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Sobreveio segunda razão para descontentamento, quando, no ano de 1682, o governo da mãe-pátria deu a uma companhia de negociantes portugueses um privilégio de vinte anos para o exclusivo comércio do Maranhão, ao passo que até então, ao menos, todos os portugueses tinham ali igual liberdade de comércio. De fato, semelhante monopólio é sempre odioso e prejudicial para uma colônia; duplamente se ressentiu, porém, o Maranhão. Como na maioria dos Estados escravocratas, também aqui se considerava o trabalho braçal na lavoura, justamente porque cabia de preferência ao escravo, como indigno do branco livre, que quanto possível o evitava; em compensação a atividade da população dedicava-se de preferência ao comércio, de sorte que em quase nenhum outro lugar, relativamente, existiam mais negociantes, merceeiros, vendedores ambulantes do que aqui; mesmo os eclesiásticos, e, apesar de insistentes proibições, também os funcionários da coroa eram interessados no comércio; e agora ia tudo isso acabar, em favor de uma companhia e de seus agentes.

Essa sociedade privilegiada, além disso, parece que abusou demais de sua vantagem; na verdade, os preços de cada artigo de comércio em retalho estavam desde logo estipulados no privilégio, porém indenizavam-se os especuladores desse constrangimento, falsificando a qualidade e quantidade das mercadorias. Por outro lado, o privilégio também continha uma cláusula que de certo modo poderia reconciliar os maranhenses com o novo monopólio, isto é, a companhia havia assumido a obrigação de fornecer anualmente 500 escravos negros, ao preço fixo de cem mil réis por cabeça, e tal introdução teria sido muito desejável num país tão pobre em braços de trabalho; porém esta obrigação não foi cumprida; passou-se o primeiro ano, e nem um só negro desembarcou na costa. Então o descontentamento não se conteve mais.

Em Belém, sob as vistas e a vigilância do governador-geral, limitou-se o povo a recorrer aos meios legais, fez uma petição ao rei para supressão do monopólio e ao mesmo tempo restabelecimento da escravização dos índios. Ao contrário, em São Luís os acontecimentos tomaram feição perigosa, pois ali estava o governo nas mãos de um fraco lugar-tenente do governador, ao passo que os descontentes, de seu lado, tinham como chefe um concidadão hábil e resoluto.

Era ele Manuel Beckman, estrangeiro, como o seu nome indica, talvez de origem alemã ou holandesa, porém nascido em Lisboa52 e agora estabelecido numa fazenda à margem do rio Meari (província do Maranhão), homem de não pequenos dotes intelectuais, mas que, como fazendeiro, compartilhava plenamente das idéias de seus vizinhos a respeito dos índios, dos jesuítas e do monopólio; além disso, ele guardava particular ressentimento contra o governo colonial que o havia antes, de modo bastante arbitrário, condenado a longo exílio por causa de maquinações revolucionárias. Na sua fazenda se fizeram as primeiras reuniões secretas dos conjurados; dali partiam por vias secretas as cartas que espalhavam por todos os lados as sementes da revolução; e nessa obra de sublevação ele encontrou, na maioria do clero, colaboradores mais que prontos.

Houve mesmo um religioso que se permitiu de, na catedral de São Luís, pregar abertamente contra o monopólio e exortar o povo a defender-se a si próprio, porque por milagres debalde se esperaria!

Quando os ânimos se achavam bastante preparados, apareceu o próprio Beckman em São Luís, onde ele já contava mais de 60 cúmplices, para aguardar o momento oportuno. Este não tardou. Ao findar a tarde, a 24 de fevereiro de 1684, teve lugar uma procissão noturna que levava a imagem de um santo de uma igreja para outra; os conjurados aproveitaram esta ocasião para convocar dissimulada-mente o numeroso ajuntamento de povo para uma reunião que teria lugar imediatamente depois, à meia-noite de 24 para 25.

Quase todos compareceram no lugar determinado, no adro do convento franciscano, justamente diante das portas da cidade, onde então Beckman num discurso veemente lhes explicou a situação das coisas.

"Não resta outra coisa, — concluiu ele, — senão cada um defender-se por si mesmo; duas coisas são necessárias: a revogação do monopólio e a expulsão dos jesuítas, a fim de se recuperar a mão livre no que diz respeito ao comércio e aos índios; depois haverá tempo de mandar ao rei representantes eleitos e obter a sanção dele".

Somente uma voz em todo o ajuntamento se elevou com palavras de advertência; porém essa voz foi abafada pelos aplausos dos demais; mesmo se não fosse a proteção que lhe deu Tomás Beckman, irmão do agitador, o seu protesto poderia ter-lhe custado a vida.

E agora cumpria aproveitar rapidamente o momento, as boas disposições da hora; um dos presentes, Manuel Serram de Castro, puxou a espada: "Era agora ou nunca o tempo oportuno para agir!" Todos imitaram o seu exemplo. Correram de volta à cidade, atacaram de surpresa e prenderam o subgovernador, as autoridades civis e militares; a guarnição aderiu aos revoltosos, e, antes de amanhecer o dia 25 de fevereiro, estava toda a cidade, com o arsenal e todas as fortalezas, nas mãos dos revolucionários. Logo em seguida convocaram uma junta dos três estados, na qual cada um deles, clero, nobreza e povo, tinha dois representantes: reuniu-se ela, e, sob a preponderante influência de Beckman, decretou a revogação do monopólio, a expulsão dos jesuítas, finalmente, a deposição do subgovernador e do governador-geral, resoluções que foram aclamadas tumultuosamente pelo povo rejubilante, sancionadas com todas as formalidades pelo Conselho Municipal e depois solenizadas por festivo Te-Deum na igreja matriz.

A revolução triunfante agora constituiu-se regularmente; o poder executivo era conferido a uma comissão de três nobres, com a cooperação das autoridades civis ordinárias; assistiam-lhe dois "Procuradores do Povo" que eram presentes às deliberações e olhavam pelos interesses de seus eleitores.

Entre esses procuradores estava o próprio agitador Manuel Beckman, que, por seu espírito e sua influência sobre as massas, dominava todos os demais, e dentro de pouco tempo transformou de tal modo as recém-criadas autoridades revolucionárias, que só restaram entre elas os seus mais dedicados partidários; estava assim, de fato, se não de nome, todo o poder nas suas mãos, e ele manejava-o com o maior rigor, de modo que nenhuma divergência podia manifestar-se. Entre os funcionários, quem não parecesse seguro era despedido; a guarnição e a milícia foram reorganizadas, sob novos oficiais; finalmente, no domingo de Ramos de 1684, foi também executado o decreto de banimento contra os jesuítas; eles foram deportados, parte para Pernambuco, parte para Belém.

