O CINEMA CRUZA O ESPELHO

maio 13th, 2005 | Por | Categoria: Cinema        

Nei Duclós

Cópia é a memória do original. O que vemos no cinema são cópias da primeira versão do filme. O dinheiro é a reprodução de matrizes. Somos cópias hereditárias, projetadas no tempo. Nossa origem perdida nos faz continuamente iguais, mas ela nos exclui, porque não temos acesso a essa fonte única. Assim também André, operador de fotocopiadora, que não tem como chegar ao núcleo do poder, o dinheiro. Seus sonhos estão limitados pela barreira que o impede de chegar aos originais da sociedade onde vive. Ele manipula apenas as cópias do que não entende. Lê um soneto de Shakespeare que pagaram para xerocar, mas não sabe o que ele significa. Sua única originalidade – seus desenhos – não conseguem sair do anonimato do seu quarto.

A saída é vestir a cópia com a fantasia da essência. Ele cita Shakespeare, tenta impressionar dizendo que vive das suas ilustrações, e procura passar o dinheiro falso que conseguiu reproduzir no xerox colorido do seu emprego. Mas o que funciona com as coisas não acontece com as pessoas. A colega do trabalho não aceita ser sua namorada, já que está procurando um partido rico; o amigo, que tinha sido apresentado como vendedor de antiguidades, revela-se um pobre balconista de loja de móveis usados; o amigo traficante, no primeiro prejuízo, quer assassiná-lo. Vendo pessoas reais num mundo de coisas inautênticas, André busca a salvação tornando-se uma outra pessoa, a cópia do que vê como sendo a porta para a felicidade. Se ele conseguir ser uma cópia do poder, tanto faz que as coisas sejam falsas. O importante é o que as pessoas enxergam e acreditam.

O diretor do filme, Jorge Furtado – aquele que sabe filmar – cata a essência do seu cinema com um método original. Ele opta, na primeira parte, pela narração na primeira pessoa – modo de amarrar o filme sonoro, torná-lo mudo, enquanto o narrador pontifica na superfície. O objetivo é cassar a fala do filme para melhor mostrar o que seu olho interno enxerga. Quando a obra está na mão, amarrada – junto com o espectador – a uma cadeira de cinema, ele o solta na correnteza em seqüências memoráveis, como a que precede ao assalto.

O que era mudo torna-se explícito pelo som que agora acompanha as mesmas imagens do início do filme. O homem que dança com um fone no ouvido encerra um mistério: o que ele está ouvindo? André descobre. E o som que agora o espectador escuta no filme é a trilha sonora da ação que faz a narrativa alcançar seu pico. A banda que ninguém esquece, Credence Clearwater Revival, é o ritmo do olhar André na janela e da sua decisão de sair da pobreza.

Jorge Furtado – aquele que sabe fazer cinema – implica com sua cidade, Porto Alegre. Filma calçadas, lojas, povo, carros, navios, cais de maneira implacável, reproduzindo a imagem do sufoco supremo. Numa provocação, coloca o Rio de Janeiro – logo quem! – como um sonho feliz de cidade. Sinal de coerência absoluta: o Cristo Redentor, sob o céu azul, é a a cópia de um sonho, enquanto Porto Alegre é o xerox da dura realidade. Uma verdade que André não alcança em sua totalidade, mas apenas o espectador, privilegiado pelas revelações da namorada de André no final. Quem caçava era caçado, que procurava cruzar o umbral de uma vida autenticamente pobre em busca de uma vida falsa, mas rica, no fundo estava puxando alguém para a fora do poço.

André empunha uma arma porque precisa ter acesso às cópias que contam: dinheiro – reprodução de um valor em papel pintado – amor – a namorada inocente é quem o usa para sair da miséria – e futuro – montanha sob o céu azul debruçada sobre o mar. Não lhe interessa a essência, que para ele não passa de pesadelo. O que quer é aquilo que escondem, a explicação do soneto, a mulher que não consegue alcançar, o dinheiro que não pousa em seu bolso. Ele atravessa o espelho e vai viver na miragem. Fica o espectador, devolvido de uma vida fictícia, o cinema, para uma vida real, parecida com aquela da qual André conseguiu fugir.

Aquele que sabe filmar também se retira. Ele conseguiu atrair o público para sua armadilha, do qual não poderemos escapar a não ser que possamos compartilhar com ele a mais sagrada das essências, a criação de um produto cultural único, absolutamente só em meio ao mar de falsidades que nos cerca.

Aquele que sabe filmar nada faria não fosse a equipe que trouxe para sua obra. Pedro Cardoso é o ator essencial especializado no fragmento da fala e do gesto; Lázaro Ramos é a introspecção que se solta pela fuga, produto do seu medo, por sua vez filho da sua coragem; Leandra Leal é a falsa inocência que mostra a cara; Luana Piovani é a cópia da musa, e por isso mesmo, sua fundamental essência.

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