NICOLAU DE CUSA: IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA – História da Filosofia na Idade Média

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA



Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

2 — NICOLAU DE CUSA: IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA

Se colocamos Nicolau
de Cusa na baixa escolástica, com isso não queremos dizer seja a sua
filosofia um reflorescimento tardio da escolástica. A específica técnica
escolástica das questões e respostas, a silogística e a ciência das escolas
fundadas no culto da autoridade, tudo isso lhe é estranho; e mesmo pretende
libertar a filosofia da pressão desse método. Mas vive ainda no outono da Idade
Média e se alimenta do seu grande tesouro de idéias, onde se conservou o
espírito da antigüidade e da patrística. Compreende os pensamentos prenúncios
do futuro, que assinalaram as doutrinas’ matemáticas e naturalistas do séc. 14,
e quer concentrar em si essa Idade Média. Não se coloca em oposição com ela,
como Bacon ou Descartes, mas
pretender unificar-se substancialmente com ela. Cristianismo, platonismo e
ciências naturais são os três grandes componentes do seu pensamento.
Encontra-os na Idade Média, mas soterrados e paralisados por força de mal-entendidos.
Quer reduzi-los às suas origens, entendê-los mais profundamente e, numa nova
síntese, insuflar-lhes nova vida. Já não pensa subtilizar com a ratio sobre
a Revelação, mas coloca I a razão mesmo em problema e, assim, dando-lhe a
primeira plana. Daí o serem as idéias que pôs em curso, de importância tal,
que só mais tarde fizeram sentir toda a sua influência na filosofia do
idealismo alemão, de modo que se pode considerar o Cusano como "o
verdadeiro fundador da filosofia alemã" (E. Hoffmann). Mas, o que ainda é mais importante, o Cusano serve
de traço de união entre a Idade Média e os tempos modernos; conjuga a
filosofia alemã com a cristã, numa íntima continuidade no espírito ocidental!

Vida

Nicolau Chrypfes (Krebs) nasceu em 1401
em Cusa, sobre o Mosela. Educado pelos Irmãos da vida comum, em Deventer,
recebe dessa educação duradouras influências: o amor pelos livros e pelas
línguas antigas, a idéia de um Cristianismo vivido e formativo da vida; mas,
sobretudo, a vida mística. Estuda em Heidelberg (1416), mas nenhuma atenção lhe
"merece a via Marsiliana, como chamam ali ao ockamismo; pois, já
depois de um ano retira-se para Pádua onde estuda direito canônico, e
mais, ciências naturais, matemática e filosofia. Em Pádua toma contacto com o
mundo antigo, grego e romano; isso em parte lho possibilitaram os mestres vindo
da própria Grécia. Depois de seis anos volta para a pátria, repassado do
espírito de uma terra e de uma educação clássicas. Passando por Mogúncia,
dirige-se para Colônia, onde se ordena de sacerdote em 1430, alargando assim as
possibilidades de sua ação.   Em 1432 aparece no concilio de Basiléia, onde
logo se coloca do lado do partido do concilio; mas em seguida, como não se
podia chegar a uma concórdia, do lado do Papa. Essa atitude não foi obra do
acaso, mas uma resultante de toda a sua maneira de pensar. Não levando em
conta que a sua sadia capacidade de decisão não se compadecia com discussões
sem nenhum resultado, sentia-se ele aqui, como sempre, platônico, e assim sabia
que a multiplicidade não pode existir sem a unidade, como não o pode esta sem
aquela. Por isso se declarou em favor de uma suprema autoridade eclesiástica,
como por um poder régio unitário, embora aceitasse a soberania do povo em
matéria tanto espiritual como secular. Era uma aplicação prática do princípio
da μεθεξιζ A mesma atitude precedente o
anima quando participa, em 1438 de uma embaixada à corte imperial grega, cuia
missão era a união com a Igreja ocidental. Seu lema fundamental era una
religio in rituum diversitate;
aí de novo se manifesta partidário de uma
unidade dialética entre a unidade e a multiplicidade, que satisfaria aos
direitos de ambas as partes. De volta, vem-lhe a idéia da Doei a ignorantia, o pensamento da união dos contrários no infinito, que lhe surgiu ao
espírito como uma iluminação. Nos anos seguintes encontramo-lo como legado
pontifício nas dietas de Mogúncia, Nuremberga e Francforte. Em 1448 foi feito
Cardeal, galardão dos serviços prestados aos direitos da Igreja; em 1450,
Bispo de Bréscia e, juntamente, visitador e reformador dos conventos alemães. A
realização dos seus ideais colide com a resistência dos anti-ideais convertidos
em costumes e erigidos em "direitos". Assim, achou-se envolvido em
violentas altercações com o Duque Sigismundo do Tirol, no decurso das quais o
duque o reteve preso algum tempo. O cusano morreu em Tódi na Úmbria em 1464. O
cadáver foi sepultado em Roma, em São Pedro, in vincoli; mas o coração, transportado para a Alemanha, conforme aos seus desejos, foi depositado em Cusa. Ainda hoje se vê em Cusa a sua seleta biblioteca.

