O ESQUELETO IMANTADO
maio 23rd, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: Redação sem MáscaraNei Duclós
Texto, para ficar em pé, precisa de espinha dorsal com poder de atrair naturalmente todas as informações. O núcleo dessa criatura difícil de domar deve possuir força suficiente para encaixar as peças sem susto e assim justificar a atenção do leitor, levando-o pela mão, sem tropeços, da primeira à última linha.
ABERTURA, MIOLO E PÉ – Chamo de lead, impropriamente, o início dos textos. Lead é invenção americana que precisa responder perguntas básicas. É eficiente para evitar papo furado e treinar jornalistas iniciantes. Mas prefiro falar em abertura de texto, que não está subjugada aos ditames do lead. Seu papel é fisgar o leitor e jogá-lo para esse território improvável e pouco visitado, o segundo parágrafo. Houve tempo em que se fazia piada dizendo que um texto iniciava com o “tudo começou”, continuava com “na verdade”, no terceiro parágrafo usava-se “por outro lado”, depois para sugerir seriedade apelava-se para um “a rigor” e lavava-se as mãos no fecho com o obrigatório “resta saber”. Mas hoje esse tipo de coisa nem serve para piada, já que é trágico e assombrou a imprensa por muitos anos (mas dessas muletas ninguém está livre).
É por isso que criei a figura do esqueleto imantado, em que o jornalista descobre o poder central do seu texto e usa-o como estrutura viva. O segredo é manter a objetividade do lead sem curvar-se a ele. Depois que você encontra a abertura, se der branco, faça como Hemmingway no livro “Paris é uma festa”: coloque a frase mais verdadeira que você conhece. Mesmo que ela seja eliminada depois, já que pode não fazer parte da sua matéria, use-a como instrumento de poder. O fim da reportagem não pode ser um apêndice dispensável: ele é tão importante quanto a abertura. Se tiver que cortar, corte no miolo: algo costuma soar mal, ou seja, está errado. Escreva de ouvido. Texto é música e o esqueleto imantado é a sua partitura.
O PIANO DO FECHAMENTO – Fechamento bem feito é o diferencial entre um veículo de qualidade e um veículo amador. Numa pequena revista ou jornal, você pode ter a melhor matéria do mundo, mas se desconhecer as bases desse ofício, tudo vai parecer de segunda mão. E não se engane: você precisa ser um virtuose desde o momento em que carrega o instrumento para o palco. O fechamento, conjunto composto de títulos, linhas finas, olhos, legendas, intertítulos e chamadas, formam um “texto” à parte, que se alimenta da matéria, mas não repete suas frases. É comum na imprensa – hoje mesmo vi um exemplo – de colocar na legenda a mesma informação do título ou da linha fina.
Na maioria das vezes o fechamento é a única coisa que o leitor vai prestar atenção, portanto não perca essa chance nem desperdice espaço. Crie cada elemento desse trabalho como se estivesse escrevendo uma reportagem ou burilando um texto final. A reportagem, se for boa, possui inúmeros itens que podem ser destacados. Você pode usar o título como “isca” de leitura para o lead, a linha fina para a legenda, a legenda para o corpo da matéria e assim por diante. São vasos comunicantes que merecem ser tratados com carinho, criatividade e eficiência, e isso dá trabalho. Fechar não significa livrar-se da última etapa da edição. Ao contrário, esse é o momento mais importante, em que as coisas ficam por um fio e tudo pode ir por água abaixo. E não se esqueça que o título da matéria principal devem ser dois: um na capa e outro no miolo do jornal ou revista. Não coloque o mesmo título dentro e fora. Crie. Uma vez fiquei uma madrugada inteira para conseguir um só título. E dois expedientes comerciais para achar uma abertura de texto.