Nesse ínterim procuraram os déspotas do Maranhão também atrair ao seu partido a capitania irmã, do Pará; um frade seguiu para Belém, levando correspondência; porém o Conselho Municipal de lá informou imediatamente o governador-geral da proposta e pediu o seu auxílio para castigar os rebeldes. No primeiro momento Francisco de Sá de Meneses logo declarou que ele próprio se poria a caminho contra São Luís; todavia, por dissuasão das autoridades, ele desistiu do plano, tanto mais porque ele também não podia contar, em absoluto, com a fidelidade da população do Pará, e contentou-se em mandar um plenipotenciário. Este, munido com as necessárias cartas dissuasórias, logo se pôs a caminho; ele pediu ingresso em São Luís e uma entrevista com os chefes; todavia isto lhe foi recusado, porque não se podia responder por sua vida, e assim ele teve que voltar, nada feito. Segundo negociador, embora fosse admitido, não teve melhor sorte; era investido de plenos poderes para oferecer a todos completa anistia, a Beckman especialmente uma quantia de 4.000 cruzados, e a perspectiva de honrarias e postos, se se submetessem; contudo, Beckman repeliu com desprezo o suborno e ordenou que o enviado se retirasse imediatamente de São Luís. Com isso estava plenamente declarado o rompimento. Os movimentos revolucionários anteriores, como os de 1661, ainda haviam guardado as aparências de legalidade, e ao menos respeitado os funcionários da coroa; esta vez, porém, haviam os chefes, logo de começo, lançado na prisão o subgovernador, proclamado a deposição do governador-geral, e agora, apesar de duas intimações, se haviam recusado a voltar à obediência; tratava-se evidentemente de uma revolução, que só vencedora podia achar perdão.

Até a esse ponto havia Beckman arrastado o povo, no primeiro calor do entusiasmo; porém a maioria aterrou-se agora com as conseqüências futuras, e por suas meias medidas a obrigou a tomar de novo o caminho da legalidade. O seu irmão, Tomás Beckman, foi enviado a Lisboa, a fim de tratar com o governo; ao mesmo tempo consentiu-se que Miguel Belo da Costa, nomeado pelo governador-geral comandante da cidade, assumisse o seu cargo. Este oficial demonstrou-se perigoso adversário; ele reorganizou a guarnição; os voluntários, que ao primeiro entusiasmo haviam tomado as armas e agora estavam mais que fartos do serviço, ele, de bom grado, os despediu, e conservou sob as bandeiras somente os soldados efetivos, nos quais ele podia de novo confiar completamente.

Por outro lado, a gente da lavoura, que no princípio do motim havia em grandes bandos afluído à cidade, agora pouco a pouco voltava para casa, às suas ocupações. Assim ficou Miguel Belo, embora nominalmente subordinado, dentro em breve com igualdade de poder diante das autoridades revolucionárias.

Não passava despercebida a Beckman esta mudança da situação; ele compreendeu que a sua posição se tornava de dia para dia mais insustentável, carecia de ser de novo fortalecida; para esse fim convocou ele uma reunião do povo, na qual ele queria que lhe conferissem a dignidade de comandante superior da capitania do Maranhão, com poderes ditatoriais. Todavia, esse plano fracassou; informado a tempo, o comandante da cidade tomou com as tropas tal posição, que os partidários de Beckman não ousaram expor-se, e o próprio agitador se retirou para a sua casa.

Com isto quebrava-se a força da revolução; se Miguel Belo, ou talvez o gover-nador-geral, houvesse procedido energicamente, todo o Maranhão teria voltado à ordem. Contudo, Beckman não deu por perdida a partida; ele estabeleceu relações com João de Lima, português de origem elevada, que, depois de mocidade tormentosa, se havia devotado ao ofício de flibusteiro e agora tornava inseguras as águas do Norte do Brasil, com uma esquadra de piratas; a este ele chamou em seu socorro, ofereceu-lhe o porto de São Luís e a cidade para refúgio; e, como parece, estava ele então firmemente resolvido a fazer aberta resistência à coroa de Portugal. Por outro lado, o comandante da cidade e o governo colonial não ousavam dar golpe decisivo; eles esperavam reforços de Portugal; e assim se prolongou a insurreição do Maranhão até ao ano seguinte, 168.5.

Entretanto o gabinete de Lisboa acompanhava o estado de coisas no Maranhão com a máxima atenção. Receava-se que os insurretos se lançassem aos braços dos seus vizinhos, o governo colonial de Caiena; e de tal oportunidade não deixaria certamente de se utilizar o rei de França daquele tempo, o ambicioso Luís XIV, tanto mais porque desde muito já ele lançava vistas cobiçosas para o vale do Amazonas e as terras do Norte do Brasil. Por este motivo foram tomadas as necessárias disposições, a toda a pressa, armados uns duzentos soldados, dois navios, e o comando supremo da expedição, juntamente com o governo-geral do Maranhão, o rei d. Pedro II os passou às mãos de um experimentado estadista e militar, Gomes Freire de Andrada53.

Este assumiu prontamente a incumbência, porém exigiu plenos poderes, os mais amplos, porque só assim ele podia tomar toda a responsabilidade. Isto lhe foi concedido; e Gomes Freire escolheu, ele próprio, então, com a maior habilidade, os mais distintos funcionários que o deviam acompanhar, tudo gente que pela capacidade, em parte também pelo conhecimento das condições locais ou pelas ligações de família no Maranhão, era especialmente apta para esse serviço; ao mesmo tempo ativava ele os preparativos, muitos dos quais à sua custa, de modo que já a 25 de março de 1685 pôde fazer-se de vela.

Em São Luís, à vista das costumadas delongas anteriores, não se tinha absolutamente imaginado que o governo fosse desta vez providenciar tão rapidamente. Quando à tarde de 15 de maio a esquadra ancorou ali no porto, julgou o governo revolucionário reconhecer nela o pirata João de Lima e mandou imediatamente um enviado a bordo. Naturalmente, este último teve a maior surpresa ao encontrar, ao invés dos desejados aliados, o novo governador-geral; todavia, o acolhimento amigável e o interesse com que este último falou dos padecimentos do povo, dissiparam todo o seu receio e quando, à despedida, Gomes Freire indicou dois passageiros extenuados pelo enjôo do mar, que suspiravam por se achar em terra firme, o enviado logo se mostrou solícito em levá-los à cidade no seu bote.

Eram eles um oficial português, Morais, e um cidadão de Belém; apenas desembarcados, procuraram estes em São Luís os seus parentes c amigos e ainda na mesma noite voltou um deles para bordo, com a informação de que uma grande maioria dos cidadãos desejava o restabelecimento da ordem, e estava pronta, no caso de necessidade, a prestar auxílio para esse fim. Chegaram recados do mesmo teor de muitas localidades vizinhas, que logo, à vista das bandeiras reais nos mastros, acudiram para se pôr em comunicação com os navios; e assim resolveu o governador-geral tentar o desembarque já no dia seguinte de manhã.

O partido revolucionário achava-se, entretanto, em plena dissolução. A narrativa do enviado sobre o acolhimento amigável a bordo produziu profunda impressão; além disso, o nome de Gomes Freire, as suas qualidades militares, tanto como o seu bom coração, eram conhecidos em geral; e a maioria achou de bom conselho submeter-se sem mais. Somente aqueles que se haviam demasiadamente comprometido, para que pudessem esperar perdão, insistiram em que se opusesse resistência ao desembarque do governador-geral, ou que se lhe impusesse primeiramente a condição de dar anistia geral; e Beckman convocou uma reunião do povo para a manhã seguinte, na qual ele esperava obter uma resolução nesse sentido.

Todavia, Gomes Freire não lhe deixou tempo para isso, pois, logo que alvoreceu o dia, entrou a todo pano no porto; na verdade, apressou-se ao seu encontro uma deputação do Conselho Municipal, com o pedido de que ele esperasse mais um dia, a fim de se disporem os preparativos para a sua recepção festiva; porém ela recebeu, com toda a cortesia, uma resposta negativa, e os navios prosseguiram.