Obras

A mais importante das suas obras é o De docta
ignorantia,
(1440) três livros sobre a ‘"douta ignorância", que
tratam de Deus, do mundo e do homem. Ê "a primeira obra clássica alemã,
que, de fato, fundou a filosofia moderna" (E. Hoffmann); do mesmo ano é o De conjecturis, "Sobre
a conjetura", que prossegue no tema da douta ignorância. A Apologia
doctae ignorantiae
(1449) é uma defesa das suas idéias contra os ataques do
reitor de Heidelberga João Wenck. Sob o título comum Idiota (O profano) aparecem
em 1450 três tratados: De sapientia, De mente, De staticis ewperimentis (Da
sabedoria, Do conhecimento, De experiências na balança).
Das relações do
indivíduo com Deus trata o De visione Dei (1453); das do ser com o
possível, o De possest (1460 — Do ser possível). O De
venatione sapientiae
(1463) versa a posição do cusano na evolução
filosófica e é, por assim dizer, o seu testamento filosófico. — Recentes
edições críticas: Nicolau de Cusa opera omnia, iussu e auctoritate Academiae
Litterarum Heidelbergensis,
Leipzig (Meiner), 1932 ss. — Trad. alemã: Schiriften
des Nicolaus von Cues. Herausgegeb. von E. Hoffmann. Philos. Bibliotek,
Meiner,
1936, ss. [Trad. francesa: De la docte ignorance, trad. L. Moulinier,
Paris Alcan, 1930. Nova edição crítica: Nicolai De Cusa Opera Omnia, iussu
et Auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis
(Lipsiae, Meiner)
MCMXXXXIV. O 1.° vol. publ. é o XIII, Directio Speculantis seu de non
aliud,
ed. L. Baur (+) et P. Wilpert.).

Bibliografia

E. Vansteenberghe, Le Cardinal Nicolas de Cues (1920). E. Hoffmann, Nikolaus von Cues. Zwei Vorträfe (1947).
Sobretudo valiosas são as introduções e as notas de E. Bolmenstädt c outros nas
trad. alemãs das Obras de Nicolau de
Cusa editadas por E. Hoffmann na
editora Meiner.    M. DE Gandillac, Nicolas
de Cues 
(1953).

