MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO

nov 24th, 2010 | Por | Categoria: Memórias        

Nei Duclós

Lembro de tudo, mas posso errar nos detalhes, não importa. O que vale é a memória, o rescaldo daquela época e as conseqüências hoje, pois 2010 é o resultado de 1968. Duas tendências opostas se digladiavam pela liderança do movimento estudantil naquele ano. Eu “pertencia” à AP, como se dizia, a Ação Popular, organização vinda da JEC, JUC e JOC, associações católicas, uma que reunia Estudantes secundaristas, outra Universitários e a outra Operários. Elas ficaram obsoletas, pois eram do tempo da democracia extinta pelo golpe de 1964 e foram substituídas pela AP, sigla mais abrangente, que reunia militantes para “derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo”.

Essa era a palavra de ordem de AP, oposto à dos outros partidos, também clandestinos, como o POC, Partido Operário Comunista, que pregavam o povo no poder, ou seja, a ditadura do proletariado. A radicalização do processo, com o AI-5, fruto das mobilizações de massa bem sucedidas, que balançaram o governo, levou a AP para o maoismo (e de quebra o foquismo guevarista) e o POC e congêneres para o stalinismo. Combatentes das duas correntes optaram pela luta armada e “caíram”, como José Dirceu, enquanto outros partiram para o exílio, como José Serra.

Esse confronto ideológico se dava na elite hiper-intelectualizada das lideranças e seus clones, restando à massa as reivindicações básicas, usadas até o osso pela esquerda estudantil. As pessoas que não entendiam as diferenças entre as duas correntes, queriam apenas mais vagas na universidade, e que ela continuasse pública e gratuita, já que o sucateamento da classe média não permitia a muita gente pudesse arcar com os custos do ensino privado. Não atinávamos que a diferença de enfoque era fundamental, pois se você quer derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo há margem para compor com outras forças democráticas, enquanto a palavra de ordem pela ditadura do proletariado restringia o espectro para meia dúzia de militantes.

O que aconteceu? O confronto democrático foi vitorioso, enquanto a guerrilha urbana e rural caiu em desgraça. Quando Gabeira, que seqüestrou embaixador, voltou, era a cara mais vistosa dessa esquerda que vinha participar do Brasil pós anistia. José Dirceu preferiu se esconder num pseudônimo no interior do Paraná, onde nem a própria mulher sabia da sua verdadeira identidade. O resto, a massa, estava amargando a ditadura e foi trabalhar porque a vida não faz graça com ninguém.

Na campanha eleitoral de 2010, as duas correntes se enfrentaram nas urnas pela primeira vez, mesmo que isso tenha sido mascarado por uma série de truques de linguagem, desde a religiosidade forçada da ex-chefe da Casa Civil quanto a tentativa de esconder FHC por parte do ex-governador paulista. A linha pacífica e progressista, que compôs com outras forças do espectro democrático, se digladiou com ex-guerrilheiros aparelhados no Estado, que sabiamente souberam unir as lições de Stalin com o diagnóstico de Raymundo Faoro sobre a hegemonia do Estamento no Brasil em Os Donos do Poder (não que mestre Faoro tenha a ver com essa choldra, pois ele fez apenas o diagnóstico e a denúncia). A esquerda que devora adversários e se livra de parceiros transformou-se na caratonha do Estado desvirtuado por décadas de ditadura.

Para quem continuou fiel à sua opção de apostar na democracia contra o aparelhamento do estado e seu entorno, ou seja, a sovietização burocrática, a perspectiva de censura e a festa do butim, Serra teoricamente enfeixava qualidades de oposição. Havia empecilhos, como seu envolvimento visceral com o fisiologismo pessedebista, uma dissidência do velho emedebismo, oposição consentida da ditadura; e o apoio dado pela direita reunida no DEM, partido que veio da antiga Arena. Mesmo com esses furos, Serra conseguiu 44 milhões de votos. Somados aos 32 milhões dos votos jogados fora (branco, nulos e abstenções), representam 2/3 do eleitorado, o que coloca por terra os pretensos 89% de aprovação ao atual chefe de governo.

Hoje vemos a presidente eleita ligando para José Sarney para decidir a parada de uma casa de luxo (funcional) para o senador petista em detrimento do senador goiano. Vemos o estouro do Banco Panamericano, que lança luzes sobre a manipulação do episódio da agressão a Serra. Vemos a ficha de Dilma que organizava assaltos, omitida durante a campanha eleitoral para evitar uso político, enquanto se sabe que a omissão também foi uso político.

Para enfrentar bandido, você não pode se transformar num deles. O pessoal do “povo no poder” não entendeu assim e partiu para o seqüestro, o assassinato e o roubo. Hoje se beneficia de uma contrafação, o político que veio das lutas sindicais e pegou carona nas reivindicações populares para permanecer no poder e entregar o país, a exemplo do que foi feito nos oito anos sinistros de FHC, o sujeito que inventou a reeleição e sucateou o patrimônio público (que não foi reestatizado pelo seu continuador, Lula).

Serra agora quer se reconstruir como líder da oposição. Acho difícil. A direita descobriu que tem cacife eleitoral e vai querer disputar a presidência. Pois isso a esquerda fez: ressuscitou a direita, que tinha sido enterrada depois dos anos de chumbo. Há o centrismo, tanto de Aécio como do PMDB, que são vorazes por poder e que dificilmente vão querer compactuar de novo tanto com o petismo quanto com Serra. A perspectiva é que o processo se radicalize novamente, com o fisiologismo no poder e a indignação popular se intensificando.

Fiz esse texto de memória. Quem quiser, que pesquise. Eu vivi esse tempo e posso falar. Talvez minha percepção não tenha se inteirado dos fatos mais importantes, já que sempre fui marginal ao processo. Mas sempre existe alguém que fica para contar a história. Não teve a mínima importância, mas eu briguei com todos em 1969, quando percebi, pela reundância do discurso, que estavam patinando e errando sem parar, o que prenunciava mais tragédia (a insensibilidade política diante das evidências). Minha opção na campanha presidencial veio de longe, teve um link com esse tempo em pé de guerra. Foi a primeira em que eu realmente me engajei. Gostei. Se preparem.

Deixar comentário