E apenas lançadas as âncoras no porto, logo foram deitados à água dois botes, com 50 soldados, que imediatamente, sem reação, tomaram posse das mais importantes baterias do porto; com eles fraternizou a guarnição de São Luís e uma multidão dos mais resolutos cidadãos e trabalhadores da lavoura, sob o comando de Morais; alguns minutos depois desembarcou o próprio Gomes Freire. Tudo isto aconteceu à vista de imenso ajuntamento de povo que se comprimia à beira do mar, irresoluto se devia dar ouvido às intimações de Beckman, se devia, calado, submeter-se; a atitude calma, decidida do governador-geral fez pender a balança, tudo afluiu para ele. Beckman e seus companheiros trataram de escapar a toda a pressa, a fim de se refugiarem nos seus lares; e Gomes Freire fez a sua entrada em São Luís no meio de regozijo do povo e tomou com mão forte as rédeas do governo; estava finda a revolução. Poucos dias depois, publicou ele uma proclamação, em que concedia pleno perdão ao grosso da população; eram somente excetuados os cabeças do motim, e estes não escaparam muito tempo ao braço punidor da lei.

Logo nas primeiras semanas, foram muitos agarrados e encarcerados; de Lisboa veio um navio que trouxe como prisioneiro o representante do povo, Tomás Beckman; somente Manuel Beckman escapou mais tempo a todas as pesquisas, e ele fez ainda diversas vezes baldadas tentativas para libertar das prisões os seus cúmplices; mas, afinal, à traição de um jovem maranhense, de quem ele havia sido padrinho e tutor, também caiu nas mãos da justiça. Um tribunal extraordinário deu a sentença: a maioria dos acusados foi condenada apenas a pagar as custas do processo; Tomás Beckman, ao exílio por dez anos; e o frade que havia pregado do púlpito a defesa própria e revolta, foi condenado a severa clausura no seu convento; somente Manuel Beckman e Jorge de Sampaio sofreram a pena de morte.

Também os bens de Beckman foram confiscados; todavia Gomes Freire na hasta pública comprou-os de seu bolso e os restituiu à viúva e filhos do desgraçado agitador (1685).

Destes acontecimentos datam os princípios de um regime de ordem, baseado na lei. Na verdade, ficou o povo do Maranhão e do Pará ainda muito tempo desacreditado, por sua desabrida selvageria e violência; em parte alguma havia tão pouca consideração pela saúde, pela vida dos escravos, assim como dos homens livres, e ainda atualmente em todo o Brasil as leis da moral e do Estado em parte alguma são tanto e tão publicamente transgredidas como ali; porém a história não mais registra revoluções que ameaçassem seriamente a existência e a constituição do Estado, ao menos durante o século e meio que se seguiram. Ê isto, em grande parte, merecimento de Gomes Freire de Andrada; com a sua brandura inicial conquistou todos os corações; ele os conservou por seu altruísmo e zeloso interesse, e assim conseguiu acostumar à obediência e à ordem a população, de resto esgotada pejas contínuas revoltas.

A atividade pública e privada votou-se novamente aos trabalhos da colonização; novos colonos foram atraídos; as tribos selvagens, que já desde muitos anos tinham antigas ofensas a vingar e que repetidas vezes atacaram a colônia e devastaram inteiramente muitos trechos de antiga colonização no Amazonas, foram combatidas e submetidas, e assim começou o país pouco a pouco a levantar-se da profunda decadência; o comércio e a lavoura refloresceram.

Decisiva foi também a atitude que Gomes Freire tomou em relação às duas questões principais. O monopólio, que a revolução havia abolido, foi na verdade restabelecido, porém logo em seguida pediu ele o parecer dos conselhos municipais de São Luís e Belém, e, como ambos se declarassem unânimes contrários ao mesmo, então ele advogou e atuou junto da corte para obter a supressão da Companhia do Maranhão, de sorte que o comércio ficou aberto a todos os portugueses.

Por outro lado, na questão dos índios, declarou-se o governador-geral pela manutenção das leis existentes; a liberdade do indígena devia ser respeitada, e quando muito aqueles que fossem aprisionados numa guerra justa ficariam na escravidão; isto era necessário no interesse da religião, porque de outro modo o cristianismo jamais criaria raízes entre as tribos selvagens, e era necessário no interesse da coroa e do próprio povo, pois de outro modo nunca desfrutariam uma posse tranqüila, nunca trabalhariam em sossego. Neste sentido falou o próprio Gomes Freire às autoridades municipais, e o povo conformou-se. Havia-se tido nos últimos decênios a experiência do que ele lhes dizia; enquanto a lei de 9 de abril de 1655 vigorava e Vieira atuava, viviam os portugueses em paz e amizade com os indígenas; de então para cá, porém, havia-se reacendido, por toda parte, a hostilidade dos índios e muitas vezes resultado em prejuízo dos brancos, de modo que agora, como já se mencionou, maiores esforços se impunham para pôr em segurança as fronteiras da colônia. Em conseqüência, foram também os jesuítas reconduzidos ao seu colégio de São Luís, e novamente começaram eles, ao lado das outras ordens de frades, as suas benéficas atividades das missões.

Depois de dois anos de administração, obteve Gomes Freire de Andrada a exoneração pedida; o povo separou-se dele com pesar. "Se jamais tivessem tido um justo motivo de queixa do rei, escreveu o Conselho Municipal de Belém, esse teria sido a exoneração de Andrada"; e ambas as capitais, Belém e São Luís, decidiram ornamentar os seus paços municipais com o retrato do meritíssimo homem (1687).

Na série dos seus sucessores, destacam-se somente alguns nomes: primeiramente Artur de Sá de Meneses (1687-1690) e Antônio d’Albuquerque (1690-1697), ambos os quais tiveram com os franceses de Caiena pequenas questões de fronteira; em seguida Cristóvão da Costa Freire54, Senhor de Pancas (1706-1717); depois, Bernardo Pereira de Berredo (1717 e seguintes), notável como historiador do Estado do Maranhão, e, finalmente, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751 e seguintes), irmão do conhecido marquês de Pombal. Nem todos usaram o simples título do Maranhão; muitas vezes era-lhes também acrescentado o do Pará, que até em alguns precedia (capitão-general do Pará e Maranhão), — mudança que não correspondia senão ao curso natural das coisas, pois naturalmente o Pará alcançava, à medida que avançavam as descobertas e a colonização, com a vastidão fantástica do vale do Amazonas, cada vez maior preponderância sobre o pequeno Maranhão; encontravam-se ali os mais avultados interesses, pelo que estabeleceu o governador-geral quase sempre a sua sede em Belém, ao passo que em São Luís residia apenas um subgovernador.

De um modo geral, não entrando nos meros detalhes de interesse histórico local, pouca coisa se pode destacar desse tempo da história do Maranhão; a vida histórica já se confina mais nas regiões distintas, que pouco a pouco se destacam do corpo principal e formam províncias independentes.

Contudo, antes de passarmos a essa fase, ainda nos resta levar a sucinta conclusão os dois assuntos principais, que foram um dia a causa de tão profunda comoção em todo o Estado: — a questão dos índios e a do monopólio.

