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110.   Substância.

É
maravilhosa a arte psicológica com que Hume toma noções complicadas e as analisa.
Vamos vê-lo a propósito de quatro destas noções, que são famosas na história da
filosofia humana pela beleza da análise levada a efeito. A primeira é a análise
da idéia de substância. A idéia de substância é uma idéia: qual é a impressão
que lhe corresponde? Vejamos; que se apresente essa impressão; que a idéia de
substância nos diga qual é sua certidão de legitimidade. Nós olhamos a idéia
de substância e encontramos que ela designa aquilo que chame Locke o
"não-sei-quê" que está por debaixo das qualidades e dos caracteres.
De modo que se eu digo a substância de uma lâmpada, não quer dizer que designe
com a palavra "substância" sua côr verde, porque a lâmpada é algo
mais que a cor verde; não quero dizer tampouco que designo seu braço, porque a
lâmpada é algo mais que um braço: é a cor ademais do braço. Se designa a côr
verde, deixa de designar o braço; se designa o braço, deixa de designar a cor
verde. Hume faz uma decomposição como quem abre uma laranja em gomos, e mostra
perfeitamente que a idéia de substância não está originada por nenhuma das
impressões que atualmente eu recebo. Não é também a soma delas; porque por
substância não entendemos a soma dessas impressões mas um quid, ou, como diz
Locke, um "não-sei-quê" que serve de esteio a todas essas impressões,
mas que não é nenhuma delas. Quer dizer, que a idéia de substância não tem
impressão da qual possa ser derivada e que a fundamente; e como não tem
impressão que a fundamente, é uma idéia formada por nós, é uma idéia fictícia,
como diria Descartes, é uma idéia de nossa imaginação.

Passemos
agora à própria idéia de existência, à mesmíssima idéia de existência. Quando
dizemos que algo existe, nós podemos encontrar a impressão correspondente ao
"algo" do qual dizemos que existe. Porém quando acrescentamos que
existe, esse existir do "algo", essa existência, é algo que não
encontramos em impressão alguma. Se eu digo que este copo de água existe, e
analiso o que quero dizer, encontro-me com uma multidão de impressões, que são
as do copo d’água. Porém onde_ está a impressão de que existe, a impressão da
existência? Também não é a soma de todas as impressões nem uma impressão em particular. Logo a existência do copo d’água é algo ao qual não corresponde nenhuma
impressão. É outra idéia feita por nós, forjada por nós, por nossa imaginação.

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