O DIÁFANO E O HILÁRIO

mar 6th, 2012 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Dois contos extraordinários dão sequência à leitura do livro Obras Primas do Conto Russo, da Martins Editora, que tenho comentado aqui: A Mãe de Branco, de Sologue, e O Mártir da Moda, de Kuprin. Ele abrem o leque da nossa percepção não apenas em relação à literatura russa, que a vemos sempre ligada aos grandes dramas épicos ou à denúncia das mesquinharias cotidianas, ao enfrentamento do clima áspero ou a dura vida nos desertos e na infindável miséria. Eles também nos levam pela mão para os inumeráveis recursos da narrativa, que podem nos transportar para mundos imaginados que nos pareciam exclusivos de nossa mente, mas também, descobrimos abrindo o livro, fazem parte de outros povos; e de realidades próximas que identificam tradicionais assombrações com nações e tempos remotos.

Sologue é um artista da palavra impregnada por aquele clima romântico atraído para a morte e a névoa, tão caro aos nossos poetas como Cruz e Souza ou Álvares de Azevedo. Tamara, o amor impossível, diáfana , quase transparente, é a sedução do celibatário que não suporta gente e festas de fim de ano. Ele prefere mergulhar no seu sonho, lembrando a jovem que namorou rapidamente, antes que fosse acometida por mal súbito e morresse, deixando nosso solteirão abandonado para sempre.

Parece coisa típica do século 19 ou início dos anos 20, mas vemos como a morbidez amorosa atrai multidões até hoje, com vampiros galantes, fantasmas sedutores e alienígenas cheios de charme. Tudo é soma na cultura, não existe mais essa fila analógica de tendências, tudo é simultâneo, contemporâneo. Não há superações. Há, claro, a experiência adquirida, mas a abordagem das várias artes é onívora, ou seja, gosta de tudo. Podemos ser árcades, românticos, radicais, revolucionários. Ou hilários, como o conto de Kuprin sobre o marido muito gordo e rico que, por amor à bela esposa, fica pagando inúmeros micos para acompanhar as modas das artes.

Lá vemos o pobre marido vestindo casacos futuristas, tentando sentar em cadeiras absurdas (como as de “design” hoje, feitas para exposições e não para serem usadas) e querendo o divórcio porque não agüentava mais fazer papel de ridículo diante dos seus amigos e parceiros de negócios. As modinhas que obrigaram nosso amigo a tomar essa decisão, depois que caiu de barriga no chão num lotado espaço de patinação, continuam em vigor, de várias formas. Vi isso muitas vezes. Gente fazendo pose, notando detalhes da tua roupa, fingindo que são vanguarda mas continuam presos a velhos hábitos. No fundo, não mudamos nunca. Somos como esses personagens tão magistralmente retratados pelos mestres russos, que nos encantam com o poder de suas palavras.

Gosto desses temas aparentemente bizarros mas que tem tudo a ver conosco. Tanto as assombrações quanto o humor de situações humanas. Precisamos rir de nós mesmos para que o mundo não se acabe de vez em barbárie. E imaginar outros mundos, para que possamos conviver com o mistério. Esqueci de dizer: o celibatário acaba adotando um órfão, obedecendo assim a sugestão do seu fantasma amoroso. Grandes russos.

Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

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