LEGENDAS – A legenda tem suas manhas. Se a foto tiver dois personagens, o que está à esquerda é citado primeiro, e não o contrário. Uma foto não pode estar fora da página em que está o personagem citado: a legenda refere-se a algo no corpo da matéria que está ali naquele espaço que o leitor está vendo. Costuma-se colocar o nome do personagem acompanhado de dois pontos, seguindo-se uma frase entre aspas ou algo que se reporte ao que ele é ou disse. Esse é um esquema bem batido, que merece ser mexido um pouco. É tão lugar comum que se coloca dois pontos quando nem é necessário. “Fulano fez vestibular”, por exemplo, às vezes aparece como “Fulano: fez vestibular”, o que é um erro. Legenda serve para identificar a foto – e é por isso que eu digo para os fotógrafos que eles não vendem fotos, vendem imagens identificadas. Nenhuma foto portanto pode vir desacompanhada de legenda, a não ser que seja um ensaio e o personagem seja um só e estiver destacado no título ou nos outros elementos que apresentam a matéria.
Minha melhor legenda foi a da vinda de Frank Sinatra pela primeira vez ao Brasil. Foi na IstoÉ. O empresário que conseguiu trazer a Voz fez tanto estardalhaço que não resisti: “O famoso Roberto Medina e seu contratado. Sinatra é o da direita”.
EDIÇÃO, CORTE E COSTURA – Editar é tomar decisões, é apostar no talento e na capacidade da equipe, ouvir e ver o que cada um tem de melhor. Editar é virar vidraça, é arrostar os erros, é elogiar em público e criticar reservadamente. É estar presente na pauta e no texto final, na viagem e no plantão, no corte da matéria e na costura dos parágrafos. Meu primeiro chefe de reportagem dizia todos os dias: “Vai lá e vê o que tem e o que não tem”. Passava três pautas e no final de expediente me mandava para o aeroporto, onde eu era caçado por políticos medíocres que queriam plantar notas na imprensa. No fim, ele foi útil, pois com o seu “te vira, que estão pegando” aprendi a tomar decisões no front da profissão. Seu erro foi nunca elogiar (elogio é parâmetro) e no dia em que cometi minha primeira falha, fez um escândalo. No fundo, estava de tocaia. Mas não tinha motivos para tanta cobrança. As pautas eram tão ruins que às vezes eu não entendia nada. Um dia, enrolei tanto para fazer uma pergunta que a fonte me pediu a pauta por escrito que eu guardava no bolso (era uma fonte conhecida, sabia todos os macetes daquele jornal da província). Não tive dúvidas: repassei o bilhetinho de duas linhas. Aí fez-se a luz e ele me deu a entrevista.
Em compensação, quando eu fazia algumas pautas (de vez em quando) na Ilustrada, minha gentil e sensível editora, Helô Machado, dizia com graça: “Deixa eu publicar tua pauta, o foca não vai fazer melhor do que isso”. Todo editor precisa ser como a Helô Machado, que dava vez para todo mundo e teve idéias perenes, como a de publicar resumos dos capítulos de telenovelas, coisa que existe até hoje (uma idéia simples, mas absolutamente inovadora, que atraiu grande quantidade de novos leitores). Ou como o Tarso de Castro, que faz falta, mais do que nunca, no atual estado de coisas.
ESTRATÉGIA – “Contar buracos de rua” era a tarefa dos focas naquela época. Hoje parece que está pior. Mais tarde, já adentrado nos anos, minha atenção foi chamada publicamente. Peguei a editora num canto e avisei: o elogio é público, a crítica é privada. Um editor importante uma vez tascou na redação: “Fulano conseguiu cravar a capa, e vocês, o que fazem?” Todo esse tipo de ruído pode ser evitado. O conflito bruto não deve ser obrigatório, como muitas vezes acontece. O poder da pequena tirania precisa ser erradicada da profissão. Jornalismo é como cinema, trabalho de todos e o gênio só se manifesta quando há ambiente favorável. Mas atenção: gentileza e elegância não significam amizade. Um editor sério peita a pressão sobre os repórteres, responde pela equipe e cobra suavemente. Editar é fazer parte da equipe e não ser seu algoz. Corre-se o risco da folga: alguém, sabendo que não vai ter sua atenção chamada em público e jamais será desrespeitado, começa a testar o editor para ver se ele é mesmo tão democrático e legal assim. Cada editor tem uma saída para esse tipo de problema. Costuma-se jogar umas pessoas contra as outras, para governar por meio da divisão. Outro diz gargalhando as coisas mais sérias, passa o recado radical como se fosse uma piada.
