MESADA

out 30th, 2011 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Algumas palavras fazem parte do cânone da memória. Desgranida, por exemplo, parecida com o Desgracida, que o Dalton Trevisan escolheu para titulo de seu novo livro, um dos ganhadores do Jabuti 2011, é uma delas. É um xingamento disfarçado, para evitar a forma mais explícita e rude, o de desgraçada. É a maneira de sufocar um grito e transformá-la numa calúnia, tirar seu perfil de alto falante e instaurar o sussurro amargo.

Outra palavra importante e que também sofria de uma distorção do sentido era mesada. Na nossa casa toda semana era distribuída, mas a instituição, na origem, referia-se ao que era fornecido mensalmente. Melhor par nós que ganhávamos do pai todo domingo o que deveria ser dado só a cada 30 dias.

Essa mesada semanal contribuía para que tivéssemos uma relação saudável com o dinheiro. Era só aquele montante que dispúnhamos para despesas fundamentais, como ir ao cinema, comprar revista em quadrinhos, refrigerante e sorvete, coisas sem as quais era impossível viver. Como a inflação era quase inexistente naquela época, então só de vez em quando havia um aumento e não dependia de reivindicação, pois obedecíamos aos critérios absolutistas paternos.

Era uma monarquia que com o avanço da idade dos rebentos virou parlamentarista, coisa que deu certo no Brasil por um bom tempo. Mudava-se o total quando os mais velhos dispunham de sólidas provas de que a mesada era utilizado para algo mais nobre como um curso técnico a distância ou fazia parte da economia para futura e importante viagem escolar. Se o pai mexia no topo toda a base da pirâmide acompanhava a mudança.

Além da mesada, tínhamos a caderneta de poupança para nos treinar no trato difícil com o dinheiro que não perdia o valor a cada minuto, como aconteceu depois,até virar pó e hoje ser apenas lembrança, já que ao existem mais moedas nacionais, apenas unidades monetárias a serviço da especulação e da industria financeira. Não há mais pesos, pesetas, escudos, francos, marcos, cruzeiros e sim euros ou reais,que são moedas artificiais. A caderneta de poupança era uma rocha à beira mar: indestrutível e rendia razoavelmente. Bastava depositar ali toda semana ou mês e esperar uma vida para recolher os frutos.

Quando fundamos o Esporte Guarani, abrimos uma caderneta na Caixa Econômica Federal. A caderneta era da cor do ouro, que significava o valor do dinheiro sólido, e ostentava aquela caligrafia onde bancários austeros e atenciosos registravam os depósitos. Retiramos alguns meses depois para comprar camisetas e bolas e assim enfrentar os vários adversários existentes, times que se formaram em outros bairros. Arrastávamos nossas torcidas para conquistar o respeito por meio da força bruta e do talento.

Mas esse era um outro tempo,quando o dinheiro falso desgranido não tinha eliminado a relação duradoura entre o objeto – a vida – e sua representação – as cédulas e moedas. Havia usura e distorções. Mas o governo colocava para a população, especialmente as crianças, as instituições bancárias a serviço da formação séria. Éramos goleiros, centro-avantes,primeiros da aula, poupadores. Digo isso não só para lembrar, mas para provar que nem sempre vivemos no pesadelo.

Crônica publicada originalmente no jornal Momento de Uruguaiana

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