José Onofre: Sobra de Guerra

maio 13th, 2005 | Por | Categoria: Livros        

Nei Duclós

José Onofre está bem servido de fortuna crítica, porque a apresentação do livro é feita por Luis Fernando Veríssimo, seu leitor de longa data. Quem tem um fã de carteirinha como Veríssimo pode aposentar-se sem ter publicado uma única linha – o que não é o caso de José Onofre, jornalista de larga e profunda militância cultural, autor de textos primorosos sobre a melhor literatura e, como prova este livro, um escritor como poucos. Neste vôo literário enxuto e demolidor de Sobra de Guerra, ele entreabre um baú que o tempo – codinome da omissão – pensou ter fechado para sempre. O que vemos é muito mais do que o corte afiado de suas frases. Mas algumas podem ser destacadas, por ordem de aparição, como nos filmes, para servir de vitrine do que estamos falando:

“Você é um cão de caça jogado ainda vivo e jovem num freezer.

Apenas o gesto exato põe em movimento a roda da fortuna.

A máfia entrou na literatura e a literatura entrou no crime.

O que o pais precisa é bom senso e boca fechada.

Dá o fora antes que eu esqueça que sou um humanista.”

Onofre explora a superficialidade da tampa para sugerir a profundidade do poço. O diálogo escasso e alguns perfis ariscos dos personagens narram um crime que parece passional e pode ser político; o sufoco de um apartamento ensanguentado, a redação de jornal rondando a úlcera, uma delegacia com fantasmas no armário são flashes de ambientes que não merecem mais do que um ou dois parágrafos. Sinal de que Onofre não perde tempo para dizer a que veio – já que pressupõe o leitor como um cúmplice, a quem não se deve muitas explicações., afora o essencial – ou seja, os detalhes.

O país que emerge dessa usura narrativa é o mesmo revelado em qualquer mesa de bar, quando se fala pouco para a conversa não desviar a atenção do copo. A contenção leva o leitor a uma paisagem de primeiros planos, quando é possível reconhecer a máscara de cada um. O tiro desferido poupa o espelho quando podemos reconhecer, pelo reflexo da sobra, a essência da guerra. Vemos então um território que o romance policial clássico – e estrangeiro – costuma catar no lixo.

Se cavarmos qualquer história de detetive escrita em inglês encontraremos o Brasil naquilo que os personagens adoram pisar, e que aqui costumamos comer. Aparentemente, fica simples escrever histórias policiais com o material que temos à mão. Mas é essa facilidade que nos inviabiliza para o gênero. Não há o que descobrir quando todos sabem de tudo e todos consentem em calar por hábito – terno azul que veste o corpo da covardia. Se não há saída, nenhum caso poderá ser decifrado. E se não há o que descobrir, todos são bandidos.

O inspetor que no início da trama comporta-se com indiferença não reverte, no final – como acontece nos romances do gênero -para uma nobreza tardiamente revelada. Ao contrário: aqui o nosso detetive acaba confundindo-se com a matéria-prima que ele tenta revolver. O mais trágico -e magistral – é que o autor não reivindica a salvação, como acontece de maneira demagógica nos romances policiais. Tradicionalmente, quando o detetive revela enfim sua humanidade, no desfecho, é o escritor que encontra uma válvula para reconstruir-se e partir para um novo romance. Isso não acontece em José Onofre, porque sua ética é tão destruidora quanto a política recriada em seu livro.

Ele fecha o cerco sobre si mesmo e se retira para não mais voltar. Lá ele nos espera, com a chave do seu enigma, contrapondo-se ao horror, armado apenas de algumas palavras. Se fosse em Londres, chamariam essa postura e essa capacidade de talento. Como é no Brasil, podemos chamá-las de coragem, que é a única arma capaz de revelar a verdadeira vocação para a literatura entre nós.

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