a)    Espírito

A porta de entrada na filosofia do cusano é a
sua epistemologia. Rapidamente podemos nos orientar sobre os seus princípios
capitais pela conversa muito intuitiva entre um "pobre ignorante" e
um "grande retor", numa barbearia romana situada em frente de um
ativo mercado, no forum romanum. O que daí observam lhes oferece o tema
para começarem a filosofar (Idiota de sap., pág. 6 ss. Meiner). Vêem
como aí se conta, mede e pesa. Isso lhes provoca a pergunta: Como se conta, se
mede e se pesa? Distinguindo, diz o retórico. Mas como é que se distingue? Não
é por meio da unidade que se conta (per unum numeratur), tornando-a uma,
duas, três vezes, de modo que um é uma vez a unidade, dois duas vezes, três vezes
e assim por diante? Daí resulta, conclui o cusano, o derivarem todos os
números, da unidade: Per unum ergo fit omnis numerus. O mesmo exatamente
passa com a unidade de peso e de medida. Ê pois pela unidade que contamos,
medimos e pesamos tudo. Mas como devemos conceber e compreender essa unidade
última, princípio do contar, medir e pesar? Isso não o sei eu, replica o retor;
só sei que a unidade não é concebida mediante o número, porque este lhe é
posterior (quia numerus est post unum). E o mesmo se dá com o
peso e a medida. O composto vem sempre depois, acrescenta o ignorante; por isso
não pode ele contar, medir e pesar o simples, mas é o inverso que se dá.
Por onde, aquilo pelo qual se conta, mede e pesa não pode ser entendido pelo número,
medida e piso (numero, pondere, mensura inattingibile). Mas até agora
isto não passava de um exemplo intuitivo. O que pretende o cnsano é princípio
de todo o ser. Ora, neste domínio as relações são as mesmas. O princípio de
todas as covisas é aquilo em razão do qual. no qual e a partir do qual se deduz
o derivado; ora, esse ser não pode ser concebido mediante nenhum outro, mas ao
contrário, é a razão de se compreender tudo o mais, como vimos se dar com o
número: Ipsum est, per quod, in quo et ex quo omne intelligibile 
intelligitur, et tamen intellectu inatingibile.
Nestas reflexões temos em
substância os elementos essenciais da filosofia cusaniana.

α) Docta ignorantia. — Vejamos primeiro a
sua idéia da douta ignorância (docta ignorantia), que abrange várias cousas.
Ora, anda ela .-junta com as mesmas tendências, que antes prosseguia Sócrates com o seu estribilho:
"sei que nada sei".

αα) Como advertência socrática. –
homens, adianta o cnsano, que param no seu caminho sem notarem que ignoram
muito do que pensam saber. Devem ser arrancados da sua ilusão para aprofundarem
mais o que sabem e poderem chegar à verdadeira ciência. O cusano está convencido
da necessidade de arejar a ciência tradicional esterilizada por uma longa
repetição escolástica; ê o que visa com o seu lema de, tendo consciência da sua
ignorância, tornar-se sábio. Mas a. sua doutrina tem ainda uma razão mais
profunda do que essa atualização.

 ββ) Como teologia negativa. — Cusano, como
bem vimos pelas citações feitas, pensa que o princípio de tudo, Deus, não
somente e de fato não é conhecido, mas de nenhum modo pode sê-lo. Deus nos é na
sua essência inacessível (inattin-gibilis). E não só Deus. Mesmo a
essência das cousas somos incapazes de atingi-las e dizer o que são.

