A ALTA ESCOLÁSTICA – História da Filosofia na Idade Média

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA



Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

II.    A  ALTA   ESCOLÁSTICA

INTRODUÇÃO

AS   NOVAS   TENDÊNCIAS

O movimento de ascensão espiritual do séc. 12 se
intensifica por três momentos que se lhe acrescentaram, que se fizeram sentir
por assim dizer simultaneamente e agiram como novas tendências. São: a recepção
aristotélica, o surto das universidades e a atividade científica das grandes
ordens religiosas. Isso teve como conseqüência aquela florescência do
pensamento medieval a que se costuma dar o nome de Alta escolástiea.

A.     A RECEPÇÃO ARISTOTÉLICA

A recepção aristotélica tem lugar no séc. 12 e
se consuma no séc. 13. Realizava-se por duas vias — uma indireta, mediante a
filosofia arábico-judaica; a outra direta mediante as traduções do grego.

a)    Via indireta mediante a filosofia arábico-judaica

O que, da filosofia arábico-judaica, influiu na
Idade Média, não foi propriamente o pensamento do islam ou do judaísmo, mas um
aristotelismo concebido à luz de comentários neoplatônicos.

α) Filosofia arábica. — O caminho
dos árabes para Aristóteles passa
pelos sírios. Do 5.° ao 10.° século (a escola nestoriana de Edessa com Teodoro de Mopsueste e
Teodoreto de Ciro, assim como a
escola monofisita de Resaina e Calcis) tinham traduzido para o siríaco
e munido de comentários certas obras de Aristóteles,
sobretudo o Organon e, além disso, o Isagogo de Porfírio e as obras do Pseudodionísio.

αα) Aristóteles siríaco. — Quando os árabes
conquistaram a Pérsia e a Síria, aderiram a essa filosofia.    Os abassidas convidaram os
sábios siríacos para a corte de Bagdá e mandaram-nos traduzir as obras dos
gregos em árabe, parte, do síríaco e. parte, do grego. O Califa El-Mamoun
constituiu em 832 em Bagdá um centro próprio de traduções. Além das obras de Aristóteles travaram os árabes, assim,
conhecimento com inúmeras outras obras da literatura siríaca — com Teofrasto, Galeno, Hipócrates, Euclides,
Arquimedes. E também, antes de tudo, com uma série de comentários
aristotélicos, como os de Alexandre de Afrodisias,
Porfírio, Temístio e Amônio peripatético.

ββ) Comentários neoplatônicos de Aristóteles.
Como se vê, afora Alexandre, todos
esses intérpretes de Aristóteles são
todos neoplatônicos. E assim a filosofia árabe foi de fato um canal por onde o
neoplatonismo, rejuvenescido, penetrou na Idade Média, que já o havia
recebido, contudo, como herança da patrística. São agora sobretudo as doutrinas
das inteligências e suas emanações, a idéia das gradações do ser, da unidade do
intelecto humano, da eternidade da matéria, da união mística, as propagadas
pelos árabes.

γγ) Teologia  de Aristóteles e Liber de causis. — A concepção
neoplatônica de Aristóteles foi
ainda fortificada por duas obras, que também a Idade Média conheceu por meio
dos árabes e que considerava como aristotélicas: a chamada Teologia de
Aristóteles,
na realidade um excerto da 4.ª e 6.ª Eneida de Plotino, e o Liber de causis, extrato
da Elementatio Theologica (Στοιχειοσιζ 
τεολογικη)
de Proclo, conhecido aliás por Tomás de Aquino.

δδ) Alfarabi (+ 950). — Esta mescla de
idéias aristotélicas e neoplatônicas penetram desde então o pensamento da
filosofia árabe. Para Alfarabi p.
ex., o ser emana do ser divino único por várias gradações. Nos primeiros
desses graus encontram-se as substâncias espirituais ou Inteligências que, como
almas, inovem as esferas das quais uma é a do intellectus agens  de Aristóteles.

εε) Avicena. — Do mesmo pensar é Avicena, freqüentemente citado pelos
escolásticos [Ibn Sina] (+ 1037). O mundo é para ele o produto eterno de um
Deus eterno, onde se vê de novo o recurso à idéia de emanação. De Deus emana a
primeira inteligência.    Desta emanam sucessiva e ordenadamente os espíritos das
esferas que, pela sua providência, (pensamento e vonrade) governam o mundo em
todas as suas particularidades, porque Deus mesmo não cura do indivíduo, pois
conhece apenas o universal. Ao lado está a matéria eterna,  que é o
princípio de individuações.

