CHORO DE PEDRAS

fev 11th, 2012 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Sigo os russos do século 19, a era do esplendor da literatura e das artes, tão vilipendiada pelo século 20, irmão mais novo e cheio de inveja. Na seleta que tenho comentado aqui, lançado pela Martins Editora em 1964, seleciono mais duas obras primas. Uma delas é de Tchirikov, “Fausto”, sobre o casal pequeno burguês que vive vida vegetativa , ele bancário viciado em jogo de cartas que odeia sua casa, ela a esposa ressentida e frustrada que lamenta a perda da juventude e da beleza. Mas ao quebrarem a rotina e irem ao teatro ver a peça de Charles Gounod sobre o homem que vendeu sua alma, eles recuperam o viço e resgatam a emoção de viver. Descobrem que são invejados pelos amigos e se flagram mais próximos do que nunca.

O teatro que reaproxima o casal por meio do drama e da música é um dos fundamentos da civilização. Não se pode viver sem ele. Há décadas que não vou a um, mas houve uma época em que eu viajava sem dinheiro e de carona só para assistir as grandes peças de São Paulo e Rio. Foi assim que vi Cemitério de Automóveis, Gracias Señor, O casamento do pequeno Burguês, Mockinpott (que deu prêmio de revelação da APCA para nosso Miguel Ramos), entre outras preciosidades. Manter um teatro permanente, como tínhamos no século 19 em Uruguaiana, o Carlos Gomes, que trazia espetáculos de Buenos Aires, Montevidéu e das capitais brasileiras e européias, é um luxo que hoje não dispomos. Por que?

O outro conto também tem a ver com Uruguaiana, pois fala de via férrea. Assistir à derrocada da estrada de ferro no país continental, ao contrário de outros países que transformaram o trem no mais moderno meio de transporte do mundo, é de uma tristeza só. Nossa cidade tinha o perfil definido pelos trilhos. Era nosso contato com o mundo, viajamos para terras importantes vendo pela janela o esplendor do pampa. Foi pela via férrea que conheci Porto Alegre e todas as outras cidades do caminho. Destruíram tudo por burrice e traição à pátria. Mas eu falava do conto O Sinal, de Garshin, autor que morreu cedo demais, com 33 anos.

Ele conta a história de um camponês que foi pra a guerra e lá exercia atividade subalterna de servir samovar para os oficiais. Pegou reumatismo nos rigores da campanha e não podia mais lavrar a terra. Saiu pela estrada de ferro afora atrás de emprego e encontrou um veterano a quem servia no front, que lhe deu o emprego de guarda-trilhos. Uma cabana onde poderia plantar e viver com a mulher e enfrentar o inverno e pronto, lá estava ele feliz e orgulhoso com sua lanterna e suas ferramentas. Quis fazer amizade com vizinho, que era muito revoltado e acabou cometendo um crime: arrancou um trilho na iminência da chegada de um trem cheio de famílias pobres.

Nosso herói foi para o meio da estrada e como não tinha jeito de avisar a tempo, cortou profundamente o braço e embebeu um pano de seu sangue e o colocou na ponta de um mastro como bandeira. O maquinista viu e freou. Como saiu muito sangue, ele desmaiou no meio da sua ação, mas a bandeira foi assumida pelo próprio criminoso. “Amarrem-me. Eu arranquei um trilho”, disse o culpado.

Grande literatura. Faz chorar as pedras.

Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana

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