γγ) Como via infinita do conhecimento.
"Nada há neste mundo tão exato, reto, verdadeiro, que não possa ser
apreendido de modo ainda mais exato, reto e verdadeiro"’, diz no Idiota
de sap,
II, pág. 32 (Meiner); e o mesmo se lê no De staticis exper e
no De coniecturis. O cusano não resolve de uma penada a questão de um
conhecimento "adequado", como o fizeram antes dele os estóicos e a
Idade Média. O processo do conhecimento para ele é um caminho indefinido,
caminho de conjecturas, donde a sua obra intitulada De coniceturis. Parte
deste princípio, que o nosso pensamento deve tentar a captação do ser sempre de
novos pontos de vista. A palavra tentar é a que ele acentua. A verdade
não se revela logo de uma vez, mas é a passo e passo que nos aproximamos da
essência das cousas. Só os objetos matemáticos e os artísticos, produtos do
nosso próprio espírito, são-nos mais verdadeiros do que na realidade (De beryllo, c. 32). O pensamento, no seu conjunto, não é de todo novo; pois já a
teologia negativa (e o cusano é fortemente influenciado, como a própria língua
e o estilo revelam, pelo PseudoDionísio e sua doutrina sobre Deus como o ser superessencial
e superconceptual) havia dito isto mesmo do nosso conhecimento de Deus; e o
nominalismo, por seu lado, havia rejeitado a teoria do conceito como imagem e
restringido muito os limites do nosso conhecimento das essências. Mas o cusano
acrescenta sempre ao negativo o positivo. Se conhecemos a nossa ignorância a
respeito de Deus é porque sabemos também algo do ser infinito. Se disséssemos
que compreendemos o infinito, diríamos demasiado; mas é possível saber
"algo" a respeito do infinito; e esse saber abrange duas cousas:
ficar muito aquém do objeto e ter conhecimento dele. Igualmente, o cusano dá
razão à atitude crítica dos nominalistas no concernente ao conhecimento das
essências; mas evita logo um relativismo absoluto, admitindo um conhecimento
conjetural, que é uma ciência dos arquétipos. No mesmo lugar onde afirma que
nada neste mundo ê absolutamente certo, pressupõe os tipos ideais da
"absoluta" retidão, verdade, justiça, bondade.   Não são cousas deste
mundo, mas por eles as medimos e, portanto, são eles algo de positivo (Idiota
de sap.
II, pág. 82 ss., Meiner)- Em ambos os casos — do nosso conhecimento
de Deus e da essência das cousas — é a teoria das Idéias e o pensamento da
participação, que permitem ao cusano fazer uma crítica dos limites do nosso
conhecimento, sem cair no cepticismo. Pois a Idéia é o pressuposto de tudo e
tudo dela participa! O pensamento do cusano é mais progressivo do que o da escolástica
apegada demasiado avidamente às species. Sabe ele que o nominalismo viu
Justo em certos pontos, mas não ignora o que a escolástica tem de positivo;
salva o conhecimento das essências concebendo-o como a função de um caminhar
infinito. Em face do nominalismo imprimiu ao leme outro ramo, como o fez Tomás em face de Abelardo; e todavia rasgou o caminho
para o pensamento moderno, dissipando falsas esperanças. Funde assim os
melhores elementos de duas épocas, de modo a fazer cada uma delas aprender da
outra.

δδ) Como caminho místico. — Também
reconhecemos no cusano a vivência da herança do passado, nisto: a douta ignorância
assume para ele um sentido místico. Refere-se a uma intuição do Deus invisível,
em que nos despimos de todo conceito e de toda imagem e fazemos calar tudo o
que de ordinário fala em nós: Mystica theologia ducit ad vacationcem et
silentium, ubi est visio… invisibilis Dei (Apol. d, ign.
pág. 7, Meiner).
Cai-se assim na escuridão, mas esta é luz e a ignorância é o caminho, "que
trilharam todos os sábios, antes e depois de Dionísio" (1. c. pág. 20).
Quanto ao cusano, ainda neste ponto, é precursor do modo de sentir moderno, o
mostra uma comparação com o Capítulo "Les sources" da Lógica de
Gratry.

β) Apriorismo. —"O segundo elemento
na epistemologia do Cusano é o seu apriorismo. O unum. é um
pressuposto anterior a todo conhecimento. Isto o salienta muito claramente, a
conversa no Fórum Romanum, com que começamos esta exposição.

αα) O unum. — Como Agostinho (De Ub. arb. II, 8, 22), a quem o cusano
aqui segue de perto, a unidade ele não a faz oriunda da experiência mediante a
abstração; mas ao contrário, tudo tem a sua origem e é cognoscível pelo e no unum. Explicações mais minuciosas ele as dá no cap. 4.° do Idiota in mente. O
nosso espírito, aí se diz, é imagem e semelhança do espírito divino. Ora, este,
como idéia absoluta, é a idéia de todas as idéias, a forma de todas as formas.
E nesta unidade absoluta encerra tudo; de modo que dela, como a complicatio, se podem deduzir todas as explicationes, surgindo assim o mundo da
multiplicidade. Assim, do mesmo modo, o nosso espírito, embora como imagem,
todavia realmente abrange em si tudo e pode deduzir tudo de si, como o número é
o desdobramento da unidade; o movimento, o do repouso; o tempo, o do instante
e da eternidade; o composto, o do simples; a extensão, o do ponto; a
desigualdade, o da igualdade; a variedade o da identidade e assim por diante.