Primeiramente, o monopólio de uma sociedade comercial, que fora suprimido no ano de 1685, foi restabelecido setenta anos mais tarde e justamente pelo célebre estadista e ministro do rei d. José Manuel — Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras, marquês de Pombal. Como se sabe, a requerimento feito ao rei pelos moradores da capitania do Pará, de 15 de fevereiro de 1754, foi fundada a "Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão", por negociantes de Lisboa, a 6 de junho de 1755, e no dia seguinte, 7 de junho, confirmada pelo rei; ela tinha por objeto estimular o comércio e deste modo ao mesmo tempo cuidar de ali fazer progredir a lavoura e o povoamento, que nestes Estados se achavam em tão grande decadência; o seu capital inicial foi fixado em 1.200 ações de 400 mil réis cada uma, e somente os nacionais ou naturalizados podiam ser acionistas da companhia.

Não é aqui o lugar para aprofundar os motivos dessa medida, pois ela se relaciona de preferência com a política comercial geral de Pombal e as condições comerciais de Portugal; somente mencionaremos que ela despertou em Lisboa a mais viva oposição dos negociantes nacionais e residentes estrangeiros. Ao contrário, o povo do Maranhão e do Pará, que antes tão energicamente se opusera a este mesmo sistema, parece que desta vez se mostrou inteiramente passivo, e também esta medida resultou de modo excepcional para vantagem sua. Um tão avultado capital, que devia começar por procurar e fundar campo para suas atividades ali, deu naturalmente poderoso impulso à lavoura e ao comércio.

Agora que se contava certo com comprador, entraram os colonos a colher os produtos da mata virgem com a máxima atividade; cacau, arroz e algodão foram cultivados mais diligentemente; por outro lado, a produção de açúcar, fundada logo a princípio, porém que nunca havia tomado importância, por assim dizer, desapareceu inteiramente. De seu lado a companhia remediou em certa medida à falta de braços de até então, trazendo para ali, da costa da África, grande número de escravos negros; e assim a permuta de gêneros, sobretudo em Belém, de ano para ano, ia tomando maior vulto.

Depois da queda do marquês de Pombal, seu fundador (5 de março de 1777), foi a companhia abolida; já era mais que tempo, pois o seu capital inicial não mais chegava para as, cada vez, mais avultadas transações. Pará e Maranhão reverteram com isso ao simples monopólio da mãe-pátria, e sob o mesmo permaneceram, até que o decreto de 28 de janeiro de 1808 abriu os portos de todo o Brasil à navegação de todas as nações amigas e ao comércio mundial.

Também a questão dos índios não passou despercebida à atividade legislativa do marquês de Pombal.

Até ao seu tempo estava de pé a lei de d. Pedro II, de l9 de abril de 1680, à qual • em breve haviam seguido diversos decretos complementares. Em todo caso, ela não foi rigorosamente observada, ao pé da letra; os antigos abusos da escravidão, do comércio humano e da caçada ao homem, persistiram; contudo não se apresentavam mais tão cruamente como em outros tempos, e assim as autoridades, quando não era demais, faziam vista grossa sobre aquilo que na maioria dos casos não podiam impedir. Por outro lado, malogravam-se todos os ataques ao sistema, diante da firma decisão do governo português; debalde os conselhos municipais de São Luís e Belém endereçavam petições para o restabelecimento da escravidão dos índios, com a antiga intensidade, alegando que sem eles o Estado e a lavoura não podiam subsistir; debalde apresentavam queixas e mais queixas contra os missionários; não achavam satisfação; e quando uma vez, em 1734, se fez deveras uma averiguação, ela redundou em prejuízo dos colonos, em favor do sistema vigente; pouco faltou para que os reclamantes fossem castigados como caluniadores. Nestas circunstâncias, o princípio da liberdade dos índios foi sempre ganhando, pouco a pouco, mais terreno; e para isso muito concorreu o fato de terem agora os fazendeiros oportunidade de recrutar os seus rebanhos de escravos de outro modo melhor.

O tráfico de escravos africanos, que no decorrer do século XVIII, e mormente desde a fundação da Companhia do Maranhão, tomou grande incremento, fornecia negros em massa, e em breve mereceram estes em geral a preferência, porque superavam de muito os índios em força e aptidão para o trabalho.

Assim puderam os missionários durante todo este período continuar mais ou menos sossegados em sua atividade. Uma série de missões, aldeias, aldeamentos de índios mansos, estendeu-se pelo sertão, do Ceará acima, até aos limites da Guiana Francesa e profundamente a dentro pelo vale do Amazonas, ao longo do curso principal e especialmente dos seus afluentes do Norte, onde eles mantinham relações com as missões espanholas do Peru e da Colômbia. No ano de 1755 montava o número dessas colônias eclesiásticas a 60, das quais pertenciam 28 à Companhia de Jesus, 15 à dos Capuchinhos, 12 à dos Carmelitas e 5 à Ordem dos Mercedários. Para obviar à concorrência hostil, havia sido atribuída a cada ordem uma região reservada à sua missão. Contudo, não deixou de haver contendas esporádicas, pois onde essas regiões se tocavam, ora um, ora outro, se julgava lesado; e de uma feita chegou mesmo o caso a aberta hostilidade.

Quando os jesuítas estabeleceram uma missão no Alto Amazonas, a oeste da foz do rio Negro (1751), mandou o vizinho missionário carmelita uma partida de índios, na escuridão da noite, arrancar todas as recentes plantações; os indios da missão atacada ameaçaram tirar vingança sangrenta; todavia a autoridade do seu confessor conteve-os, e dentro em breve se restabeleceu o bom acordo entre as duas colônias vizinhas. Esta foi a chamada guerra entre os carmelitas e a Companhia de Jesus.

Quanto às condições das missões do Maranhão e do Pará, eram estas, apesar de muitos pontos gerais de semelhança, essencialmente diferentes das missões da América espanhola (Califórnia, Paraguai) e mesmo das propriamente brasileiras.

Na verdade também aqui estava a autoridade civil e eclesiástica ao mesmo tempo nas mãos do missionário, assistido por um chefe índio, o maioral, para cuidar dos negócios; também aqui eram os índios diligentemente instruídos nos mistérios do cristianismo, na lavoura e outros ofícios europeus, ao passo que, por outro lado, se respeitavam a sua nacionalidade e língua; tal como no Paraguai o guarani, assim se conservou o tupi até hoje no vale do Amazonas, como "língua geral", ao lado da portuguesa. Porém a organização do trabalho era^nuito diversa.

Em outras partes explorava-se a lavoura, a criação do gado, tudo em comum; o produto das plantações era depositado nos celeiros da missão, daí repartido a cada um, segundo necessitasse para a sua alimentação e vestuário; aqui, ao contrário, por ocasião da divisão anual de terras das missões, cada família recebia um pedaço de terra para o seu sustento; a fiscalização limitava-se a fazer que eles cultivassem realmente o seu pedaço de terra e obtivessem suficientes provisões com que viver; o que sobrava do consumo, podiam eles, à sua vontade, vender ou gastar.

Propriamente para a missão trabalhava somente um pequeno número, 25 homens anualmente durante seis meses, que para isso recebiam o salário da lei, o mesmo que teriam a serviço de um fazendeiro; por meio destes colhia o inspetor da missão os produtos da mata virgem, etc, que eram então mandados em grande quantidade para Belém ou para Lisboa, aos mercados, e vendidos por conta da missão; com a renda desse pequeno comércio tinham os missionários que custear as despesas para a manutenção e decoração de suas igrejas e aldeamentos, para o seu sustento próprio, assim como para o desenvolvimento da obra das missões.

