A vizinha província do Piauí, 7.600 léguas quadradas, com 150.400 habitantes, estende-se entre os seus naturais limites, as montanhas Ibiapaba a leste, o rio Par-naíba a oeste, em formato de um triângulo irregular, e possui somente uma pequena porção de costa no mar, com o insignificante porto de Parnaíba.
Já aí se nota um vivo contraste com as províncias até aqui citadas, que todas possuem extensos trechos costeiros, parte no oceano, parte nos seus rios e enseadas semelhantes ao mar. Ainda maior diferença apresenta a feição do território. Das formações aluviais do vale do Amazonas, que se prolongam pela costa norte brasileira, eleva-se, como se sabe, para sudeste, o planalto interior brasileiro; a mata virgem tropical, que recobre de eterna verdura todos os terrenos baixos e as encostas, vai pouco a pouco escasseando e o planalto apresenta-se em completa nudez; vastas estepes estendem-se, a perder de vista; em todas as direções um mar de grama, onde apenas excepcionalmente uma elevação, uma árvore, dá um ponto de referência ao olhar do viajante.
No tempo da seca — muitas vezes nesse planalto a seca dura anos — esses campos oferecem triste espetáculo; o sol ardente do meio-dia requeima o tapete de relva, os riachos e córregos secam completamente; aos milhares morrem de inanição os animais esfomeados nos campos, os homens vêem-se ameaçados da mesma sorte; e muitos viajantes só escapam dos tormentos da morte pela sede, graças a uma árvore abençoada, o imbuzeiro, que no meio da selva privada de água oferece como refresco os seus frutos saborosos e suculentos65.
E outra coisa inteiramente, quando os aguaceiros do tempo das chuvas fertilizaram de novo o solo; a chaga ressequida da relva transforma-se em prado verdejante; as mais luxuriantes pastagens convidam à criação de gado; a natureza, tendo espalhado salinas e lambedouros salgados na região, criou ao mesmo tempo pontos de reunião onde o gado criado meio selvagem se aglomera por si mesmo e com isto facilita a tarefa do pastor. Também ninguém melhor que o pastor das selvas sabe apreciar este dom do céu; muito tempo o sal nesse país era até exclusivo instrumento de permuta, e mesmo as autoridades civis e eclesiásticas o recebiam em pagamento de seus vencimentos.
Estas estepes estendem-se longe, além dos limites da província do Piauí, mormente pelo Maranhão a dentro, e são emolduradas em semicírculo pelos prolongamentos ocidentais da serra da Ibiapaba, que correm aproximadamente ao longo dos limites do Ceará, Pernambuco e Goiás e, sobretudo, se espalham em pequenos tabuleiros; essa região é exclusiva partilha do estado pastoril, que com isso se diferença essencialmente, em colonização e em povoamento, das regiões vizinhas. O criador de gado não pode suportar vizinhança próxima alguma, porque para pastagem ele precisa de vastas extensões de terreno. A cada colono, que queria estabelecer uma criação de gado, era concedida uma área de três léguas quadradas, e, para evitar desavenças, devia ficar de permeio entre as fazendas, de duas em duas, um terreno de uma légua quadrada, sem dono, para comum usofruto, onde, porém, nenhum dos vizinhos podia levantar casas ou cercados.
Por outro lado, bastava muito pouca gente para manter uma tal fazenda; era raro tivesse um fazendeiro mais de 10 ou 12 escravos ou servos alugados, que cuidavam do gado montados a cavalo, quase inteiramente vestidos de couro, com formidáveis esporas, de pés nus, empunhando o comprido aguilhão e o laço, que alcança longe; são eles gente rude, alheios de todo à ordem e aos gozos da civilização, somente obedientes à autoridade patriarcal do seu patrão.
Nestas circunstâncias é quase que para sempre impossível que essa região possa alcançar povoamento denso, nem alta condição de cultura; a extensa terra de pastagens do Norte do Brasil terá que permanecer escassamente povoada e em estado meio selvagem. Não obstante, sempre conservará grande importância, pois numa vasta circunferência, as províncias vizinhas dependem exclusivamente dela para o seu abastecimento em gado de cria e reses de consumo.