ββ) A sensibilidade, — O cusano presta
homenagem a Aristóteles quando ele,
contra Platão, ensina que a alma
é uma prancha não-escrita onde os sentidos devem começar a escrever. Mas admite
que o espírito possui um critério original, sem o qual não poderia dar um
passo (concreatum iudicium); com esse critério ele por si julga de tudo
(per se), como se se tratasse, p. ex., de um autêntico iustum, bonum,
ver um
ou de uma essência (quidditas), quando os sentidos nos
anunciam algo desse gênero. O espírito é, claro, superior aos sentidos. O
conhecimento começa certamente por eles, mas o espírito (mens) é o seu
juízo (iudicium) e só com este se aperfeiçoa e completa o conhecimento.
O cusano se refere claramente nesse lugar ao Fédon (75 b-e e 100 b)
(cf. Sist, Fil, Antigüidade, pág. 85) e nota que se se quiser entender,
pelas Idéias platônicas, essa faculdade judicativa original do espírito, então
"Platão não errou totalmente". Aqui está também a razão mais
profunda da douta ignorância do cusano. Apropriou-se a idéia platônica da
participação e levou-a às últimas conseqüências. O apriorismo da idéia domina
toda a sua filosofia. E com isto se torna por si mesmo claro, que tanto o ser
como o conhecer conceptual ficam sempre inferiores ao ideal completo da
verdade; porque a nela ser como a idéia, mas não o consegue, como diz Platão no Fédon, 756. Mas como
nós participamos da Idéia e esta está de certo modo sempre
"presente" no ser e no espírito, o nosso conhecimento não se reduz ao
negativo. E assim superamos e cepticismo e o relativismo e alcançamos um
autêntico conhecimento.

γ) Coincidentia oppositorum, — Se tudo
pode ser derivado do unum,  como os números da unidade, então os
contrários, que surgem com a multiplicidade, claramente coincidem no infinito.
Este é o pensamento do cusano e nesta idéia da coincidentia oppositorum viu
ele a peça mestra da sua filosofia, aquela iluminação que nele despontou
quando voltou de Bizâncio.

 αα) Ontologicamente. — A coincidência é
antes de tudo um princípio ontológico. Como tal significa que no infinito as
barreiras se eliminam e coincidem. Se, p. ex., supusermos um quadrado de 5,
6… n lados, aproxima-se ele sempre e cada vez mais do círculo,
tomando-se cada vez maior, e se o círculo for infinito, coincide com ele. Assim
se dá com todos os contrários. E no fundamento primeiro infinito do ser, em
Deus, tudo se acha como reduzido à unidade, o que, neste mundo se desdobra na
multiplicidade e na variedade. Nele tudo é um e unidade; só depois de derivarem
dele, as cousas se separam e se opõem.

ββ) Logicamente. — Estas considerações
ontológicas levaram o cusanuo à concepção epistemológica, que também o nosso
entendimento, com a sua multidão de regras e determinações conceptuais, tem o
seu ponto de desdobro na unidade infinita da razão. As regras da lógica com o
seu princípio básico de contradição valem só para a atividade do entendimento:
mas na razão elas se dissipam, por ser ela a fonte de toda a vida espiritual,
aquela derradeira unidade, de cuja virtude criadora deriva e toma forma a
multidão da multiplicidade. Viu-se nesta concepção da razão o começo real da
moderna filosofia alemã; pois já aí está a teoria da unidade sintética como o
elemento gerador de todo o nosso conhecimento. Essa é a base da Critica da
Razão
de Kant; isso mesmo é o
que Leibniz queria: o que Fichte transformou na teoria do eu
puro; e por meio do que Schelling e
Scheleier-macher pretenderam
fundir o eu individual com a infinidade do universo e com Deus. Se não se
exagerar a idéia da atividade criadora do espírito, o que significa, na
filosofia moderna, uma oposição com a antiga metafísica, coisa que no cusano
ainda não existe — (no espírito divino preexiste todo o mundo exemplarmente — (Idiota
de sap.
II, pág. 30 Meiner) — e o nosso espírito o constrói com uma atividade
expressamente designada como assimilatio (De mente, cap. 4] —, essa
interpretação é possível e é sobretudo importante para o conhecimento da
conexão entre a filosofia moderna e o pensamento antigo e medieval.

