O VENDEDOR DE MORANGOS

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Contos        

Nei Duclós

Vou matar o vendedor de morangos – disse ela, já pegando a bolsa e saindo em direção à esquina em frente ao prédio. Tentei evitar aquele gesto, mas era tarde demais. Ela sumira escada abaixo. Tínhamos tentado conversar a tarde toda sobre um projeto, mas o cara lá embaixo não parava um segundo. Era pior do que o vendedor de mega-sena acumulada, que triplicava o preço e o tom de voz durante horas.

É que o vendedor de morangos tinha um diferencial: ele estava há dias com sua arenga, ao contrário do seu colega de profissão, que nos atormentou só por algum tempo. Na nossa conversa, eu procurava argumentos positivos para justificar o bordão repetido sem parar naquela melodia vocal criada para nos enlouquecer. Disse que deveríamos entender a falta de emprego, e que é um direito repassar papeizinhos nas ruas, abordar com alguma demanda. Falei do capitalismo de farol das grandes cidades, que existe há tanto tempo que muita gente está requerendo aposentadoria. Nesses casos, tudo volta ao normal quando chegamos em casa. Basta ligar a televisão para nos expor a duras noites de comerciais com alguns minutos de programa no meio. Mas mesmo a tevê dispõe de zap e podemos então relaxar. O que não conseguimos dominar é esse craquejar incontornável do vendedor de morangos.

Nossa colega estava surtada porque não conseguira explicar direito o objetivo do seu projeto. Sabíamos só que o troço agregava valor. Ou tinha algo a ver com qualidade de vida e meio ambiente. Parece que o importante era a transparência e não sei mais o quê. Concordávamos com ela, apesar de não entendermos patavina, só pelo alívio que poderia gerar nosso assentimento diante do seu nervosismo. A assessora (este era seu cargo) começara a falar de maneira pausada, sacudindo a cabeça afirmativamente depois do fim de cada frase. Conheço o expediente: as pessoas fazem isso porque aguardam a velocidade do ouvinte chegar às alturas da autoria da locução.

Mas o vendedor de morangos não dava trégua. Ela então começou a ficar fanha. A estridência alcançou decibéis insuportáveis e, de repente, quem estava em volta, decidiu atender o celular. O celular trouxe o escritório e o lar para qualquer canto do miserável planeta. Todos resolvem seus pepinos por meio da conversa sem fio. Não conseguimos captar o fio da meada, mas sabemos sempre que se trata de algo intransponível, uma entrega que foi parar em Jacarta e não em São Francisco do Sul, que talvez a repetição de palavras como “tá, estou chegando” poderá resolver. Mas nada resolve.

Certamente os usuários de celular chegarão em casa e o cachorrinho Bob já deve ter mastigado mesmo o sofá, o­nde o marido tenta ver o jogo, mas parece que vai ser repetido, pois foi roubado. O problema é que temos todas as soluções à mão, mas tudo fica num impasse. Vemos pelo noticiário que basta você acoplar um chip amigável wireless na banda super larga da infonet viabilizada pela Nasa que poderá então trabalhar remotamente, vivendo numa ilha do Pacífico. Se não houver tsunami, nem furacão, você poderá desfrutar a vida colhendo lagostin com sua rede de nylon com qualidade ISO um milhão. Não há perigo de aparecer um vendedor de morangos.

Foi só falar nisso para lembrar da minha colega de trabalho, que voltou suada, toda vermelha, da cabeça aos pés. – O que aconteceu? – perguntei, assombrado, já cavocando com o polegar o número da Emergência. – Falei para ir vender em outro lugar – disse ela, decidida. – E…? – perguntaram todos. – O cara falou que já tinha vendido tudo. Só estava ali para segurar o ponto. Se um concorrente aparecesse, ele daria uma rasteira competitiva. Perguntei como funcionava. Ele fez uma demonstração prática.

Fiquei vermelha, de raiva, e não pelo tombo em cima dos restos de morango que estragaram com o mormaço de hoje. Rasteira competitiva foi a mesma coisa que aprendi no curso da consultoria, especializada em informações privilegiadas para assessores da diretoria. Só não me disseram que a gente ia encontrar esse tipo de encrenca na rua.

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