Anualmente, desde os séculos, emigram dali grandes boiadas, a princípio somente para leste e sudeste, principalmente para Pernambuco, Bahia e Minas Gerais, em larga caminhada pela campina deserta, na qual, todavia, pouco a pouco houve o cuidado de estabelecer, de pouso em pouso, pela açudagem de pequenos córregos, reservatórios de água, para bebedouro de gado.
Porém, desde o ano de 1769, foi também aberta uma nova comunicação, pelo norte, com o mar, e desde então anualmente aparecem na foz do rio Parnaíba, junto do porto do mesmo nome, numerosos navios costeiros, que transportam as boiadas e a carne seca do Piauí para o Maranhão, Pará e até para o Alto Amazonas.
Passemos agora destas considerações gerais para a história provincial do Piauí. No ano de 1716, habitava o sertão de Pernambuco, à margem norte do rio São Francisco, um rico criador de gado, Domingos Afonso, natural de Mafra, na província portuguesa de Estremadura; a sua antiga fazenda lhe causara desgosto, em parte pelas repetidas secas, em parte pelas incessantes agressões de uma tribo de índios vizinha; e assim resolveu ele emigrar para além, ao nordeste, onde, segundo a antiga narração de viajantes e dos exploradores que expedira, existiam ricos pastos.
Ainda nesse mesmo ano abalou ele com grande acompanhamento, transpôs a montanha dos Dois Irmãos e desceu então aos mananciais do rio Parnaíba, que, pela riqueza de suas aguadas, é certamente uma das mais belas porções da grande região de pastagens. Ali toparam com conterrâneos, uma bandeira de paulistas, que estavam empenhados na caçada ao homem. Já se mencionou repetidas vezes como os habitantes das capitanias de São Vicente e Santo Amaro, mais tarde reunidas na província de São Paulo, entre todos os brasileiros eram os que mais se empenhavam em correr atrás dos índios e escravizar os livres filhos das selvas; no correr do século XVI e no princípio do XVII haviam eles dirigido as suas caçadas ao homem principalmente para oeste e sul; porém, gradativamente, foi-se esgotando essa região das caçadas, e, assim, eles avançaram para noroeste e norte (como, por exemplo, já cerca de 1672, as tribos convertidas no Tocantins, Pará, atacadas por uma bandeira de paulistas, sob o comando de Manuel País de Araújo, pediram socorro e proteção ao governo provincial de Belém).
Assim havia também entrado no Piauí um paulista, Domingos Jorge, acompanhado de numeroso troço de cavaleiros, para apanhar escravos, e Domingos Afonso acolheu-o amistosamente, como aliado; reunidos, deram eles caça aos indígenas sem defesa; depois regressaram os paulistas para sua terra, com algumas centenas de índios amarrados, e a terra sem gente ficou para o imigrante pernambucano. Estabeleceu Domingos Afonso o seu quartel-general na região das nascentes do Parnaíba, pouco distante do Piauí, "água rica de peixe" 66, sítio onde antigamente existira uma aldeia índia, Cabrobó, e dali ele espalhou os seus rebanhos e cercados ao longo dos rios, em todas as direções.
Em breve chegaram novos imigrantes; o governador-geral do Maranhão, que reclamava para a sua jurisdição a terra recém-descoberta, mandou para ali 300 deportados; porém, enquanto viveu Domingos Afonso, foi ele o único senhor que distribuía a cada recém-chegado a sua terra e, quando havia altercações, era ele quem as apaziguava patriarcalmente. No seu leito de morte, o príncipe dos pastores do Piauí legou todos os seus bens ao Colégio dos Jesuítas da Bahia, a fim de que, com as rendas, pudesse dotar moças solteiras, vestir viúvas e órfãos e dar esmolas aos pobres: eram trinta grandes fazendas (diversas outras havia ele vendido ou doado), e este número, durante a administração pela ordem, elevou-se a trinta e três. Sob o ministério do marquês de Pombal, quando a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil, a 3 de setembro de 1759, estas propriedades foram com as outras também confiscadas em favor da coroa; foram colocadas sob a gestão de três administradores, cada um com 11 fazendas; e este estado de coisas permanece, ao que nos consta, até à atualidade, assim como ficaram sempre em reconhecida validez as disposições testamentárias do instituidor.
