A GEOGRAFIA DA MEMÓRIA

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Memórias        

Nei Duclós

O dia claro de abril, cheio de contrastes de cores, luz e sombra, com vento temperado a velocidade amena, me levam, pela lembrança, rua abaixo até o rio, o pampa, a estrada. As pedras sendo esmagadas pelo tênis, o pé descalço, o sapato velho. A companhia dos camaradas, junto aos quais nada podemos temer, nem os caras da outra zona, nem os cachorros, os loucos, as velhas, os muros. Íamos em direção ao grupo de umbus, árvore de madeira mole e farta sombra, refresco no deserto da fronteira.

Agora, rodeado de montanhas e rente ao mar, revejo a sensação daquela vida que continua lá, gravada para sempre na geografia da memória, arquivo vivo de uma esperança que nos liga em algo maior, porque a paz de espírito é a certeza na vida eterna. Dia bom para passeio, para ler na rede, para sonhar e dizer, como Churchill em plena Segunda Guerra, antes de dormir: ora, danem-se todos. O mundo vai mal? O universo não se importa. O que é uma canelada diante da fornalha das estrelas? Filosofia barata, dirão, mas são esses pensamentos, embalados por leituras melhores do que conseguimos produzir, que fazem nosso dia e nos levam para longe, aqui mesmo, onde escolhemos viver.

DESPEDIDAS – Alguém nos leva até a plataforma. Damos um longo abraço e subimos no ônibus. Da janela, vemos a pessoa acenando enquanto damos ré até a reta que nos leva dali para nunca mais voltar. Lindolf Bell pega a pedra pintada de muitas cores, dá um suspiro e diz: Essa é a pedra Açu-açu, ela vai te acompanhar, vai te dar sorte. Estávamos em Blumenau, onde lançamos (ninguém mais lembra isso oficialmente) o Jornal de Santa Catarina.

Decidi que era um escândalo que um jornal local não fizesse uma ponte com o grande poeta dos versos ditos na praça, na rua e que vivia de sua galeria de arte junto à esposa Elke Hering Bell. Convidei-o para visitar a redação e a escrever para o jornal. Ele ficou entusiasmado, generoso como era. Conseguiu trazer Hair para a conservadoríssima cidade em 1971 e quando todo mundo surgiu nu no palco foi o primeiro a levantar-se e a aplaudir. Lindolf Bell é inventor de uma modernidade que ainda nos faz falta. Nunca mais vi o poeta depois que ele me presenteou com aquela pedra da sorte. Morreu na década seguinte e hoje é lembrado pelos seus conterrâneos com carinho e admiração.

Convivi com as melhores cabeças, porque tive sorte nesta minha passagem pela terra. Tarso de Castro me encontra na rua e eu abraço seu corpo muito magro. Senti seus ossos quando apertei-o, ele outrora tão influente e temido e agora ali, exangue, sofrendo longo martírio de saúde. Vi seu rosto encolhido depois, no velório, antes de partir para ser enterrado em Passo Fundo. Quando vivemos um dia claro de outono, devemos lembrar o que nos brindaram com sua presença e nos fizeram melhores do que somos. As pedras do rio ringem quando colocamos nela nossos sapatos de jornada. É dia de pescar.

SONO – Nem sempre temos sorte. Voltamos de mãos abanando, com a cesta vazia, os anzóis limpos, nenhum cheiro de peixe. Rodeados pelo que há de pior na humanidade, somos pescadores focados na nossa infinita solidão. Por isso gostamos de ficar na beira do rio, sem que ninguém nos atrapalhe. Ficamos imaginando o futuro, sem saber que esse momento, o da pescaria, será nossa memória eterna. Onde estivermos, no meio do mais frenético mundo, lá estará nosso coração diante de um peixe que não morde a isca, de uma companhia que não chega, de alguém que passa ao longe.

Chegamos em casa exaustos e despencamos na cama embaixo da janela que dá para a rua. Já é tarde. Passa uma turma e ouço minha própria voz dando as cartas. Sou o que imagino, perdido na última rua de asfalto, enquanto no quarto ao lado meus pais dormem o sono da eternidade.

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