Ainda maior contraste oferecia a situação em relação ao exterior.

Na Califórnia e no Paraguai, onde os missionários haviam alcançado formal soberania territorial, eles fechavam as suas missões a todo o mundo exterior; o mesmo se ensaiou no Brasil; a legislação de Pedro II determinava que nenhum português podia morar nas aldeias dos índios, sob a pena de exílio se o transgressor era fidalgo, com castigo corporal, se plebeu; mesmo para uma simples visita, era precisa licença formal do governador. Porém estes preceitos não podiam conter o espírito empreendedor do brasileiro; licenças especiais nunca foram recusadas e os missionários, de boa vontade, concediam hospitalidade a todo viajante; assim seguiram os pesquisadores de ouro, os negociantes de índios, nas pegadas dos apóstolos; na sua imediata vizinhança estabeleciam-se colonos, que logo se utilizavam da igreja da missão, como de sua paróquia.

E, além disso, houve segunda circunstância: ainda sempre o Estado e a população de colonos continuavam a ter direito ao trabalho dos índios das missões, de sorte que cada índio, entre 13 e 50 anos de idade, devia trabalhar seis meses do ano para os brancos, mediante um salário estipulado; eram os missionários obrigados a fornecer de tempos em tempos ao governo, em São Luís ou Belém, uma lista autêntica de todos os seus convertidos, capazes de trabalhar; o governador, por seu lado, dava então a cada fazendeiro que o pretendesse uma concessão de tantos índios assalariados, e o possuidor de semelhante atestado recebia do missionário o número estipulado, que ele no fim de seis meses devia restituir, com o salário regulamentar.

Resumamos a distinção. Na Califórnia e no Paraguai, era a missão uma grande família, na qual os índios convertidos, longe de todo trato com o mundo exterior, simples povo da natureza, viviam em comum, como pupilos; o missionário era para eles a única autoridade espiritual e civil e afeiçoavam-se a ele com amor e obediência infantis. Ao contrário, no Maranhão e no Pará, o índio já tinha propriedade, tinha a sua vida doméstica; o mundo de fora vinha a ele e, inversamente, ele tinha que ir para o mundo — relação que de modo algum influía beneficamente sobre ele, pois os brancos, com os quais ele tinha sobretudo contato, eram na verdade os pioneiros, porém, na maioria, também a escória da civilização; o missionário, finalmente, era para ele somente uma autoridade civil e eclesiástica, o instrumento de funcionários estrangeiros, que por ordem destes entregava periodicamente à servidão dos fazendeiros, não sendo assim possível desenvolverem-se muito íntimas relações entre o padrinho e os seus índios convertidos.

Certamente, considerado do ponto de vista teórico, aproximava-se a situação no Maranhão mais da idéia de um verdadeiro Estado e não de um simples patriarcado, como na Califórnia e no Paraguai; porém, em todo caso, esta última forma, entre todos os sistemas, foi sempre a mais benéfica para o bem-estar físico e espiritual da raça vermelha.

Nesse estado de coisas intromete-se então, profundamente, a legislação do marquês de Pombal. Sabe-se como este tão bem dotado estadista, o primeiro e talvez o mais poderoso representante do despotismo esclarecido, havia assumido a tarefa de reerguer Portugal da profunda decadência em que jazia, ao bem-estar e importância dos tempos anteriores, e como ele para esse fim deu início a uma completa transformação do Estado.

Nisso tinha ele que recear naturalmente a oposição de todos aqueles que eram interessados na manutenção do estado das coisas de até então; mormente o clero devia ter aversão a essas mudanças, e neste meio sobretudo a Companhia de Jesus, que desde a subida ao trono da Casa de Bragança dispunha de preponderante influência na corte e no Estado; e já por este motivo, desde o princípio, mostrou-se Pombal o mais acirrado adversário dessa ordem.

A repercussão logo se fez sentir no Maranhão e Pará. O governador-geral dali (desde 1751), Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal, não se dava ao mínimo trabalho de esconder a sua aversão contra os jesuítas e em geral contra os frades; ele procurava estorvar e importunar os missionários de todo modo, e também apresentava na corte queixas que de preferência feriam os jesuítas, mas também além deles as outras ordens, que compartilhavam da obra das missões.

"Os missionários — dizia ele — conservavam os seus pupilos índios na mais lamentável servidão, na ignorância e na miséria, ao passo que se enriqueciam com o trabalho deles; a sua ambição e cobiça eram por igual perigosas: atrair a si o monopólio e mesmo a soberania sobre o Estado do Maranhão, talvez seja o alvo de seus esforços".

Por mais absurdas que fossem essas acusações, obtiveram alguma consistência pelos acontecimentos do Paraguai naquele tempo. Esse território de missões dos jesuítas era justamente então cortado em duas partes pelo ajuste de fronteiras entre a América espanhola e a portuguesa; porém, quando se quis dar cumprimento às medidas, encontrou-se ali formal resistência; os índios das missões, com armas na mão, fizeram frente às tropas espanholas e portuguesas (1752-1757), se com ou contra a vontade de seus tutores é o que resta a saber. Em todo caso, esses acontecimentos no Paraguai e as queixas que chegavam do Maranhão pareceram ao marquês de Pombal justificativa bastante para proceder contra as missões em geral; ele resolveu pôr termo à autoridade que os frades exerciam nas missões e colocar os

índios inteiramente sob a jurisdição das autoridades civis. Neste sentido publicou ele uma série de ordenações.

Primeiro, foram publicadas solenemente em Belém e São Luís as duas antigas bulas do papa Bento XIV, de fevereiro e dezembro de 1741, que proibiam formalmente a todo eclesiástico e mormente aos jesuítas todo comércio e toda autoridade secular, e que além disso proibiam aos mesmos conservassem no território de suas missões índios como escravos, ou vendê-los, etc.

Em seguida, um decreto real, de 6 de junho de 1755 (sobre cujas determinações voltaremos), aboliu a escravidão dos índios, completamente e sem exceção alguma. Finalmente, segunda lei, de 7 de junho de 1755, retirava dos missionários toda autoridade civil, que eles até então exerciam nas suas missões, de par com o cuidado das almas.

"O novo sistema da completa liberdade da raça vermelha — assim argumentava o mesmo — não podia ser executado sem um governo bem organizado e firme; a união do poder secular e eclesiástico de até então, numa mesma mão, era contrária ao interesse do Estado, às leis da Igreja, e ao voto monacal. Por isto deviam as missões e aldeias de índios de até então ser organizadas inteiramente do mesmo modo que as colônias dos brancos, cada uma sob o seu próprio dirigente local e todas sob a fiscalização do governo colonial".

Segundo a determinação dessas leis, podiam, contudo, os missionários, mesmo entregando o poder civil, ficar como párocos e chefes espirituais nas suas antigas missões; mas até isto o irmão de Pombal, o governador do Maranhão, soube impedir.

