A HUMANIDADE OCA NA TERRA DESOLADA

fev 2nd, 2014 | Por | Categoria: Cinema, Oscar 2014        

 Nei Duclós

 

Algumas chaves ajudam a abrir a caixa preta do filme de 2013 August: Osage County (traduzido como Álbum de Família, título da peça de Nelson Rodrigues) , de John Wells. Por ser adaptação de uma peça, de autoria de Tracy Letts, que ganhou o Pulitzer em 2008 com ela e fez o roteiro do filme, e uma performance soberba de grandes atores e atrizes, como Merryl Streep, Julia Roberts e Sam Shepard, as abordagens tem se limitado a falar em teatro filmado ou filme de ator, o que ajuda a deixar intocado seus segredos.

 

Há uma defasagem entre um trabalho que mergulha fundo no drama em relação ao seu entorno de marketing. É como gargalhar num funeral. O filme é mais complexo do que a dor familiar ou um drama de mulheres. É uma representação da tragédia americana, que perdeu a alma e entrega-se à morte depois de guerras e genocídios. Os erros batem no poço da família destruída, que ao se reunir para enterrar o patriarca lava a roupa suja exibindo os rastros de um crime coletivo. É inútil fugir dos laços de origem ou do patrimônio herdado.

 

Uma das chaves é citada logo no início: um verso “a vida é muito longa”, do poema de T. S. Eliot Os Homens Ocos. Faz parte da estrofe “Entre a concepção e a criação, entre a emoção e a reação tomba a Sombra, a vida é muito longa”. Sombra é do que se trata: a casa enlutada, os restos de uma família, um casal de idosos e a filha solteira, estão confinados num ambiente desolado do meio oeste americano, torrando de calor. É o cenário do clássico The Waste Land, de Eliot, que era do ramo, pois nasceu e se criou em Missouri, vizinho a Oklahoma, onde fica o condado dos Osage, os índios guerreiros que enriqueceram com o petróleo e fazem parte da história americana como a única tribo que comprou sua reserva. E que sofreu nos anos 1920 uma série de atentados criminosos motivados pelo ciúme e a vingança dos brancos.

 

Mas como Eliot, que migrou para Londres e escreveu sobre sua terra de memória, também os protagonistas do filme são outsiders na terra a qual pertence. Cleveland, o nome do patriarca que se suicida, poeta e profersor, remete a uma cidade do norte, que faliu como centro industrial e voltou-se para os serviços. Num lugar de jogo bruto, de petróleo, gado e agronegócio, a poesia não faz parte da paisagem. Ainda mais de um autor, Cleveland, que se fez do nada, de origem muito pobre e conseguiu se sobrepor às dificuldades do ambiente hostil. As filhas parecem cumprir essa sina de querer pertencer a outro lugar, mas são chamadas de volta quando há o desenlace.

 

Quem abre uma luz na casa escura é a índia cheyenne, Johana (Misty Upham), contratada para os serviços domésticos e cuidadora da idosa que se droga e tem câncer na boca. É um papel pequeno, mas significativo. Presenteada por Cleveland com um livro de Eliot, a índia vem de uma tribo historicamente inimiga dos Osage. Os Cheyenne serviam ao exército americano na suas lutas contra os aguerridos e independentes Osage. Ela é portanto também alguém que vem de fora e se contrapõe à fase terminal da família que está em ruínas. É ela que acaba acolhendo em seu colo a matriarca ferida de morte no momento em que está lendo a volume que ganhou de presente do chefe da casa. A índia se identifica com o que vem de fora, a pressão do ambiente hostil que força a claridade no mês mais quente do ano.

 

A narrativa é fruto dessa pressão da desolação e da claridade externa sobre o,luto fechado interno. Não é, portanto, teatro filmado, é filme sobre cinema, como todos. Você enxerga uma obra cinematográfica quando lê suas imagens e vê como elas compõem uma narrativa, que se desenvolve pontuando os diálogos. A palavra é a fonte, mas aqui é coadjuvante. A imagem está superposta à história, mas faz parte da essência da obra. É um jogo dialético da percepção quem enriquece o trabalho ensaístico.

 

A humanidade oca na terra desolada perde sua chance de redenção ao entregar-se mais uma vez ao dinheiro. No momento em que Violet (Merryl) não vai atrás do marido e prefere antes colocar a mão no cofre da família, ela convence seu parceiro que não quer se reconciliar, lavar com o perdão o pecado de ele ter feito um filho na cunhada. Violet prefere o dinheiro à vida de Cleveland. Se arrepende, depois quer todos vão embora, deixando-a a sós com sua “força”.

 

É como diz Eliot: “Nós somos os homens ocos/ Os homens empalhados/ Uns nos outros amparados/ O elmo cheio de nada. Ai de nós!/ Nossas vozes dessecadas,/ Quando juntos sussurramos, / São quietas e inexpressivas/ Como o vento na relva seca/ Ou pés de ratos sobre cacos/ Em nossa adega evaporada. “

Deixar comentário