AGULHA E LINHA – Minha especialidade é a edição de texto. Houve época em que participei da paranóia da Abril, de reescrever absolutamente tudo, perseguir o chamado texto redondinho. Quem passou por lá sabe. A Abril conseguiu uma excelência de texto por um tempo, mas o paradigma acabou gerando muita redundância. Uma pobre reportagem passar pela máquina de moer carne de quatro editores é pedir para abrir um boteco em Caxambu. Prefiro trabalhar com o estilo de cada repórter, repassando regras básicas: desentrolhar o fluxo do texto, abrir com algo realmente importante para justificar a matéria, finalizar cada parágrafo dando gancho para o parágrafo seguinte, para que se evite assim o fórceps de “na verdade” ou “por outro lado”, escrever o fecho como parte integrante do texto e não seu apêndice. Peço para reescrever quando necessário, parte da matéria ou toda. Normalmente, o problema está na concepção do tema, na seleção do enfoque, na incompreensível obrigação de fazer suíte de tudo. A praga da suíte, aquela continuação da matéria anterior, precisa acabar. Se as pessoas lêem sempre os veículos, não é necessário redundar na informação. Hoje vejo os jornais se repetindo sem parar, como se o mundo começasse do zero a cada dia.
O GARIMPO DA PAUTA – Para evitar que a pauta torne-se cíclica, repetindo-se todos os dias e, às vezes, na mesma edição, deve-se encará-la como indivíduo e não como espécie ou gênero. Descobrir pautas todos os dias é o nó cego da profissão, que precisa ser desatado com jeito, mais do que com força, na base do close-up, e não do plano geral. Quem notou a tragédia da pauta rotativa (mas não usou esse termo) foi Jorge Luis Borges (precisa obedecer o manual e dizer “escritor argentino”? acho que não). Ele reclamou da abordagem dos necrológios da imprensa sobre uma grande artista do seu país. Em vez de tratá-la como um indivíduo, escreveu Borges, a imprensa definiu-a como uma espécie, ou seja, como “mulher” que virou grande artista. “A mulher e…” é o exemplo típico de pauta rotativa. É como documentário sobre os anos 60: sempre aposto o momento certo em que o sonho vai acabar, pois há uma lei que obriga o sonho acabar em qualquer reportagem que se faça sobre o período. Esse tipo de enfoque, imagino, só sairá da reta aí pelo ano três mil pois virou cânone, não há como lutar contra.
Quando estava na Fiesp, inúmeras vezes me sugeriram a pauta “a mulher e a indústria”. Eu argumentava que as mulheres apareciam sempre como empresárias ou pesquisadoras ou em qualquer outra atividade, e eram tratadas como são, ou seja, indivíduos com suas características próprias. O sexo ao qual pertencem não é suficiente para identificá-las. Pois então, onde o bicho pega? Como fazer pauta todos os dias, semanas, meses, anos, sem cair no lugar comum (outra pauta recorrente é “não-sei-o-quê-vira-mania”, muito comum em revistas)? Basta abrir as comportas, limpar os canais de acesso ao pauteiro (que não deve ser um, mas todos).
Quem faz pauta deve ter uma percepção aberta, universal. Pauta é o que ninguém ainda abordou. Elas sobram no dia a dia, estão na cabeça das pessoas que nos rodeiam, são aqueles assuntos que não chamam atenção de tão óbvios e próximos e que jamais saem publicados. Pauta é também a pergunta que ninguém faz. O que realmente discutiram as duas personalidades antes da tragédia? Quem é de fato o decorador assassinado? Só existe matéria paga disfarçada de notícia no Paraná? Que tipo de produtor é esse que se comporta como espécie e planta em massa soja transgênica sabendo que está proibida?