Já se explicou como os missionários, sem auxílio nem salário algum oficial, bastavam a si mesmos e à manutenção da sua igreja; agora eles perdiam todo direito ao serviço dos índios; eles não puderam conseguir ao menos que a cada um fossem concedidos quatro caçadores e pescadores, com o salário regularmentar, e assim se viram em breve obrigados, por extrema necessidade material, a abandonar os seus antigos postos. Eles recolheram-se aos seus claustros, onde os frades das outras ordens viveram sossegados^ ao contrário, sobre os jesuítas descarregou-se em breve nova perseguição. A tentativa de assassínio contra o rei d. José Manuel, da qual se tornaram culpadas as nobres famílias Távora e Aveiro (3 de setembro de 1758), deu, como é notório, um motivo ao marquês de Pombal, ou antes um pretexto, para o decreto de expulsão de 3 de setembro de 1759 contra todos os membros da Companhia de Jesus, e por toda parte, em Portugal, como em tcdas as suas colônias, foi o mesmo posto em execução sem contemplações e muitas vezes com atroz severidade. O mesmo aconteceu também no Estado do Maranhão; todos os jesuítas dali, em número de 115, foram aprisionados, roubados dos seus bens, metidos num pequeno navio e, depois de uma viagem trágica, desembarcados nas costas do Estado da Igreja. Era a terceira vez que a ordem tivera que sofrer aqui o castigo da deportação; aqui, ao menos, ela não havia merecido tal sorte.

Ao mesmo tempo e do mesmo modo foram também os jesuítas afastados do resto do Brasil, onde eles então ainda possuíam 27 missões (sete na diocese de Pernambuco, nove na da Bahia, cinco na do Rio de Janeiro, seis na de São Paulo).

Isto quanto ao lado negativo das ordenações de Pombal; se examinarmos agora o que ele quis pôr no lugar das velhas condições que destruiu, veremos que a lei de emancipação, de 6 de junho de 1755, já continha os traços gerais fundamentais do novo sistema, e, mais tarde, no diretório para as aldeias de índios do Maranhão e Pará (3 de maio de 1757, que em breve, pelo decreto de 17 de agosto de 1758,

teve validade em todo o Brasil), foi o mesmo fixado em 95 parágrafos, até os últimos pormenores.

Estas importantes leis, no seu tempo, apenas foram tomadas em consideração na Europa; mais tarde exagerou-se-lhes o valor e ainda na atualidade as recomenda um historiador de Portugal (Schaefer, II, cap. X) como modelo para todas as futuras tentativas de civilizar povos selvagens. Nós, todavia, não podemos concordar com isso.

Em todo caso, um grandioso sentimento humanitário servia-lhes de base: deviam os índios ser civilizados ao nível europeu, deviam ser considerados em pé de igualdade com a população colonial branca e fundir-se com ela; porém, abstraindo inteiramente da questão principal, isto é, se com o estado natural da raça vermelha brasileira tal coisa seria exeqüível, os meios para esse fim eram em parte inaplicáveis, em parte inadequados, e muitas das disposições eram francamente contraditórias com a feição humanitária da lei. O seguinte breve resumo, ao qual somos obrigados a restringir-nos, suficientemente o indicará.

Primeiro que tudo, determinava a lei: "Todos os índios deviam ser livres e isentos de toda escravidão; deviam, segundo o seu bel-prazer, dispor da sua pessoa e de seus bens, somente obedecer às leis gerais, e gozar de todas as honras, privilégios e liberdades como os demais súditos, sem exceção nem distinção".

A odiosa separação de até aqui, baseada na ignorância e na injustiça, entre a gente branca e os índios, devia cessar; tal qual os brancos, podem eles adotar nomes de família e devem ser tratados pelas autoridades com respeito e consideração; todo indivíduo de puro sangue índio, que se achar em servidão, poderá, sem mais, reclamar a sua liberdade. Para o futuro, a maldição da escravidão pesará exclusivamente sobre a raça africana; os índios, que se mesclarem com eles, terão de sofrer necessariamente as conseqüências, e mestiços com sangue negro, filhos de negras, nascidos na escravidão, escravos serão; e ao mesmo tempo é proibido com o máximo rigor deixar de considerar a completa separação entre estas duas raças; ninguém poderá, como até aqui era costume, chamar de negros os índios.

As colônias índias serão organizadas, conforme o seu tamanho, em cidades, vilas ou aldeias, e, tais quais as dos brancos, terão as suas autoridades municipais nomeadas dentre os seus moradores; além disso, cada povoação receberá um pedaço de terra como propriedade inalienável, que será dividida entre as diversas famílias, para posse hereditária; os brancos de modo algum, mesmo por meio legal, poderão adquirir propriedades nessas terras reservadas aos índios.

Até aí era perfeita a igualdade e favorável aos índios; porém a isso se seguia uma restrição capital. O velho imposto do serviço obrigatório, embora incompatível com o novo sistema, era mantido no novo regime; em atenção à situação, como antes, eram todos os índios entre 13 e 60 anos obrigados a trabalhar seis meses do ano para os colonos brancos, mediante determinado pagamento. E ainda mais, tinha esta nova igualdade de direitos também o seu lado de sombra: os índios deviam agora contribuir para os impostos do Estado; tal qual a população branca, daí em diante, haviam de pagar o dízimo de todos os seus produtos — imposto que no Brasil, como se sabe, tocava à coroa, não ao clero. Além disso, havia mais um encargo. No que dizia respeito à organização interna das povoações indianas, recebiam todas um padre cura, tirado do clero secular, o qual, na maioria dos casos, não pertencia aos ornamentos do seu Estado; o governo civil, por outro lado, devia ser exercido, em via de regra, por autoridades municipais escolhidas entre os habitantes da povoação, tal qual acontecia nas povoações dos brancos. Todavia era evidente que, ao menos no começo, isto não ia bem; mesmo que se revestissem alguns índios de títulos e dignidades européias, não bastava isso para se constituir com eles um conselho municipal à européia; impunha-se uma transição, e disso cuidara a lei.

Para cada aldeia índia era nomeado um diretor, que ali devia exercer a tutoria, até certo ponto; sem se imiscuir propriamente no governo e na administração, devia ele intervir em tudo, inspecionando, ensinando e estimulando. As suas atribuições eram, portanto, de feição muito vaga, ambígua; por mais que se esforçasse o legislador em precisá-las, sempre a limitação era tenuíssima, e com a melhor vontade do mundo não podia ser observada exatamente; como os índios eram em tudo completamente inexperientes, tinha o diretor que se imiscuir necessariamente em todas as coisas, tomar tudo aos seus ombros; toda a autoridade civil ficou em suas mãos, ao passo que o titular indígena ao lado dele não tinha mais significação que antes o maiorial (meirinho) junto do missionário.

Quando então sucedia cair esse poder, de fato e necessariamente absoluto, em mãos impróprias, então tudo se tinha a recear; a lei prescrevia por este motivo que os diretores haviam de ser homens de retidão, zelo, bom senso, desinteressados e morigerados; porém homens dessa espécie não se achavam muitos; e ainda menos tinham vontade de se enterrar no interior das matas, ao lado de uma tribo de selvagens. Assim, os diretores, na maioria, eram homens rudes, ignorantes, que tiranizavam os pobres índios da pior forma e viviam em contínua luta com os padres curas, quando esses tomavam o partido dos oprimidos.

A coisa tornou-se pior ainda por causa de mais outra determinação da lei: os diretores não tinham ordenados fixos, porém recebiam como indenização, o sexto de tudo que os índios produzissem além do necessário para o seu consumo; era, portanto, de seu interesse que eles produzissem o mais possível, e assim não hesitavam diante de todos os meios para obrigar a duro trabalho os seus súditos.

