Rilke: A ética da solidão
maio 13th, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: Livros
Ao buscar o humano desprovido de disfarces, Rainer Maria Rilke encontrou a grandeza. Em “Cartas a um jovem poeta” ele relata essa dolorosa passagem em direção à essência, que implica arrancar a fantasia cotidiana grudada à carne. O sangue decorrente dessa decisão não significa apenas recolher-se à solidão seminal da criação. Mas de abrir mão da moeda mais cobiçada, o reconhecimento, de cruzar o pior dos umbrais – a indiferença – e encontrar o mais amedrontador dos mundos, aquele onde habita a necessidade absoluta e a permanência.
Ao tratar com sobriedade e transparência o missivista Franz Xaver Kappus, que lhe pediu socorro num momento decisivo da vocação, Rilke aproveita para expor as bases do seu processo criativo. É de sua própria literatura que está falando, passaporte para o caráter universal de uma obra considerada difícil. Mas não se trata de uma introdução ao que parece intrincado nos seus outros livros. É, antes, uma convivência com eles, uma irmandade – talvez mais feliz na clareza, mas igualmente soberba na claridade.
“Carta a um jovem poeta” é a antologia de uma correspondência, que não inclui o que foi escrito pelo iniciante ao mestre. Essa oclusão de um dos interlocutores poupa-nos das dúvidas e angústias de uma vida, que procura encontrar o caminho certo da literatura, e nos concentra num conteúdo de permanente atualidade.
Isso acontece graças a uma dupla generosidade. Primeiro, a do escritor consagrado que dedica parte do seu tempo a orientar um autor iniciante. Segundo, a do destinatário que omite sua participação na correspondência, como forma de agradecer ao mestre e reconhecer nele uma espiritualidade superior. Esta é uma das lições deste pequeno livro. Pois não basta talento ou determinação: o desprendimento é essencial para a permanência da arte. A ética de compartilhar com o outro os segredos mais íntimos, e reconhecer no semelhante a possibilidade do gênio, gera o ambiente necessário para a literatura que confere dignidade ao presente e desafia a voragem do tempo.
O insumo para esse desafio é a solidão, somada à coragem, à persistência e à paciência. Ao aconselhar a solidão contra a brilhareco da vida literária, Rilke reconhece nela a verdadeira face da natureza humana, a fonte da arte que não pode ser apartada de uma vida carregada de significado.
Seu libelo contra a irracionalidade da crítica – território minado do pseudo pensamento cientifico – privilegia a lucidez da espiritualidade. É com se fosse uma esgrima contundente contra a obscurantismo, uma forma de contrapor a seriedade do trabalho poético contra a superficialidade das análises. Esse aspecto polêmico reveste as Cartas de um alcance mais profundo do que o simples conselho, e mais amplo do que o trato do trabalho literário.
A receita amarga da sinceridade como resposta à admiração do escritor estreante é a lição mais dura deste feixe de palavras que cruza um século sem perder o fio do seu corte. Cem anos depois, as Cartas funcionam como um alerta para os vícios da nossa época, submetida, mais do que qualquer outra, à sordidez da superficialidade, justificada como insumo democratizador. É como se Rilke nos esperasse no futuro, com seus princípios intactos, não para cobrar a conta, mas com sua iluminação eternamente disponível para uma vida mais completa.
Graças à tradução de Paulo Rónai, intelectual e multilinguista húngaro naturalizado brasileiro, as Cartas chegam até nós com o viço da linguagem bem resolvida. É quando os talentos de línguas diversas se sintonizam para privilegiar a leitura, e por meio dela, o conhecimento e a emoção. A companhia de Rilke com Paulo Rónai e Cecília Meirelles – que verteu para nossa língua “A Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”, publicada na sequência das Cartas – é mais uma lição deste relançamento. Pois para disseminar a excelência da criação, é preciso que as editoras procurem e achem as pessoas certas, para que a literatura se universalize em suas qualidades e não em seus defeitos.
O trabalho de Cecília Meirelles na tradução da saga do ancestral morto na batalha, pinçado pelo poeta na história familiar, abre as portas para uma viagem literária de inúmeras revelações. A principal delas é que o mito pode ser encontrado – ou criado – a partir dos detalhes da memória pessoal e da saga comunitária.
Para Rilke, o trabalho demiúrgico do escritor não está acima ou fora do humano. Talvez o preceda – e esse é o aspecto mitico e ancestral da sua poesia. Ou apenas o revele na sua verdadeira grandeza – e esse deve ser o segredo da sua força e permanência.