A PRISÃO DO GANCHO – É um mau costume só fazer matéria sobre determinado assunto quando há algum evento justificando. É a prisão do gancho. Deve-se evitar o marketing da notícia. Precisamos deixar de obedecer à agenda proposta por consultorias, assessorias etc. Devemos ir diretamente na fonte, perguntar o que ela precisa saber, o que ela quer ler, o que ela tem a dizer, a propor. O jornalismo deve ser livre e essa liberdade começa na pauta. Na minha experiência como diretor de telejornal, via minhas pautas serem derrubadas em função do “barraco-que-caiu-na-Zona Leste”. Dizia: mas essa matéria já está na Globo; onde está a pauta sobre contaminação química do solo que a gente encaminhou? O chefe de reportagem derrubava, ou então o repórter, ou então o editor na ilha, ou ainda o apresentador e às vezes até o boy. Em compensação, todos estalavam os dedos dizendo que a TV era muito ágil e eu, um cara “da escrita”, não entendia nada. É por isso que até hoje, toda vez que estalam os dedos na minha frente, tenho urticária.
O DESAFIO DA EQUIPE – Depois de algum tempo na profissão, fatalmente o jornalista vai enfrentar seu maior desafio: ser responsável, perante a direção, por um grupo de profissionais. Para quem não é arrogante e só sabe trabalhar dentro da ética, essa é uma tarefa extremamente delicada, pois envolve não apenas pessoas, mas destinos. Há dois tipos de situação. A primeira é encontrar a equipe montada e você cai de pára-quedas. A outra é fazer acontecer, criar uma equipe afinada. Como esta coluna não é de marketing nem de auto-ajuda, vou falar em jornalismo nos termos que eu conheço, a partir do que vi e vivi. Estive quase sempre no grupo liderado e só algumas vezes precisei estar à frente do trabalho. Por isso posso dizer: não é fácil e normalmente ocorrem trombadas. Há o editor (ou simplesmente chefe, como se diz no Brasil) que, de maneira cavernosa e melíflua, vai eliminando os problemas, ou seja, os concorrentes primeiro, e depois os menos “perigosos” mas não menos confiáveis. Há o outro que resolve apostar no que tem e não possui cacife suficiente para segurar o rojão. E há o que simplesmente substitui o que existe pelo que traz no bolso do colete.
Meu exemplo favorito é criar um veículo de comunicação (ou uma editoria) do nada e a partir do nada inventar uma equipe. É a melhor maneira de não tomar o lugar de ninguém, abrir mercado e virar herói. O único grande problema é acertar: na hora em que você consolida o projeto, sempre tem alguém a fim do teu lugar. Você pode considerar-se bem sucedido se estão querendo te derrubar. Mas vale a pena o risco pela emoção da criatividade nesta área tão complicada que é a liderança numa redação.
FORMAÇÃO COMPLETA – Costumo dizer aos estagiários que passam por mim que meu objetivo não é encaminhá-los para a reportagem, mas para a formação completa. Você precisa pautar, reportar, escrever, fazer fechamento, criar veículos, tudo. Para um jornalista recém formado que veio queixar-se do aperto do mercado pedi que visse a grande pilha de revistas que estava em cima da minha mesa. Falei: selecione algumas dessas revistas, tome nota dos editores e chefes de reportagens, estude o veículo, sugira pautas. Apresente soluções, coloque-se à disposição. Faça parte da equipe. Pois você jamais poderá liderar se não souber participar de algo maior do que você, ou pelo menos diferente.
Toda vez que eu trazia um free-lancer importante, que tinha ocupado cargos de chefia em outras redações, sopravam no meu ouvido: “Você é louco, esse cara vai tomar o teu lugar!” Como sonho em sair desta vida há mais de dez anos, eu blefava: isso seria um favor para mim, mas o que importa é trazer para a equipe gente melhor do que você. É o único jeito de crescer, trabalhar sem rede de segurança, convocar o mundo e deixar que o processo depure, que a equipe se forme de baixo para cima.
O JOGRAL DAS FONTES – Os entrevistados parecem obedecer a uma lógica que só existe dentro da cabeça dos jornalistas. Eles “concordam” uns com os outros nos textos forçados, como se fizessem parte de um conjunto vocal que recita declarações idênticas ou complementares. E por coincidência espantosa, eles sempre “concluem” no final das matérias.
[…] empilhar palavras, é preciso articulá-las. Mas isso já está dito em outros textos meus, como O Esqueleto imantado e os demais artigos contidos na seção Edição (ou Redação sem máscara) deste […]