A situação material da população índia, portanto, decididamente piorou com as ordenações de Pombal; eles agora se diziam cidadãos livres, com igualdade de direitos, porém, tanto quanto antes, deles se abusava como escravos do Estado a serviço dos seus concidadãos brancos, durante seis meses por ano; além disso, agora tinham que entregar um décimo do fruto de seus trabalhos à coroa, uma sexta parte das sobras ao diretor, e este diretor não era para eles nenhum bondoso patriarca, como o era antes o missionário, porém imperava como um feitor de escravos, interesseiro, de coração duro.

Também o nível da cultura espiritual nada ganhou. As leis de Pombal prescreviam que se induzissem os índios a cuidar do seu vestuário e morada à moda portuguesa; porém ainda atualmente subsistem os velhos costumes. Ainda mais: que tudo se fizesse para substituir a língua tupi pela portuguesa, como meio mais seguro para civilizá-los, ganhar o-seu afeto e assegurar a sua obediência. Nada se conseguiu; o tupi é ainda hoje no sertão a língua usual do índio. Outro artigo da lei era diretamente impraticável: em cada aldeia de índios, estabelecia ele, devem ser instaladas duas escolas, uma de meninos, para instruí-los na religião, leitura, escrita e contas, outra de meninas, a fim de, além disso, instruí-las nos trabalhos manuais femininos. Como se instrução pública desta espécie já existisse então em Portugal! No Brasil, pelo menos, mal a tem atualmente a população branca.

Mais importante, mais judicioso foi o que Pombal prescreveu, mandando que se instigassem os índios com exortações e recompensas à atividade e indústria. Assim o haviam feito os missionários; porém os diretores não eram de modo algum adequados a isso, e os novos encargos que o novo sistema trouxe consigo não podiam propriamente dar estímulo aos diligentes.

Finalmente, para introduzir entre os índios ainda mais elementos de cultura pessoal e encaminhar a sua fusão com a raça branca, ordenava a legislação que se facilitasse o mais possível o estabelecimento de colonos brancos dentro ou próximo das aldeias índias; contudo, não podiam estes últimos nunca adquirir propriedades nas terras reservadas para os índios e, se eles, por preguiça ou falta de moralidade, dessem mau exemplo, deviam ser imediatamente afastados; casamentos mistos deviam ser quanto possível animados, e devia-se explicar às mulheres brancas que, pelo casamento com um índio, não sofriam nenhuma diminuição de honra e de condição.

Esta última disposição ficou absolutamente sem efeito; jamais uma mulher de sangue branco puro no Brasil se casaria com um índio, como na União Norte-Americana não se casará com um negro; ao contrário, os casamentos mistos de homens brancos com índias eram e são muito freqüentes, especialmente no sertão, porém na maioria irregulares, simples concubinatos.

Por outro lado, houve muitos colonos brancos que se estabeleceram na vizinhança de índios meio civilizados e mesmo de tribos selvagens, porém não para a vantagem destes últimos; freqüentemente eles se apoderaram, apesar de lei, dos terrenos reservados aos índios e, onde tal não acontecia, atuavam eles, pelo menos, de modo pernicioso, pelo mau exemplo. O pioneiro branco nas selvas do Amazonas é quase sempre um negociante de índios, que permuta os produtos da mata virgem, o despojo da caçada e da pesca com mercadorias européias, objetos de adorno e principalmente aguardente; quase todos os seus vizinhos índios são seus devedores e dependem dele; ele próprio, dado à embriaguez, e a todos os excessos, vive amancebado com uma índia ou sustenta um harém inteiro, que renova a seu bel-prazer.

Quanto a funcionários públicos e eclesiásticos, que dão à costa naquelas regiões, em geral não são de melhor estofo. Mesmo ao mais zeloso e respeitável padre cura, sob tais condições não restava outro alvitre senão dirigir a seguinte exortação aos índios: "Não se aflijam a respeito dos brancos; eles vão todos para o purgatório: porém vós não sereis tão néscios ao ponto de vos expordes a igual destino!"

"Os brancos aqui domiciliados — acrescenta o viajante inglês Wallace, que assistiu a essa prédica, em janeiro de 1851, no Alto Rio Negro (província do Alto Amazonas) — riram às gargalhadas, e os pobres índios pareciam muito espantados."

Descrevemos acima, já considerando o futuro, a influência desastrosa que a legislação de Pombal exerceu sobre as condições materiais e espirituais dos índios; mas resta ainda narrar uma conseqüência funesta.

Aquela grandiosa sucessão de missões e aldeamentos, que se estendiam através do Estado do Maranhão e contavam no ano de 1755 sessenta núcleos, como que desaparecera completamente. Apenas dez anos antes, o afamado viajante francês Condamine havia visitado as missões portuguesas no Amazonas e ele as descrevia muito favoravelmente; as igrejas e as casas dos párocos eram construídas de alvenaria, as choupanas dos índios eram de material mais leve, porém se achavam em bom estado; utensílios e ornamentos europeus existiam em abundância, e os missionários podiam gabar-se de que aos domingos, na missa, os seus protegidos índios se apresentavam tão bem vestidos como os seus vizinhos, os colonos brancos. Trinta anos depois, 1784-1788, empreendeu o então bispo do Pará, d. Caetano Brandão, uma viagem de inspeção aos mesmos territórios, e a sua descrição já foi bem diferente; somente poucos aldeamentos, tendo à testa um diretor humanitário e um virtuoso pároco, ainda gozavam de certa prosperidade; porém na maioria deles, quase não restava vestígio do primitivo bem-estar; as casas jaziam em ruínas, na praça do mercado crescia o mato, os campos de plantio tornados bravios; todas as indústrias que os jesuítas haviam fundado, os fornos de cal, olarias, as manufaturas de algodão, estavam decaídas; os índios viviam em mise ráveis choupanas sujas, na maior indigência e não tinham outra preocupação senão satisfazer as mais grosseiras necessidades animais. Diminuiu a população ninguém mais, como antes os missionários, penetrava nas profundezas das mato virgens, a fim de catequizar os selvagens, convencê-los à submissão.

Na verdade, algumas hordas fracas, apertadas por vizinhos mais poderosos (na primeira metade do século XVIII apareceram duas numerosas tribos, os Mura e os Mundrucus55, no vale do Amazonas, como fortes conquistadores) ainda pro curaram proteção junto das autoridades portuguesas e agasalho nos aldeamentos porém, em troca, pelo menos, outro tanto dos antigos habitantes meio civilizado foram-se para longe, parte para a vizinhança das colônias dos brancos, onde com jornaleiros ganhavam o seu sustento, parte para o sertão, onde regressaram ao modo de vida bárbaro de seus antepassados. Nestas circunstâncias, ora aqui ora ali, uma das antigas missões ficara completamente despovoada; outras mais fraca: desapareceram, e assim, de decênio em decênio, o seu número foi sempre escasseando.

