O PERIGOSO MAR DE CAYMMI

maio 29th, 2005 | Por | Categoria: Música        

Nei Duclós

Dorival Caymmi não canta a praia ou o mar, canta a pesca, atividade do trabalhador que arrisca a vida todos os dias no desempenho do ofício. Sua obra é um épico sobre os que lutam para sobreviver num ambiente hostil, o oceano, que atrai pela necessidade e seduz para uma armadilha mortal quando acena para o lazer em pleno expediente. O bem que o pescador tem no mar é a ilusão de que pode abandonar o trabalho enquanto navega e entregar-se ao que lhe é vedado, o prazer.

DOCE MAR – O verso de Caymmi “é doce morrer no mar”, ou mesmo o outro “o mar quando quebra na praia é bonito” são ironias de um rapsodo, de um cantador de romances, um Homero do litoral da civilização atlântica. O turista tem uma doce ligação com a praia, não o pescador, que amarga uma vida curta, dolorosa. Doce é a nostalgia, único remédio para a dor da lembrança dos que morreram lutando pela vida da família.

A mulher que fica na espera da jangada que não volta tem uma rival, Iemanjá, que rapta o pescador exausto daquela tragédia. Voltar para quê? Melhor entregar-se nos braços da deusa que é o movimento feminino das ondas, que o leva para longe, para o fundo, para a euforia do afogamento, para fora das necessidades. Não precisará mais o pescador voltar com algum peixe, não enfrentará mais a fome e a frustração. Será tema de canções e de pranto.

A pesca que leva a vida dos homens serve para interromper o pouco de alegria que existe na vida em terra. Chico, Bento, os heróis da Suíte dos pescadores, animam festas, são galanteadores. Suas ausências são pranteadas pelas mulheres e camaradas. Caymi é a voz desse lamento profundo e por isso sua voz tem a gravidade da tragédia. Ser confundido com o bom baiano que leva a vida na flauta é um erro gravíssimo. É impressionante como essa gravidade passa para sua descendência. Não existe maior gravidade na voz feminina brasileira do que em Nana Caymi, não existe maior seriedade musical do que em Dori Caymmi, o erudito que resgata a complexidade da obra do pai e a projeta para o infinito.

PERDA, PERDÃO – A dor tempera a convivência, é insumo para a civilização atlântica, da qual Dorival é o representante máximo. Sua presença chama-se tolerância, seu trabalho vem do fundo da tragédia brasileira de um litoral ainda extrativista e abandonado à sua sorte mesmo 500 anos depois da Descoberta. Conviver, sorrir, abraçar, ser doce: esse é o privilégio de quem realiza uma obra perfeita, genial até no mínimo detalhe, grandiosa e sedutora. Caymmi toma partido do pescador que morre pelo peixe, pelo pão. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento. A jangada voltou só. Cadê você, cadê você?”

Essa civilização de perdas precisa do perdão para continuar vivendo. O que chamam de conformismo, é na verdade o superlativo da perda, o sentimento do perdão. O ritmo do mar dita a canção, que eterniza na arte o corpo do pescador que foi-se para sempre. A tempestade, a chuva, são os vilões dessa obra maravilhosa. O bom tempo define a boa terra, mas não adianta a calmaria na terra se não existir bonança no mar. Enfrentar esse perigo exige uma postura de solidariedade. Pescar é uma atividade coletiva, plural. “Minha jangada vai sair para o mar, vou trabalhar, meu bem querer, se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer; meus companheiros também vão voltar e a Deus do céu vamos agradecer.”

O destino, o desfecho gratificante do trabalho, está nas mãos de Deus. Quando Deus é contrariado, o pescador some. Sua ferramenta, a embarcação que o leva para a luta, volta intacta. Quem pesca o pescador é o mar que fica com seu corpo. Resta da tragédia a canção. A música soprada pelo vento. A voz que vem do fundo. O mar é perigoso. Exige respeito. Por isso as canções de Caymmi são sagradas. Elas são como capelas à beira mar, e sua obra, ditada por essa voz, compõem a imponência de uma catedral.

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