LONGA VIDA À UFRGS

maio 13th, 2005 | Por | Categoria: Memórias        

Nei Duclós

I – SAINDO DA ESCOLA
Estudar na UFRGS era destino de todo o estudante gaúcho do interior. Fora das suas faculdades principais – engenharia, medicina ou advocacia – não havia salvação. As pessoas se dividiam entre as que passavam no vestibular da UFRGS e o “resto”. O pavor de não ter destino nenhum me obrigou a passar na Engenharia em 1967. No mesmo ano, cometi o desatino de ser reprovado no vestibular de jornalismo, considerado fácil demais, o que não era verdade. Essa primeira tentativa de fazer jornalismo foi um ato quase clandestino, pois era um luxo vir de longe para abraçar uma carreira “sem futuro”. Tinha me obrigado a cursar a “Escola”, como era conhecida a faculdade de Engenharia. Mais tarde descobri que tinha me decidido pelas Exatas só para provar que poderia passar por aquele umbral, e que as Humanas eram opção consciente e não – como se costumava dizer na época – um refugo de quem não tinha capacidade de entender matemática e física. Na “Escola”, só havia um caminho para a salvação: ser engenheiro. Quem não participasse dessa experiência, merecia pena. Sempre impliquei com a Engenharia porque tenho dois irmãos -e, mais recentemente, um sobrinho – que se formaram lá. Sabemos para que servem os irmãos: para implicar uns com os outros. Mas foi impossível aturar o destino definitivo que tinha escolhido, pressionado pelas circunstâncias. Sentia que alguma coisa estava acontecendo fora dali, quase ao lado, mas não conseguia participar. Confinado às aulas de Cálculo, rodeado de futuros engenheiros, sonhava em atravessar a avenida e, nos domínios do Parque, insistir naquilo que, por falta de outra definição melhor, chamava de minha vocação. Os engenheiros tinham outras metas, que não me interessavam. Gostava era de escutar alguém dizer o seguinte, publicamente: “Nossa luta é contra o imperialismo e contra a ditadura.” Ficava impressionado como podiam fazer discursos como aquele numa época de sombras. Hoje existe o marketing daquela década, mas esquecemos rapidamente como foram duros e pesados. Todas pessoas, com raríssimas exceções (basta olhar as fotos) usavam cabelos curtos. Comunista era um dos piores xingamentos. Cultura, só a de Hollywood. Os filmes de Godard passavam para cinemas vazios. Uma das expressões mais cultuadas era “sociedade de consumo”. Bossa nova provocava sono. Os estudantes queriam ensino gratuito, para garantir o acesso ao mercado de trabalho, que era escasso e elitista. Abandonei a “Escola” – apesar de admirar os dotes teatrais do professor de Cálculo – e insisti no Jornalismo, situado a poucos metros, no Parque da Redenção. Comecei a freqüentar o curso em 1968, quando o mundo explodiu.

II – É DURO NÃO SER UM LÍDER Por ter passado com o primeiro lugar no vestibular de Jornalismo da UFRGS, meus colegas – que não me conheciam – acreditavam que eu poderiam ser um líder e me escolheram representante da classe. Fui então descoberto pela militância estudantil de esquerda – mais especificamente, por Juarez Fonseca, que, diante de uma intervenção minha durante um debate, me chamou num canto e meu deu a primeira aula de bastidores de política estudantil. Enxergaram em mim um possível quadro extraído diretamente da “massa”. Por questões que ignoro, imediatamente passei a ser Secretário de Imprensa do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, o núcleo da agitação estudantil que sacudiu Porto Alegre naquele ano. Meu grande feito como Secretário de Imprensa foi ter lançado uma edição do jornal do CAFDR, “O Coruja”…nas férias de julho! Lembrei que saí com os jornais na mão para distribuir e todo mundo tinha ido embora. Foi um terrível início de carreira. Fiquei impressionado como eu não conseguia entender uma só palavra das discussões travadas entre duas correntes que disputavam a liderança do movimento. Uma era a AP – Ação Popular, de raiz católica e que naquele momento estava aderindo ao maoísmo. Mais tarde a AP defendeu a luta armada e tinha como palavra de ordem “abaixo a ditadura e fora o imperialismo”. E de outro o POC, Partido Operário Comunista, que segundo um colega meu, tinha sido fundado no apartamento dele. Os poquistas queriam o povo no poder, ou seja a revolução comunista já, tirando a “burguesia” e colocando no seu lugar o operariado. Já os “de AP” queriam, primeiro, derrubar os militares e expulsar os “ianques” que sugavam o Brasil, para só depois fazer a revolução socialista. Sempre achei que ali, nos redutos de Porto Alegre, a briga entre os “verdadeiros” revolucionários e os “revisionistas” ajudou a matar o movimento. Outro erro foi a traição às reivindicações puramente estudantis: a “massa” ia para a rua para lutar pelo ensino livre e gratuito, mas na hora H, os militantes desfraldavam bandeiras do Vietcong e gritavam slogans como “o povo no poder”, ações que não tinham sido aprovadas em assembléias. Ao mesmo tempo, relembro a coragem dos líderes daquela época e que nunca são lembrados nas retrospectivas (que insistem no José Dirceu e no Vladimir Palmeira, como se o Brasil fosse apenas Rio-São Paulo). Onde andará José Loguércio, o grande (para mim, naquela época, assim parecia) presidente do CAFDR do auge da agitação? Ele conseguia colocar 30 mil pessoas nas ruas enfrentando soldados armados. Recentemente, Mangabeira Unger falou da falta de grandeza com que os brasileiros costumam se olhar. Trata-se de um mau costume, pois o País tem a vocação épica. Zé Loguércio, organizando grandes passeatas na época em que ser de esquerda podia levar à morte, sumiu. Enquanto isso, montes de ratos puseram a cabeça para fora, depois que o perigo passou, para assumir um passado de lutas que nunca tiveram.