ξξ) Averróis. — Algo mais aristotélico é Averróis, de Córdoba [Ibn Roschd] (+
1198); porque para ele as Inteligências devem o ser a um ato criador.
Também o mundo provém de Deus, mas é eterno. E também pensa ele que as
Inteligências movem as esferas, sendo a última a do intellectus agens; e
este, sendo força cósmica, ao mesmo tempo move a lua. O intellectus agem é
também só um para todos os homens, de modo que para cada homem nem há uma alma
própria substancial nem imortalidade pessoal. Só é imortal a alma da
humanidade. A matéria é igualmente eterna e encerra em si muitas possibilidades
e formas. A sua atuação (extractio) causa o devir no processo da
natureza e do mundo. Estas teses, particularmente o monopsiquismo, provocaram
na escolástica infindas polêmicas. S. Tomás
de Aquino escreveu contra essa doutrina o De unitate intellectus
contra Averroistas.
Averróis gozou
de grande prestígio e foi denominado o Comementator por excelência de Aristóteles. Dos seus Comentários
três versões: a grande, a pequena e as paráfrases.

ηη) Algazel. — Interessante é a sua
polêmica com Al-gazel [Ghazali] (+
1111) por nos dar uma idéia das disputas ocasionais entre a religião e a
filosofia dentro da escolástica cristã. Para defender o patrimônio religioso do
islam, Alcazel se opôs à penetração
nele da filosofia com o escrito Destructio philosophorum. Contra ele Averróis defende os direitos da razão
na sua Destructio destructionis. O seu pensamento era, no fundo o
seguinte. A filosofia não pretende destruir a religião; cada qual procura e considera
a verdade ao seu modo. Ainda não é a doutrina das duas verdades dos averroístas
posteriores, pois para Averróis, diferem
apenas as palavras, não porém a realidade; ao passo que para os averroístas
religião e filosofia têm fins e objetos incomensuráveis.

β) Filosofia judaica. — A filosofia
judaica, que influiu sobre  a  escolástica,  é  profundamente inspirada  na 
filosofia árabe; por isso e ainda uma vez, é Aristóteles
visto à luz do neoplatonismo, que nela se faz valer.

αα) Avencebrol, — Avencebrol [= Avicebron = Salomon ibn Gebirol] (+ 1070)
representa um panteísmo emanatista. Na sua obra capital, Fons vitae, tem
Deus como a fonte da vida, do qual tudo emana e, ainda uma vez, por gradação.
Imediatamente de Deus emana o espírito do mundo, composto de matéria e forma,
dois princípios característicos do ser em todos os estádios. Fundem-se na
verdade numa substância única, mas são dois princípios reais. Partindo do espírito
do mundo a emanação bifurca-se em duas linhas — o mundo corpóreo e o espiritual;
mas em ambos a matéria e a forma constituem o princípio do ser e, além disso,
em cada substância pode haver, eventualmente, uma pluralidade de formas. Com
essas duas teses provocou Avencebrol ardentes
discussões filosóficas, em que também tomou parte S. Tomás DE   AQUINO..

ββ ) Maimônides. — Um bom conhecedor de Aristóteles é Moisés Maimônides (+ 1240) apreciado por S. Tomás que o segue freqüentemente na sua
doutrina da criação e nas suas provas de Deus. Nas suas provas de Deus Maimônides se inspira em Alfarabi e Avicena mas, sobretudo, em Aristóteles.
Mas lhe combate a doutrina da eternidade do mundo, admitindo a criação
do nada. Sua obra principal — Guia dos perplexos estabeleceu 25
princípios diretores "de que precisamos para provar a existência de Deus,
assim como para provar que ele não é corpo nem uma força existente num corpo; e
além disso, que é único". (Cf. a trad. alemã de Meiner, vol. 2, pg. 3 ss.). Também faz ele ao mesmo tempo uma
boa exposição das idéias fundamentais da física e da metafísica de Aristóteles, tal como as entendia a
Idade Média. Como Averróis, os
filósofos judeus têm a sua pátria na Espanha.

