No meio da rua
No Meio da Rua é a luta diante do desamparo, a poesia do migrante vindo do interior que enfrenta a barreira das grandes cidades. Dedicado a três amigos mortos – Gilberto Gick, Luis Holderbaum e Dorival Pacheco – e aos meus pais, foi lançado na época da anistia (1980), quando era preciso apagar o passado para sobreviver. Os poemas do livro compõem o terreno de um balanço e de uma arrancada, fundada na espreita, na tocaia e na esperança. Por especial intermediação de Juarez Fonseca, o amigo generoso que inventa livros e autores, o poeta Mario Quintana se dispôs a escrever o prefácio, confirmando assim sua boa impressão que meu livro anterior, "Outubro", tinha nele despertado (e que provocou "o maior elogio" da minha vida, segundo avaliação de Caio Fernando Abreu, ou seja , a inclusão, feita por Mário, do meu nome entre os quatro melhores poetas do Rio Grande do Sul – junto com Carlos Nejar, Armindo Trevisan e Walmir Ayala – elogio publicado no Correio do Povo, de Porto Alegre).
Prefácio de Mário Quintana:
Muitos pensam que quem faz um prefácio está se dando ares. Pois eu estou é tomando ares no meio da rua de Nei Duclós, que é esta mesma rua de todos, tão poluída mas tão salutarmente viva de gentes e de cartazes reivindicatórios. O primeiro poema que li, de Nei, assim começava: "Olhem o animal da palavra". Era eu. No tempo em que ele o publicou não pude agradecer-lhe. Pois foi quando se dera na Europa e nas Américas aquele histórico e súbito movimento de maturidade e independência dos jovens – os quais se apresentavam de longas barbas, não para imitarem seus venerandos avós, mas sim, creio eu, numa espécie de reencarnação do homem das cavernas -, visto que era preciso recomeçar tudo. Ora, como eu ia dizendo, não pude agradecer pessoalmente ao poeta, pois jamais conseguia diferençar um barbudinho de outro. Sei que agora ele está barbilampinho. Mas noutra cidade, onde diz coisas assim:
Eu já ia citando outros versos, mas pergunto-me por quê ou para quê. Ninguém gosta que o levem pelo braço, apontando-lhe o que há para ver. Esses encontros, especialmente os consigo mesmo, devem ficar por conta do leitor. E depois, quem é que lê prefácios?
Apresentação de Juarez Fonseca.
O mais expressivo e consistente poeta da nova (!?) geração gaúcha, Nei Duclós (Uruguaiana,1948), representa muito bem o espírito contraditório, a consciência nômade, a fisionomia, primeiro esperançosa e mais tarde amarga, dos jovens que presenciaram o passar dos últimos dez (ou quinze) anos no Brasil e no mundo. Que presenciaram, isto é importante, sabendo do que se tratava, do que se estava falando: divirtam-se e calem-se. Não se pode negar que Nei também divertiu-se. Mas foi um dos que não aceitou a determinação de calar-se. Jornalista por profissão e poeta por natureza, ele poderia responder, aos que acham que poesia-não-adianta, com um poema e um sôco no estômago. Poesia adianta, sim. Porque o poeta relata um tempo. Em Outubro, 75, um tempo. Neste No Meio da Rua, outro tempo. Mas ambos o nosso tempo, o tempo dos que souberam do que realmente se tratava. Dos que vacilaram mas odiaram sua hesitação diante da pergunta "Você sabe com quem está falando?". E dá pra citar tanto Chico, "chame o ladrão!", quanto Dylan, "está tudo bem, mãe, estou apenas sangrando" Poesia, meu velho, não é pra qualquer um, mas é pra todos. E o poeta é um bicho comum mas excêntrico", sim, porque, imaginem: um tipo que não pode não fazer poesia!…O poeta de verdade faz poesia mais por impulsão e inevitabilidade, do que por um mero "prazer literário". Nei Duclós é um poeta de verdade. (1980)
Poemas Selecionados de No Meio da Rua de Nei Duclós, L&PM editores
Portal
A porta abriu, aconteceu o milagre
um pé no portal, um passo grave
olho no temporal, corpo e viagem
Cais
O passageiro não perde a vez de partir
e parte
pois é tarde
Este cais apodreceu as cordas
que soltam a sua carne
Os bares silenciam
a memória é uma cadeira que ringe
como um cofre de vime
(o que passou não é sonho
é desafio)
De pé, a mão na vista
ele toca o horizonte com a saliva
Sua boca guarda um aviso
(o tempo é um susto, uma víbora)
Os esquemas do passageiro
Os esquemas do passageiro
são espirais
ele entra na roda
mas sempre sai
O passageiro não perde a noção do cais
Nem perde a volta
que faz
nem pousa
pra descansar
O passageiro não perde a noção do mar
Anônimo
O passageiro é anônimo anônimo, anônimo
passa pelos homens
passa pelos ônibus
mas não passa pelos lobos
pelo fogo das barreiras
quando procuram seu nome
no fundo da bolsa
Com as mãos no pescoço
o passageiro se encontra
No meio da rua
A casa do passageiro
é o meio da rua
por isso esse ar de loucura
por isso esse andar
de banda. essa voz
que inflama. esse olhar
de lua
por isso essa dor que
não recua
A cama do passageiro
é o amor de campanha:
armar o dia
manter o fogo
cobrir a fuga
por isso esse chamado
quando passa adiante
essa vontade
que alguém lhe acompanhe
O medo do passageiro
é sentir-se um estranho
por isso sorri
enquanto morre de fome
(ele nasceu, teve um sonho
mas o caminho, longo demais
lhe rouba o sangue)
No meio da rua
o coração do passageiro
bate o o bumbo
Abismo
Nada prende o passageiro
e seu abismo de espelhos
onde reflete o destino
do tempo
Nada esconde o passageiro
e sua cabeça de estrelas
onde guarda bagagens
e vento
Nada espera o passageiro
no seu caminho de espanto
onde encontra a perdição
e o pranto
Nada perde o passageiro
com sua coragem sem bolso
onde enfrenta paredes
e fogo
Nada parte o passageiro
com sua arte de encontros
onde inaugura cidades
e sonho
Cedo demais
cedo demais o caminho se dissolve
e uma cidade doida te consome
cedo demais o passageiro tomba
e as promessas feitas em seu nome?
cedo demais cessam os tambores
Fome
nesta cidade sacana
minha fome procura uma porta
minha voz é uma fonte com sede
meu sonho é um pastor que se mata
estou sobrando.
em volta, o silêncio
montando guarda
nesta cidade medonha
estão preparando
meu tombo na próxima quadra
e a minha vergonha
é ainda não ter uma arma
Cinza é o nome da cidade
Cinza é o nome da cidade
apesar do claro
que me abriu na alma
Pedra é a cor da cidade
onde apreendi
a ser leve
Dor é a vida na cidade
porque chegar ao sol
é atravessar espadas
Frio é o corpo da cidade
mas ele guarda
um abraço
Morte é a lei na cidade
que me fez marginal
e renovado