Ao lado dos colossais domínios do Estado, existem naturalmente no Piauí muitas propriedades particulares, na maioria da extensão acima mencionada, porém muitas ainda maiores, que se estendem em todas as direções do país.
À medida que se estendiam os pastores brasileiros, recuavam os indígenas,
assustados, pois não achavam em parte alguma um mato, uma montanha, um refúgio favorável. Somente as tribos do rio Poti, a cuja frente se achava um chefe bravo e não inexperimentado nas artes européias — chamavam-lhe o "Mandu latino", porque ele havia sido educado num Colégio de Jesuítas — ofereceram valente resistência e causaram diversas perdas graves aos invasores de 1716; porém do Maranhão veio em socorro um destacamento de tropas, que afinal ficou senhor do terreno; e Mandu, quando na fuga procurava atravessar a nado o rio Parnaíba, achou a morte nas suas águas.
Daí em diante, não foi mais seriamente ameaçada a soberania do branco nessas regiões; os poucos índios, que restavam, tiveram que se acostumar com o modo de vida de seus vencedores e fundiram-se pouco a pouco na população mestiça. Todavia, nas fronteiras dos campos, mormente nas encostas da montanha dos Dois Irmãos e no vale do rio São Francisco, conservavam-se algumas pequenas tribos independentes, que dali empreendiam, de tempos a tempos, surtidas depredató-rias; passageiramente, na segunda metade do século XVIII, tomaram essas expedições tal extensão e importância, que os criadores se viram obrigados a abandonar, ao menos provisoriamente, algumas das fazendas mais distantes.
Quanto à organização política do Piauí, a princípio dominou, como já se mencionou, o fundador Domingos Afonso, como príncipe dos pastores; somente depois de sua morte tomou o governo-geral do Maranhão maior influência, passou a nomear e empossar os funcionários que ali eram necessários.
No ano de 1718 elevou então o rei d. João V a região à categoria de capitania independente; porém esta organização só teve execução muitos anos depois, quando, em 1758, o primeiro governador, nomeado diretamente pelo rei, ali empunhou as rédeas do governo; e ainda então conservava o governo provincial do Maranhão, ao menos em coisas militares, uma espécie de soberania, até que o príncipe regente, d. João VI, pelo decreto de 10 de outubro de 1811, acabou também com essa sujeição; com isto completou-se a emancipação da província do Piauí. A sua capital é ainda o velho quartel-general de Domingos Afonso, no rio Canindé, um afluente do Piauí; primitivamente aí era Cabrobó, uma aldeia de índios; foi em 1718 elevada a vila e crismada com o nome de Mocha; afinal, sob o ministério Pombal, subiu à categoria de cidade e recebeu o nome atual de Oeiras, em honra do ministro (do seu segundo título, conde de Oeiras), em 1758 ou 1762; hoje é uma pequena cidade, quando muito de 3.000 habitantes67.
Como a história antiga do Piauí, também a sua história moderna tem um certo interesse pelos seus característicos próprios. Como as outras províncias, seguiu esta o exemplo da mãe-pátria, Portugal, e exigiu uma carta constitucional, pelo que o governador da coroa depôs o seu cargo nas mãos de um governo provisório (princípios de 1821). Menos assentimento achou ali o desejo de independência; somente a cidade marítima Parnaíba aderiu; porém o comandante militar da província, João José da Cunha Fidié, apressadamente acudiu de Oeiras e ali restabeleceu o velho estado de coisas, em 2 de novembro de 1822. Também o governo provisório de Oeiras e os mais influentes fazendeiros perseveraram na fidelidade à coroa de Portugal e, sem mais, rejeitaram os conselhos das províncias vizinhas, as ordens que chegavam do Rio de Janeiro, do imperador D. Pedro I. Então um só homem realizou uma completa mudança.
Manuel de Sousa Martins, nascido em 1776, filho de um imigrante dos Açores, havia na sua mocidade, sem instrução especial, crescido no negócio de criação de gado e muitas vezes havia conduzido as suas boiadas à feira na Bahia; depois havia ele acessoriamente entrado para a milícia, ao serviço do Estado, e assim havia conseguido um assento no governo provisório, sem, contudo, ali exercer de qualquer modo grande autoridade ou prestígio. Agora resolveu ele dar o seu braço à causa da independência; depois de se haver entendido, por meio de negociações secretas, com as autoridades do Ceará, e garantido, além disso, um apoio para o que desse e viesse, reuniu ele secretamente os seus numerosos parentes e amigos, cercou de surpresa os seus colegas do governo provisório e fê-los encarcerar, juntamente com os membros mais proeminentes do partido português.
