Walter Firmo: A aventura do Olhar
maio 13th, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: ArteNei Duclós
Um criador não cruza os braços quando vira a maré: procura pressionado pelas circunstâncias, desenvolver seu garimpo obedecendo à velha lição política, de praticar a arte do possível. No caso do fotógrafo Walter Firmo, carioca de São Cristóvão, 47 anos e 25 de profissão, a repressão e a censura que se abateram sobre o trabalho jornalístico do País chegaram tarde demais: ele já tinha provado o sal da aventura e da criatividade no início da sua carreira, na década de 50, quando conseguiu uma vaga na Última Hora, do Rio, dirigida, na época, por Samuel Wainer.
Os ídolos da fotografia nessa fase anterior a 1964 eram os da revista Cruzeiro. Havia uma mística no jornalismo, principalmnete o fotográfico, num tempo em que a televisão não tinha nenhuma importância no Brasil. Assim, quando a maré virou, Walter Firmo – que da Última Hora pulou para o Jornal do Brasil e, mais tarde, para as revistas semanais- já era um repórter fotográfico forjado numa luta que por um tempo funcionou como um projeto em todo o País: o de desvendar a realidade brasileira, descobrir seu rosto, mudar a imagem que a população fazia de si mesma. Um projeto que, na área do foto jornalismo, pode ser resumido numa expressão, usada freqüentemente por Walter Firmo: o da descolonização do olhar.
Se a censura e o arbítrio – mais alguns motivos importantes, como a crise do papel, a partir da segunda metada da década de 60, que acabou restringindo o espaço das fotos na imprensa – procuraram destruir esse projeto, o trabalho de Walter Firmo comprova o contrário. Os fotógrafos brasileiros foram obrigados a um recuo tático, que acabou completando o trabalho inicial : o impacto da época de O Cruzeiro e Última Hora, era, no fundo, apenas o primeiro plano de uma realidade muito mais complexa e que exigia uma atenção redobrada. Intuitivamente e dentro do combate possível, Walter Firmo acabou aprofundando essa perspectiva, explorando ao máximo as possibilidades do seu trabalho.
Além disso, a imprensa modificada lançou-o em outras linhas de ataque: não eram mais os bastidores do futebol que ele fotografava, como no tempo da Última Hora; nem se tratava de apenas desvendar os segredos do Brasil, como na reportagem premiada com o Esso de Reportagem, em 1963, no Jornal do Brasil, “Cem anos da Amazonia de ninguém” (onde também fez o texto). Walter Firmo, temperado pelo bom jornalismo da época democrática, foi visitar os músicos, foi bater perna na calçada da cultura, descobriu uma estética luminosa, dilacerada no cotidiano popular cruzado contínuamente pela impunidade da repressão.
Não apenas fotografou enterro de crianças, favelas, procissões ou carnaval. Descobriu – e revelou – os infinitos desdobramentos de uma realidade criada por um povo múltiplo, um país surrealista, uma geografia transparente. Fixou o detalhe que a televisão ignorou e viu que, em cada cena basileira, há um elemento fundamental de síntese de transcedência: a alegoria, trabalhada por Walter Firmo com uma obsessão poética, e que confere ao seu trabalho um impacto difícil de se livrar.
O seu olhar abriu-se às novas dimensões do espaço urbano e captou o “absurdo” do real. Como na foto Trem de Fantasia, por exemplo, de 1978, exposta no Masp, de 18 deste mês a 11 de novembro, junto com as obras mais significativas desses 25 anos de fotojornalismo: num trem de subúrbio, usado diariamente para o trabalho, aglomeram-se as integrantes de uma escola de samba, vestidas a caráter, como se os hábitos populares da fantasia e do sonho servissem não só como contraponto a uma situação social degradante, como também para sua superação. Ou como no caso da foto Círio de Nazaré, também exposta no Masp ( a mostra ficará também de 8 de dezembro a 15 de janeiro no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro): um grupo de pessoas, agarradas a uma corda ( que não aparece), apresenta-se numa postura “irreal”, como se até o andar das pessoas, em determinadas ocasiões, obedecesse a um outro tipo de movimento e se firmasse sobre um ponto desconhecido de equílibrio.
Muitos outros exemplos podem ser citados, como as fotos de brasileiros, ilustres, como Pixinguinha ou Nélson Rodrigues, ou a intimidade de uma solteirona de Belém.(Leito do Tempo, 1980) Mas o importante é dar a palavra ao próprio Walter Firmo que vê essa mostra como o fim de um ciclo no seu trabalho, uma espécie de síntese alegórica de um combate que está longe de chegar ao fim. Pois Walter Firmo, filho único de um portuário que um dia lhe trouxe de uma viagem uma Rolley-Flex legítima, quer continuar sua aventura: acaba de ser contratado pela Última Hora, do Rio, que passa por uma importante fase de reformulação.
Ele promete: não vai ficar atrás de uma mesa, chefiando uma equipe. Vai mesmo é para a rua, onde estão expostas, disponíveis ao seu olhar descolonizado, as verdades de um país que se precisa conhecer melhor para dar certo.
Agradeço seu belo texto falando sobre a aventura fotográfica minha nestes nossos rincões.Confesso que não me lembrava dele, tão revelador a mim mesmo, de partes minhas que eu desconhecia.Parece que você se apaixonou pela causa e embarcou numa viagem através dos meus olhos.ainda enquanto vivemos é bom ter reconhecimentos, pois, afinal, a miragem artística de um trabalho requer uma crítica síntese que norteie e indique se o nosso caminho está certo.Hoje, com setenta e oito anos de idade,agora também ainda me considero picado por este mosquito benfeitor que se chama “Cartola, marido da Zica”, que me faz menino, ainda com a infantil vontade de me perder por aí, desvendando este torrão Pátrio, ensolarado no prazer e que nos incentiva sempre mais uma vez percorre-lo, num redescobrimento constante, já que, alguém já disse que na “natureza tudo se transforma”.
Mais uma vez, obrigado pelo contexto sentido do meu trabalho, quase surtei em me rever no espelho de suas palavras.
Mestre Walter Firmo. Este texto, totalmente baseado na tua obra e nas tuas palavras, é um precursor da tendência hoje muito disseminada de buscar “um olhar” sobre tudo. Quem faz, ensina. Obrigado a você.