III – DE ONDE AQUELA MAGIA? Hoje é costume fantasiar sobre os “loucos” anos sessenta. Baseado nos meus anos de UFRGS, resumo aquela época em poucas palavras: magia, medo e miséria. A magia era por nossa conta, pois refletíamos uma luz especial que banhava o planeta e que nunca mais voltou (talvez seja o que simplesmente chamam de juventude). O resto estava aos cuidados da repressão, que estava no auge. O AI-5, de dezembro de 1968, praticamente encerrou minha carreira na UFRGS oficial. Fiquei ainda mais um ano tentando seguir as aulas, mas já me entregara à poesia exposta na praça e à vida errante. Sorte que a convivência com professores e estudantes da universidade tinha provocado um impacto: queimei inúmeras etapas. Saí do parnasianismo herdado dos estudos na fronteira e descobri o modernismo. Comecei a ler Mario e Oswald de Andrade,João Cabral, Fernando Pessoa, Garcia Lorca e Maiakoviski e isso mudou minha vida. Para alguém que tinha crescido com Castro Alves, Rui Barbosa e José de Alencar, os autores que a universidade me apresentou significavam um salto no escuro, a realização de uma fantasia: a de que a linguagem, sem amarras, poderia despertar uma velha vocação escondida em cadernos de espiral. Em 1969, graças à UFRGS, já tinha esboçado meu trabalho poético, expondo na praça os poemas que mais tarde reuniria no livro de estréia, “Outubro”, publicado em 1975.

IV – A CARA NO MUNDO A Universidade Federal do Rio Grande do Sul abriu as comportas do século vinte para um poeta vindo do meio do pampa. Descobri o Brasil, a minha geração, a imprensa, a literatura, o cinema de vanguarda, as portas da percepção. Nela, adquiri confiança sobre meu trabalho poético. Foi no próprio Centro Acadêmico que fiz minha primeira exposição de poemas, junto com mais dois escritores, Marco Celso Viola e Marisa Scopel. Mais tarde, expusemos na Praça da Alfândega, na Praça da República, de São Paulo e na Praça General Osório, no Rio. A UFRGS me incentivou a colocar a cara no mundo. Jamais teria dado uma virada na minha vida não fosse a universidade que freqüentei por três anos em dois cursos incompletos. Ela serviu para me encaminhar para o mercado de trabalho, pois foi através dela que me candidatei ao primeiro estágio, na Folha da Tarde, da Companhia Caldas Júnior, onde tive contato com uma brilhante geração de jornalistas. Mesmo sem o diploma, saí da universidade com uma profissão definida e, o que é melhor, com uma linguagem poética própria. Acabei cultivando, ao longo de décadas, uma demanda reprimida por uma faculdade onde eu pudesse chegar até o fim. Encontrei esse espaço na USP, onde me bacharelei em História o ano passado. Sintomaticamente, os estudos de História me levaram de volta ao pampa e a um olhar mais generoso ao que aprendi lá. Estudo a geração dos meus pais e o pipocar contínuo daquela guerra das primeiras décadas do século. Hoje posso dizer que aprendi o mais importante no Colégio Santana, de Uruguaiana, pois por longos anos, toda as semanas, minhas redações foram avaliadas pelos irmãos Maristas. Foi assim, treinado no texto, que cheguei a Porto Alegre para a outra guerra, a de 1968/1969. Desejo longa vida à UFRGS, que me ensinou a ter coragem e a lutar pelo meu destino. Ela foi minha melhor universidade e sinto orgulho de ser seu ex-aluno.

(artigo publicado no Jornal da UFRGS em março de 1999) I – SAINDO DA “ESCOLA”

Estudar na UFRGS era destino de todo o estudante gaúcho do interior. Fora das suas faculdades principais – engenharia, medicina ou advocacia – não havia salvação. As pessoas se dividiam entre as que passavam no vestibular da UFRGS e o “resto”.

2 comments
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  1. Prezado Nei,
    ontem participei da festa de aniversário do Zé Loguércio (61 anos) o seu contato é 81143850, [email protected].
    Acabou de ter aprovada sua tese de doutorado na Ufrgs que penso ser mais subversiva do que comandar as passeatas de 68.

    abç

    Pedro

  2. Acredito que sim, Pedro. Obrigado pelas pistas do nosso Zé Loguércio. Abs.

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