γγ) Na antigüidade. — O pensamento antigo,
dizemos, porque (e aqui tocamos de novo no fundamento da doutrina da
coincidência dos contrários) é a dialética platônica que sabe derivar toda
multiplicidade da Idéia do Bem em si, com o auxílio da diérese; por isso
tem aí a coincidentia oppositorum a sua pátria natural, o que se vê
sobretudo nas especulações de Platão, na
sua velhice, sobre a Idéia do número.

δδ) Na Idade Media. — E dizemos da Idade
Média, porque toda essa época mais ou menos conscientemente conservou essa
atitude na feição neoplatônica do seu pensamento. Não foi somente o
PseudoDionísio que, comparando a derivação das cousas do Unum com a dos números, da unidade,
atraiu a Idade Média para esse caminho, e levou o cusano a admitir essa
doutrina; nem foi somente o Eriúgena e
Teodorico de Chartres que assim
pensaram! Também o De intelligentiis começa a metafísica com o infinito;
Alberto Magno ensina que o ser
procede de Deus, como o intellectus universaliter agens, numa
multiplicidade sempre maior. E no mesmo Tomás
de Aquino o Absoluto contém "complicadamente" na sua infinidade
transcedente uniforme o que, na sua explicitação, se chama universo. Na S.
th.
I, 4, 2 ad 1 lemos o seguinte de sabor acentuadamente cusânico: In
causa onmium necesse est praexistere onuiia secundum naturalem unionem; et sic
quae sunt diversa et opposita in se ipsis, in Deo praeexistunt ut unum.
O
próprio Santo Tomás faz notar, nesse lugar, a conexão desse modo de pensar com
o do Ps.Pionísio.

b)    Deus

α) Como complicatio. — No liv. I da Docta
ignorantia
mostra o cusano que Deus é o Maximnm, a plenitude absoluta,
a quem nada falta, não susceptível de aumento nem diminuição. Por isso Deus
inclui tudo em si, que, fora dele, o nosso entendimento vê e considera como
distinto. Deus é a complicatio de todas as cousas; e, não sendo nele
distintas, é ele a coincidentia oppositorum. "Deus é a essência
absolutamente simples de todas as essências; todas as essências que dele
procedem, procederam e procederão, estão real e eternamente nele
contidas"’   (Docta  ign. I, pág.  32,  Meiner).    Em

Deus o homem não se distingue do lobo, nem o céu
da terra, nele não há nenhuma alteridade nem variedade (1. c. 49). Mas a
evolução desse pensamento, que acabamos de expor, abriga ainda outra cousa. O
cusano tenta, recorrendo a reflexões matemáticas, tornar inteligível a sua
idéia. Mostra, p. ex., que as oposições se manifestam só nos círculos e linhas
finitos; mas num círculo infinito a curvatura é tão infinitamente pequena a
ponto de poder considerar-se nula; e então linha circular e reta coincidem.
Reflexões semelhantes faz ele com o triângulo e a esfera.

β) O mundo como explicatio. — O mundo se
compreende então naturalmente como uma explicatio de Deus. Disso trata o
livro 2." da Docta ignorantia… O mundo existe por, de e em Deus.

αα) Multiplicidade. — Como os números
resultam da unidade, assim o mundo, na sua multiplicidade, de Deus. Exatamente
por esta idéia, que o cusano hauriu no Ps.Dionísio, reconhecemos ainda uma vez
o platonismo do nosso pensador.