Sobre o decurso ulterior dos fatos, pouco há para relatar. Cerca de uns cinqüenta anos depois de decretadas as leis pombalinas, findou o estado de transição por elas determinado; o príncipe regente, mais tarde rei d. João VI (1799 e seguintes), acabou com os diretores e a obrigatoriedade do trabalho, de modo que os índios ficaram inteiramente entregues a si mesmos, o que, se não piorou diretamente o estado de coisas, também absolutamente não o melhorou. Seguiu-se depois para o Brasil uma quadra agitada, em que havia mais no que pensar do que nesta questão, e assim ela ficou completamente estacionária, até que, a 24 de julho de 1845, apareceu de novo um regulamento para os aldeamentos de índios pacíficos; todavia, também este não deu bom resultado. Em seguida, o governo, por isso, reuniu, a título de ensaio, nos aldeamentos recém-fundados, o poder espiritual e secular nas mãos de um missionário — portanto, um regresso ao sistema que vigorava antes do ano 1755. O tempo dirá se se adotara de novo este sistema como princípio, se nas condições tão mudadas ele se poderá manter com proveito, como antigamente; de todo modo, os missionários, a bem dizer, terão de recomeçar de novo. Pois em todo o conjunto do antigo Estado do Maranhão, onde antes floresciam 60 missões, atualmente ficaram somente 20 aldeamentos índios: quatro na província do Alto Amazonas, no Pará seis, com 3.100 almas, e no Maranhão dez, com 4.000 almas (Relatório oficial de 11 de maio de 1855).

Assim, acompanhamos a questão dos índios, nos seus traços gerais e em face da legislação, até ao fim; agora, em conclusão, devemos ainda acrescentar que, sob todos os sistemas e apesar de todos eles, os velhos abusos continuaram secretamente e continuam sempre. Ainda na atualidade se fazem caçadas ao homem; existe uma espécie de escravidão de índios. "Quando os mercadores de índios penetram no sertão — assim escreve o viajante Wallace — eles levam muitas vezes a encomenda de negociantes ou mesmo das autoridades, de lhes arranjarem uns meninos ou meninas índias; toda a gente sabe que isto só é possível de um modo, e a coisa é, por conseguinte, até certo ponto, formalmente permitida pelas autoridades."

O mercador de índios entende-se com uma tribo amiga, que então vai atacar um outro aldeamento de selvagens, e os que, nesse ataque, não morrem, são trazidos amarrados para a venda. Estes prisioneiros são entregues, em seguida, aos comitentes e tornam-se servos nas suas casas; "perante a lei, eles são livres e podem abandonar os seus amos, logo que o desejarem; porém raras vezes o fazem, se foram apanhados crianças e amansados".

Muitas vezes os funcionários tomam parte direta nessas empresas; o acima citado viajante narra como, em março de 1852, um tenente brasileiro, que o governo provincial do Alto Amazonas mandara em uma espécie de missão diplomática às tribos amigas do Rio Negro, se aproveitou desta oportunidade; por toda parte mobilizou homens e atacou de surpresa os selvagens Caparanas56, a 4 de abril regressou a expedição, toda uma frota de canoas, em triunfo, e trazia vinte prisioneiros, entre eles um homem; os restantes eram mulheres e crianças; no ataque foram mortos, do lado brasileiro, um só homem, do lado dos Caparanas sete homens e uma mulher; os demais escaparam. E finalmente: que outra coisa era senão rapto de homens, quando em Belém, para completar o recrutamento, especialmente da frota, todo índio que na boa fé navegava rio abaixo, trazendo os seus produtos, era agarrado à força e metido na farda? Chamava-se a isto "alistamento voluntário".

Assim foi durante muitos anos, e o estado de coisas tornou-se afinal tão grave, que os indígenas do sertão, com grande prejuízo do comércio, quase não ousavam mais entrar nas cidades; só então, e aos mais vivos protestos da população, que ameaçava um levante, o governo imperial brasileiro pôs termo aos abusos (primavera de 1848); a província do Pará (juntamente com o Alto Amazonas), que até então fornecia a maioria dos recrutas (calculam-se desde 1835 em perto de 10.000 homens), naturalmente quase todos índios e mestiços, foi inteiramente desobrigada do recrutamento durante quinze anos.

Também o preconceito contra a população indígena é sempre o mesmo de antes, e parece mesmo especialmente hostil agora, que o progresso do comércio no Amazonas faz sentir de novo a falta de braços para o trabalho.

O tenente norte-americano Herndon narrou-nos uma conversação que ele teve em março de 1852 com um digno senhor de idade, o juiz municipal de um lugarejo no rio Xingu (província do Pará); nós a reproduzimos aqui, porque é uma descrição, na verdade crua, porém, no fundo, certamente fiel, da opinião pública. "Nós falávamos — diz ele — sobre projetos de reforma em favor da população índia. O juiz municipal julgava ser necessário empregar força militar, a fim de subjugá-la inteiramente; era mister forçá-la de todo modo a trabalhar (portanto, o mesmo desejo de escravidão índia e trabalho obrigatório, como no século XVII). Eu lhe respondi que um português me dissera que a melhor reforma seria enforcar todos os índios. Com isto o meu amigo pareceu ficar um tanto horrorizado: não havia necessidade de remédio tão radical; contudo, ele concordava em que seria de vantagem matar os velhos; porém podia-se matá-los a tiro. Creio que o homem falava mesmo a sério (bonafide)."

A questão indígena, a questão da posição que a população aborígine deve ocupar no Estado, ainda não está resolvida, ao menos nas províncias do Amazonas; ainda sempre as opiniões se combatem, como nos princípios da história colonial, embora desde muito não façam guerra propriamente dita uns aos outros. A discórdia, todavia, durou bastante, causou bastantes males. Se desde o princípio se houvesse somente adotado com coerência e aplicado um dos dois sistemas, mesmo o pior, teria sido preferível às eternas mudanças que impediam toda a estabilização da ordem e estorvavam o progresso do país, sem trazerem proveito algum para a causa da humanidade. Agora passou o tempo sobre ambos os sistemas; diante da opinião pública do mundo, dificilmente alguém ousará recorrer à escravidão e ao trabalho obrigatório dos tempos antigos; por outro lado, o sistema das missões, agora que a especulação e o comércio mundial penetram no vale do Amazonas, já não terá mais razão de ser. Igualmente é hoje impossível, já é tarde, para tomar o expediente que os norte-americanos desde o princípio tomaram; se se quisesse excluir a raça indígena do Estado e interná-la no sertão, não somente eles se oporiam, como também a raça branca.

Pois somente as poucas tribos que vivem longe das artérias principais de comunicações, nos territórios de fronteira, perto das nações vizinhas e da província de Mato Grosso, conservaram os costumes dos seus antepassados mais ou menos puros; os mais estão em constantes relações com os brancos, perderam, uns mais, outros menos, as suas peculiaridades nacionais e vivem segundo as exterioridades do catolicismo, em estado meio civilizado, povo ignorante e miserável, desleixado e indolente. Não obstante, constituem eles (ao lado dos escravos negros) a classe dos trabalhadores propriamente ditos; eles colhem os produtos da mata virgem, servem como caçadores, como pescadores, como barqueiros, e, por mais medíocre e desvalioso que seja, em suma, o seu serviço, de modo algum se pode dispensá-lo. Essa massa indistinta, meio selvagem, de índios e de mestiços, os denominados Tapuias, constitui a parte principal da população total do vale do Amazonas; faz vinte anos, na grande revolta de 1835, eles demonstraram que perigosa arma eles são nas mãos de um rebelde decidido, e como são capazes de, com um levante, destruir num ápice o bem-estar de toda a vastidão da região por anos e anos. Portanto, tem o estadista brasileiro sempre motivo para refletir sobre a questão dos índios *.

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