A massa do povo, a quem a atitude enérgica do agitador se impôs, deu-lhe apoio; e foi arvorada em Oeiras, a 21 de janeiro de 1823, a bandeira do império do Brasil independente, e Martins foi aclamado presidente da província do Piauí. A milícia correu às armas e marchou contra as tropas portuguesas, que já estavam em caminho da recém-pacificada Parnaíba para Oeiras; em meio caminho, a pouca distância de Campo Maior, toparam as duas tropas uma com a outra e, depois de curto combate, tocou a vitória aos brasileiros, a 13 de março de 1823, pelo que Fidié se retirou para oeste, ao domínio da província do Maranhão, onde se fortificou na pequena cidade de Caxias. Mas também ali o perseguiu o presidente Martins, à frente da milícia provincial do Piauí e do Ceará, e a ele, principalmente, se deve que Fidié e as outras autoridades portuguesas, depois de haverem gloriosamente resistido onze vezes às forças superiores, fossem finalmente forçadas a entregar Caxias e desocupar completamente a província do Maranhão, a 12 de agosto de 1824.
Estes importantes serviços, que Martins prestou à causa da independência brasileira, não ficaram sem recompensa: o imperador d. Pedro I confirmou-o na presidência do Piauí e promoveu-o a coronel; em seguida, depois da intervenção no Maranhão, ele subiu ao posto de brigadeiro-general e foi agraciado com o título de barão de Parnaíba, título que, na coroação de d. Pedro II (18 de julho d 1841), foi elevado a visconde de Parnaíba. Afirma-se que, além disso, Martins não deixava escapar ocasião de recompensar-se a si mesmo; especialmente no Maranhão, teria ele vendido por avultada quantia a sua proteção aos mais implicado partidários da causa portuguesa. Em todo caso, foi justamente naquele tempo da revolução que ele lançou o fundamento de sua futura riqueza, que, como dono de muitas fazendas grandes, ele soube conünuamente aumentar, graças a um intenso comércio de gado com a Bahia; e com ele também a sua família alcançou alta consideração e grande bem-estar. Contudo, seja como for, de todo modo muito tem o Piauí que agradecer ao visconde de Parnaíba; ao passo que por toda parte os presidentes provinciais mudavam em poucos anos, ele governou o leme de seu Estado mais de 20 anos sem interrupção; e em todo esse período, quando em volta reinavam as mais desenfreadas tempestades políticas, que abalavam profundamente o bem-estar das províncias vizinhas, aqui não foi a paz seriamente perturbada.
Costuma-se, portanto, chamar o visconde de Parnaíba de "Francia do Piauí" (em comparação com o Francia do Paraguai, que, no meio das revolucionadas províncias da bacia do Prata, mantinha idêntico estado de ordem para o país). O seu governo foi certamente despótico em absoluto, sem especial consideração pelas disposições da constituição brasileira, e em resumo ele foi mais temido que estimado; sobretudo suscitaram grande descontentamento entre as classes abastadas as leis provinciais que ele decretou para favorecer a população pobre, e que, em parte, não se justificam (como, por exemplo, foi para sempre fixado por lei um preço máximo muito baixo para ambos os principais gêneros de alimentação, carne de vaca e farinha); porém ninguém ousou protestar publicamente contra o poderoso presidente, que somente com os seus parentes e amigos podia mobilizar 2.000 guarda-costas, dispostos e cegamente devotados; só uma vez, quanto sabemos, a 17 de janeiro de 1838, correu risco a sua vida, ameaçada por um assassino, porém sem conseqüência.
Assim, em ambos os limites da história provincial do Piauí, no princípio e no fim, encontra-se um grande-príncipe de pastores que, sob as formas de Estado moderno e apesar delas, governou à maneira dos antigos patriarcas — um fenômeno que, embora nos pareça singular, todavia se explica facilmente pela feição particular desta terra de pastores.
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