β) Totalidade. — Por isso mesmo o mundo é
também uma totalidade e consta de totalidade»; cada cousa está em cada cousa (quodlibet
in quodlibet),
porque Deus é tudo em tudo. Este pensamento foi reassumido na Renascença. Mas o cusano não pensa que, por ser assim, cada cousa individual
fique absorvida na sua individualidade e nada mais signifique, em si mesma,
como o dirá mais tarde o panteísmo. Muito pelo contrário, o individual deve ter
a sua existência própria, sem a qual o todo não seria possível. O indivíduo
manifesta, no seu modo de ser e na sua realidade independente, o espírito e a
essência do Todo. E isso mesmo confere ao universo unidade, coesão, forma,
verdade e cognoscibilidade. Aqui ressurge a idéia da participação, que tudo
salva — a individualidade e a totalidade.

γ) Panteísmo? — Pensa-se muitas vezes que o cusano é
panteísta. Certamente isso não é exato. O panteísmo concebe o universo como
Deus; cusano pretende que ele deriva de Deus (E. Hoffmann). O que dá a chave para sol ver a questão é, de
novo, a idéia da participação. Nega. ele rotundamente a identificação e afirma
a distinção, embora sem admitir uma dissociação entre Deus e o mundo. Sendo o
mundo imagem e semelhança de Deus, é-lhe, certo, semelhante,  mas não idêntico.
O cusano distingue entre semelhança e identidade; a escolástica teria dito analogia. O cusano se atem à idéia de participação, base de toda analogia. Nela
fundado afirma ele a única oposição, que não intenta suprimir, mas antes
reforçar — a oposição entre origem fontal e derivação, medida e medido, criador
e criatura.

δ) Especulação e ciência da Natureza. — A
especulação filosófica do cusano sobre o infinito, a ignorância, a-, unidade e
a multiplicidade conduziu a um enriquecimento concreto da ciência da natureza
e de seus métodos. Se toda realidade é individual e única, o se também o
universo é infinito, embora "contraído", nada haverá (pie se repita
igualmente duas vezes, a terra não estará no centro do mundo, não haverá nenhum
centro, a esfera das fixas não será o limite do universo, a nossa terra é uma
estrela como as outras e cada ponto é centro porque em toda parte e do mesmo
modo vive e alenta, a totalidade infinita. Assim o cusano é precursor de Copérnico; e os seus métodos
matemáticos de contar, medir e pesar, que introduziu na ciência da natureza,
trai o espírito de Kepler, Sua
obra De staticis experimentis (Tentativa da balança) não refoge ao
quadro das suas especulações. O filósofo do conhecimento conjetural sabe que
nada neste mundo pode atingir a perfeita exatidão, "mas o resultado da
balança é o mais próximo da verdade" (De stat. exper. pág. 119, Meiner).
Também Platão tinha visto na
matemática o caminho reto para a verdade do Ideal. E desde que o cusano
aprendeu a medir fundamentalmente o mundo com a idéia, tudo lhe deve ser
proporcional. Assim propõe se meça o pulso com o relógio, examinem-se com a balança
as secreções dos sãos e dos enfermos e se fixe o peso específico dos metais.
Não pôde ele admirar os resultados deste método nas ciências naturais, mas
estava certo da sua possibilidade.

c)     O  homem

No 3.° livro da Docta ignorantia trata o
cusano do homem. Deve ele descobrir o caminho para o absoluto. Este caminho
leva para Cristo.

α) Cristo como caminho. — Neste a
idéia da humanidade se encarnou, a fim de o homem poder, por meio dele,
reencontrar o divino a que é chamado e só pelo qual pode tornar-se
completamente homem. Aqui se manifesta ainda uma vez a posição fundamental do
pensamento cusânico. Perder-se no infinito ê a velha aspiração da mística.
Mesmo antes do cusano já a mística alemã nutria essa aspiração.

