TALHO CERTEIRO
maio 13th, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: LivrosNei Duclós
O gaúcho brotou da guerra e encontrou sua melhor morada na literatura de João Simões Lopes Neto (1865-1916). Nesse refúgio de refinado acabamento, ocupa um lugar na vanguarda – aquele pedaço da tropa que prova a luta antes dos outros, por destino, missão e gosto. O som destes contos e lendas é de chispa de facão – seja no embate em campo aberto, nas brigas pessoais ou nas refregas de amor. É também o som do surdo tremor provocado pela assombração na hora da Ave-Maria, quando o Boitatá e as velas para o Negrinho do Pastoreio iluminam a boca da noite.
Melhor: são barulhos de cascos, recriados pela maestria de um autor que, depois de emigrar moço para o Rio de Janeiro, voltou-se para as suas raízes, onde descobriu o sal necessário de uma revolução nas palavras – texto disperso na terra que o talento e o suor deram a dimensão exata, e daí transcendeu para a permanência.
Podem chamar de regionalismo, mas o batismo é mais amplo. Da costela dos clássicos, gerou novas semeaduras, tornando-se universal, paradigma de um povo que, isolado, abriu picada própria. Para entender, basta “escuitar”, o gaúcho pede atenção e, didático, narra seu mundo à parte. Rei de sua própria arte, dono absoluto de sua lenda, faz História sem nenhuma cerimônia.
Pois a guerra ensina: quando o inimigo é farto, o peito torna-se largo, a morte acode como companheira e a narrativa medra, original, única. Nesta fonte bebem todos: tanto a arte incomparável de João Guimarães Rosa, que também na oralidade do povo construiu sua obra, quanto o tradicionalismo hoje triunfante, que inunda cidades e pastos do Rio Grande.
É isso que torna obrigatória sua leitura. É impossível dispensar a presença de Blau Nunes, personagem-síntese de uma vivência, narrador de uma linguagem que torna-se referência ao superar o barro de que é feito. Quem ignora, perde. Como rosa boiando no manantial, esta obra é sinal de afogamentos mais fundos e de criação mais poderosa.
O gaúcho poderá morrer – por obra do tempo – mas sobreviverá aqui, intacto, pela mão de seu escritor maior. Ao leitor, basta mergulhar neste arroio alimentado pela tempestade, que jamais perde o perfil da margem, onde as histórias se acomodam num acervo muito além da memória. Trata-se de literatura de primeiro time, podendo ressurgir sempre que a cultura brasileira ameaça morrer de inanição. Para enfrentar a falta de identidade dos tempos atuais, é só folhear estes contos e lendas que se opera o milagre: da facada certeira de Blau Nunes, jorra o sangue da raça. Pois, de um talho só, ele pega a cabeça a alma e o coração.