BORGES – ELOGIO DA SOMBRA
dez 18th, 2009 | Por Nei Duclós | Categoria: LivrosNei Duclós
Iluminado pelas leituras de toda uma vida, Jorge Luis Borges descobre o essencial quando finalmente é empurrado para a sombra. A cegueira, dura presença aos 70 anos de idade, o deixa só diante da fonte que alimenta os clássicos – sua paixão explícita, uma rede tecida desde Virgílio a Kipling.
Nesse ambiente onde as palavras são desmascaradas – porque revelam-se desnecessárias – o escritor transforma-se no oculto veio que pacientemente garimpou nas bibliotecas, e que faiscava nos olhos de uma leitura privilegiada – árvore generosa de onde brotaram seus inúmeros livros.
Memória, então torna-se esquecimento, a literatura transmuta-se em vida e a poesia é a alta gávea que anuncia a descoberta. Neste Elogio da Sombra, não é a treva que ofusca a obra, mas um outro sol, imaginário antes, real agora, quando tudo vira linguagem. Inclusive o que não pode ser alcançado pelo poema, apenas sugerido, como os volumes submersos para sempre no alto das prateleiras.
Ao desistir de tudo, o escritor emerge como personagem, abandonando os leitores à própria sorte. Não foge, se encontra. Não trava, desanda. Não morre, eterniza-se. Aproveita para fazer um inventário, que passa por Heráclito, Zeus, Buenos Aires, Joyce, Israel, o pampa – todos cenários que somem na neblina depois da última linha.
Mas fingir-se de morto não era seu objetivo. Sua intenção de identificar-se com a matéria-prima que o envolveu o tempo todo, é sincera. Retira-se da casa onde habitou para um lugar mais profundo, menos visível, mas indestrutível: é de lá que fluem os materiais forjados pelo gênio. A humildade diante do absoluto pode ser encarada como mais um jogo de sua predileção, mas o que salta à vista é a sobriedade inspirada pela presença da morte.
Esse é o seu destino: vazar o corpo fechado da razão para nele transparecer a loucura. Não o desatino dos doidos, mas a ardente lucidez da sabedoria.
Borges aproximou-me demais da luz e, aparentemente, recusou-se a tocá-la. Virou os olhos para o Outro Lado e nesse movimento, conquistou o definitivo espaço dos mestres. Ele nos conduz pela mão e, na beira do abismo, desaparece.
Ficamos, então, reduzidos ao pó de suas palavras, que ressoam como um sussurro, a ecoar a suprema ironia dos deuses. O livro não passa de uma armadilha. O que temos na mão é pura paisagem, rede que abraça a pedra na praia, e nos enreda, sugerindo afogamento. Quem, de sã consciência, teimará em escapar desse laço?