β) A individualidade como tarefa.
Mas já Echardo tinha acrescentado
à idéia do universal a cultura do individual. Conhece ele um Ego archetypus no espírito divino, que devemos trazer diante dos olhos porque, assim,
chegaremos à nossa, forma ideal e, assim, à nossa personalidade ("mesmeidade").
O cusano acentua e desenvolve esta idéia, trazendo assim, também por aí, uma
importante contribuição para a gênese da filosofia alemã. Para ele o indivíduo
é o microcosmo ao lado do macrocosmo. Nele confinem poder
criador, liberdade e espontaneidade e, assim, se torna um sujeito substancial
com individualidade única e independente. Um mundo real em miniatura! Mas porém
como a multiplicidade das forças no macrocosmo é reduzida à unidade pela idéia
única do Todo, assim também, acima da individualidade do particular, está a
idéia do seu eu melhor, a fim de a vida, dispersa no espaço e no tempo, não
desvanecer-se no acaso, no azar, no absurdo e no capricho. Deste modo o homem
se alça sobre o mundo e a sua matéria e é levado agora pela primeira, vez a
concentrar-se em si mesmo.

γ) O homem puro. — Assim o homem,
dotado com o presente divino da liberdade, e guiado por uma idéia supratemporal,
vive a sua vida neste mundo, mas sem ser deste mundo, que ele pretende
configurar, mas de um plano superior. O seu eu é, aqui, algo mais que a
consciência de um animal com cérebro, no apogeu do desenvolvimento. O homem é
algo de totalmente outro. "O eu puro, despido de imagens, já não é parte
do mundo natural, mas tem parte no mundo ideal. Mas exatamente a idéia é
o verdadeiramente indivisível e eterno; e isto abre pela primeira vez o caminho
ao pensamento que a nossa verdadeira individualidade, na terra, só se nos
realiza no nosso próprio eu" (E. Hoffmann).
Quando mais tarde Kant se
esforçara por mostrar o fato moral da razão prática isenta de todo
"elemento material" a fim de o homem se informar a si mesmo, já o
cusano o antecipou nesse caminho.

d)    Influência

α) França. — O cusano exerceu maior
influência na França e na Itália, que na Alemanha. Na França desenvolveu-se a
idéia da douta ignorância desde Bovillus
até Sanchez e GASSENOR.
Este último já lhe imprimiu a direção do cepticismo negativo no estilo de Montaigne e Charrox. Como Descartes
se move na mesma direção, extinguem-se na França os elementos positivos
do pensamento do cusano.

β) Itália. — Na Itália FICINUS e MirâNDola puderam ter recebido
inspiração dele. Também MirÂNdola fala
da infinita dignidade do homem fundada no seu poder criador, na sua liberdade e
individualidade. Mas ao passo que para o cusano a atividade humana é regulada
por uma idéia suprema que lhe dá sentido, Pico de la MirÂNdola leva em conta apenas o dinamismo infinito do
Demiurgo humano e o faz senhor de si mesmo. Para o Cusano o senhor é Cristo. Giordano Bruxo, porém, paganizou e,
pior, popularizou completamente o pensamento de  Gusa.

γ) Alemanha. — Através de Bruxo, Paracelso e Leibniz as idéias do cusano vêm exercer
influência também na filosofia alemã. Antes os tempos não lhe eram propícios,
por causa das turbulências religiosas e políticas. Mas agora as suas idéias,
como vimos, assumem importância a ponto de se considerarem o ponto de partida
da grande filosofia alemã. "O cusano viveu no outono da Idade Média e,
histórico-cultural-mente bem como históríco-espiritualmente, só em função dessa
época pode ser entendido; mas considerado do ponto de vista dos problemas
puramente históricos, esse outono era mais amadurecido do que a exuberante
primavera subseqüente da Renascença e o farto verão do século cio Iluminismo (AufklArung). Talvez devesse o outono
voltar de novo até produzir-se uma situação da problemática filosófica, na qual
se renovassem as posições principais do cusano (E. Hoffmann). Há panegiristas da filosofia moderna que, na
filosofia escolástica, só vêem trevas; e adeptos da escolástica, que não
descobrem senão erros na filosofia moderna. O estudo da filosofia do cusano
poderia contribuir para as duas partes conhecerem como, do lado contrário, se
acham elementos da legítima herança e, assim, levá-los a se compreenderem
melhor a si mesmos e aos outros.


Índice
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