa. por ser uma
vestimenta nova, não ficava pendurado no vestíbulo, e sim no quarto de dormir,
ao lado dos vestidos da mãe; Iegôruchka só tinha licença de usá-lo nos dias de
festa. Olhando-o assim, o pequeno teve dó dele. Imaginou que estava da mesma
forma, largado à sorte e que nenhum dos dois voltaria para casa. Os soluços o
sacudiram tanto que quase caiu do molho de forragem.
Um enorme
cachorro branco, molhado, com tufos de pêlo no focinho, crespos como papelotes,
entrou no estábulo e olhou para legoruchka com curiosidade.
Dava
a impressão de que perguntava de si para si se devia ou não latir e, decidindo
que não era preciso, aproximou-se prudentemente do menino, comeu o pãozinho e
foi saindo.
— São
as carroças de Varlâmov! gritou alguém
lá no pátio.
Após ter
chorado à farta, Iegôruchka saiu do estábulo, contornou uma poça d’água e
vagarosamente passou à estrada. Diante da porta estavam as carretas. Os
carreiros encharcados, os pés enlameados, sonolentos e pesados como as moscas
no outono, rodeavam-nas ou se conservavam sentados sobre os varais. Iegoruchka,
olhando-os, pensava: "Como é aborrecido e triste ser mujique!" Acercou-se
de Pan-telei e sentou-se a seu lado, num varal.
— Avô, estou com frio! disse, a tremer, enfiando as mãos
nas mangas.
— Não é nada; vamos chegar logo, consolou-o Pantelei,
bocejando, e tu te esquentarás.
A caravana, por causa da fresca, partiu
de manhãzinha. Iegôruchka, estendido sobre o fardo de lã,
tremia de frio, muito embora o sol, que logo surgira, tivesse secado as roupas,
os fardos e a terra. Apenas o menino fechou os olhos, reviu Tito e o moinho.
Cheio de náusea, sentindo um peso no corpo todo, esforçava-se o pequeno por
expulsar estas impressões, mas apenas sumiam elas e Dimov se jogava em cima
dele aos berros, olhos injectados, punhos no ar, ou então ouvia o gemer
"estou enojado!" Varlâmov passava no seu cavalo cossaco, depois
chegava Constantino com o seu sorriso satisfeito e sua abetarda. Como essa
gente toda era importuna, insuportável, enfadonha!
À
noitinha, ao se levantar para pedir água, viu que a caravana estava numa grande
ponte, em cima de um rio muito largo. Na correnteza arrastava-se uma fumaça
negra e via-se um vapor que rebocava uma chata. Na frente, uma grande colina
semeada de casas e igrejas. Ao sopé, perto de vagões de carga, rodava devagar
uma locomotiva.
Iegôruchka
não vira antes nem barco a vapor, nem locomotiva, nem rio assim largo. Mas, ao
vê-los tão de súbito, não teve nem surpresa nem espanto; seu rosto não exprimia
nada que denotasse curiosidade. Ele sentia-se de facto mal e tratou de
deitar-se outra, vez. Apoiando o peito no fardo, vomitou. Vendo isto, Pantelei
gemeu e abanou a cabeça.
— Nosso
rapaz está doente! Está com resfriado na tripa… mau negócio!