γγ) Toledo. — A Espanha foi também a grande
sede das traduções, que abriram à Idade Média as portas da filosofia
arábico-judaica. Em Toledo funcionava uma escola dedicada às traduções. Nos
meados do séc, 12 foram aí traduzidas para o latim as obras de Alfarabi, AViCena, Avencebrol, por Domínico Gundissalino, JOÃo Hispano e Gerardo Cremonense. No  começo   do  séc.  13 
acrescentaram-se  os  comentários  de Averróis, nas traduções de Miguel EsCoto e Hermano Alemão. Em 1250 a maior parte dessas obras eram já conhecidas e esse foi o ponto de partida para novos empreendimentos.

b)    Traduções diretas do grego

Isso mais se acentuou Quando travaram
conhecimento com Aristóteles, totalmente
traduzido diretamente do grego. Até a metade do séc. 12 os escolásticos só
conheceram indiretamente Aristóteles, pelo Isagogo de Porfírio e os
tratados de Boécio (De
divisione
e De diferentis topicis assim como os seus comentários das Categorias e do Perihermeneias); apenas as duas obras de Aristóteles ultimamente nomeadas eram
diretamente acessíveis na tradução de Boécio.
Isso foi tudo quanto a Idade Média conhecia, como se o estagirita
tivesse sido somente um lógico. Também os filósofos judeus e árabes eram um
meio, mas só indireto, de acesso a Aristóteles.
Pois aqui o aristotelismo se cindia através de um prisma multifacetado:
do grego era traduzido para o siríaco, do siríaco para o árabe, do árabe —
quando possível, passando pelo espanhol antigo — para o latim. Ora, é fácil
imaginar quão difícil era, por esses meios, adivinhar o espírito do estagirita,
tanto mais quanto os comentários neoplatônicos constituíam já uma
interpretação bem característica de Aristóteles.
Assim, foi um enorme progresso o ter sido Aristóteles traduzido diretamente do grego em todas as suas
obras e não somente as obras lógicas. Essa empresa se inicia já nos meados do
séc. 12. É verdade que só um nome desse tempo nos é conhecido — o de Henrico Aristipo, de Catânia (+ 1162),
tradutor do quarto livro dos meteorológicos e do de generatione et
corruptione,
Mas sabemos que, antes de 3200, entre outras obras de Aristóteles, já eram conhecidas, em
grego, a Física, o Da anima e a Metaphysica A até T, 4 (Metaphy-sica
vetustissima).
A tradução de todas as obras ficou completa só no séc. 13.
E então os grandes tradutores foram: Bartolomeu
de Messina, Roberto Grosseteste e Guilherme
de MorBeca. Este último trabalhou especialmente para Santo Tomás de Aquino. A isso acresceram
também as traduções dos comentários de Alexandre
de Afrodísias, Temístio, Simplício, Eustrátio, Aspásio, Amônio, Miguel e
JOÃO Filopono. As indagações
histórico-literárias sobre as infiltrações do Aristóteles
grego na Idade Média estão ainda e sempre em andamento. Para um estudo minucioso deste assunto enviamos o leitor para as autorizadas
investigações de Grabmann, A. Pelzer, P. Pelster, A. Manston, G.
Lacombe etc. (Resumo de A. Pelzer em M. De Wulf, Eist, de la phil. méd. I6, 64 ss.; II6, 25 ss.).

c)    O "aristotelismo" escolástico

A consideração histórico-geunética das coisas
deve ser ainda aprofundada. Deve ela em particular mostrar ate que ponto a
recepção de Aristóteles pela
escolástica reproduz exatamente a linguagem aristotélica e como a ultrapassa.
O fato de Alberto, apesar do seu
aristotelismo, pensar ainda em termos neoplatônicos; e o de Tomás se aproximar mais ou menos de Agostinho, nas suas doutrinas do homem,
dá felicidade, do conhecimento, para só nos referirmos a estas, devem nos dar
que pensar. Um tão profundo conhecedor do platonismo e do aristotelismo como A.
E. Taylor pensa, (pie dos pontos
capitais da mundividência medieval nunca o platonismo foi expungido; e chega
mesmo, ocasionalmente, a chamar ao aristotelismo escolástico uma simples
filosofia exterior acessória (Platonism and its influence2, 1927,
pág. 28). Isto é porventura dizer demasiado.— E. HoffmaNn, no seu estudo sobre o platonismo na Idade Média (Vorträge
der Bibliothek Warburg,
1923-24) sustenta a tese diametralmente oposta. O
genuíno platonismo, diz, não contribuiu de nenhum modo, como fator sistemático,
para a construção da filosofia da Igreja. Contudo, o estudo das relações entre
a velha tradição agostiniano-platônica e o novo aristotelismo da alta escolástica
deve sempre considerar que a obra de W. Jaeger
sobre Aristóteles criou
uma situação totalmente nova, mesmo para o Aristóteles
escolástico. Até então as investigações histórico-literárias, quando
encontravam nos textos escolásticos o nome e os pensamentos de Aristóteles, interpretavam-nos no
pressuposto de uma concepção de Aristóteles,
pela qual se via uma oposição entre os dois grandes filósofos. Era a
imagem que se tinha de Aristóteles no
séc. 19: Aristóteles o "realista"
contra Platão o "idealista".
E as disputas entre as duas grandes correntes escolásticas medievais
contribuíam para fortificar essa interpretação. Mas desde que o livro de Jaeger mostrou que "Aristóteles
tinha consciência de ser o primeiro grego a ver o mundo real com os olhos de
Platão", esse pressuposto tornou-se problemático. Reflitamos, além disso,
que sempre foi assim para Boécio, a
grande autoridade medieval, e que o primeiro escolástico representava a
convicção da harmonia entre Platão e
Aristóteles. A isso acrescentemos
que também os árabes sugeriam um Aristóteles
interpretado neo-platônicamente. E enfim ainda, que o mesmo se conclui
dos múltiplos comentadores de Aristóteles.
Então assume quase foros de certeza a conjetura, que a interpretação do aristotelismo
escolástico relativamente ao pensamento platônico, terá trilhado antes a via da
concordância que a da discrepância. Finalmente, foi com o fito de chamar a
atenção para a problemática Aristóteles-Platão,
examinada muitas vezes em dependência de ©posições escolásticas
externas e puramente verbais; e para provocar uma discussão mais prolongada e
atida ao real das cousas, que neste livro, já quando expusemos a filosofia de Aristóteles, frisamos, mais do que o
ordinário. o platonismo que nela se faz sentir.

d)    Proibição de Aristóteles

A seqüência da evolução histórica viu, certo, em
a novidade, como é costume, só o diverso e o seu aceite pacífico não se
consumou sem dificuldades. Já em 1210 um concilio provincial proibiu se
ensinassem as obras de Aristóteles sobre
filosofia natural e seus comentários. Mas se continuou a permitir o estudo
tradicional da lógica aristotélica. A proibição parece andar ligada com a
posição eclesiástica contrária ao panteísmo de Amalrício de Bènes e Davide
de Dinant, de inspiração neoplatônica. Como se via um palpável
parentesco entre o Aristóteles árabe
e o neoplatonismo, também Aristóteles caiu
em descrédito. Em Tolosa, onde não ensinou nenhum professor do panteísmo — Amalrício estava em Paris — também não
houve nenhuma proibição de Aristóteles. Lá
continuaram, como entre os ingleses, o estudo das obras físicas de Aristóteles. Ia-se fortalecendo a idéia
de, não somente não ser Aristóteles panteísta,
mas ao inverso, de a sua filosofia vir plenamente ao encontro do pensamento
escolástico. Essa convicção penetrou também em Paris e, apesar das duas
condenações de Aristóteles, de
1245 e 1263, já não se podia opor barreiras à vitória do estagirita. As
proibições caíram no esquecimento. Por fim Gregório IX em 1231 determinou que
as obras filosóficas deveriam continuar proibidas até ser o seu valor
verificado por teólogos autorizados. Ficava assim, de fato, o caminho
desobstruído. E em 1366 foi-se a ponto de os legados do Papa exigirem como
condição imprescindível para o licenciado na Faculdade das Artes o estudo de
todas as obras de Aristóteles. (Cf. M. GRabmann, I divieti
ecclesiastici di Aristotele sotto Innocenzo III e Gregório IX,
Roma, 1941; Guglielmo
di Moerbeke, il traduttore delle opere di Aristotele,
Roma,  1941.


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