A FALA OCULTA: CANÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

dez 11th, 2009 | Por | Categoria: Música        

Nei Duclós

Música e letra da canção Conversando no bar (Saudades dos aviões da Panair), de Milton Nascimento e Fernando Brandt, tem me perseguido nos últimos dias. Carreguei a magistral interpretação de Elis Regina em 1974 no you tube. De que trata a letra? Da ditadura. Foi feita dez anos depois do golpe de 64, naquele ponto de inflexão do tempo em que a tragédia ainda estava próxima mas já decolava para seu segundo decanato, ou seja, o que viera antes dela tonava-se, irremediavelmente, memória.

Para não deixar escapar esse tempo, o poeta Brandt – um dos maiores do Brasil – valeu-se da infância e do símbolo da prepotência de 64, a extinção sumária da Panaiir, que era de propriedade dos empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen — este, dono também da TV Excelsior, que foi igualmente fechada. A Excelsior foi aquela empresa de comunicação líder que ao ser assassinada “cedeu” espaço para o monstro da Globo. É bom lembrar que o autor do despacho foi o ministro da Aeronáutica da ditadura, o Brigadeiro Eduardo Gomes, que jamais perdoou Getúlio por ter perdido as eleições de 1950, que ele contava como certa. O Brigadeiro era o candidato da direita e seu slogan dizia: “Votem no Brigadeiro, ele é bonito, ele é solteiro”.

Mas esta edição não quer se debruçar sobre a história da Panair, que em 2008 ganhou um documentário de Marco Altberg. Aliás, por que não veiculam esse trabalho nas televisões? O verdadeiro escândalo não foi a extinção de uma companhia no auge de sua vida empresarial, mas sim o fato de que ela não foi reativada. Se a ditadura tivesse sido derrotada, teríamos de volta a Panair. Ser ainda parte da memória significa que estamos na mesma fase em que a canção foi feita.

Como diz Brandt: “Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. Nascida em 1929 e incorporada pela Pan American Airways (daí o nome) em 1930, a empresa foi nacionalizada em 1942 (atentos às datas? Ambas tinham como presidente Getúlio Vargas, desculpem a lembrança; é que tudo da Panair é atribuído ao JK, como sempre). Ou seja, o poeta fala da Era Vargas. Vamos à letra:

“Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira”. Os bondes não poluíam, eram uma maravilha urbana. A ditadura cuidou de destruir tudo, embalada pelo precedente aberto pelo JK, que sucateou toda a linha férrea brasileira num acordo de gaveta com os gringos, para ficarmos totalmente dependentes da gasolina e do óleo diesel. Em Los Angeles aconteceu a mesma coisa: destruíram os bondes e a cidade virou uma cloaca poluída. Esse é o resultado dos acordos com as grandes companhias de petróleo.

“E o motorneiro parava a orquestra um minuto./ Para me contar casos da campanha da Itália/”. O motorneiro tinha a manha de parar o bonde (a “orquestra” era o barulho do veículo) para conversar com os passageiros. O que ele conversava? Sobre a campanha da Itália. Qual foi ela? A da FEB – Força Expedicionária Brasileira, criada por Getúlio Vargas para combater o nazi-fascismo na Europa. Havia uma linhagem da memória: o veterano de guerra contava histórias para o menino na viagem de bonde. Isso chama-se civilização brasileira.

“E de um tiro que ele não levou/levei um susto imenso nas asas da Pan Air”. O tiro que ele não levou significa que sobreviveu. É parecido com o grande peixe que escapou: a aventura é contada por meio do drama, do suspense, despertando a curiosidade. O fato relembrado é quase uma anedota. O humor grudado à dor. E o verbo “levar” aqui serve para fazer a ligação da cena do bonde com a do avião. O susto do veterano diante da morte, que repassa ao menino, levanta vôo nas asas da mítica companhia, a que representa o Brasil assassinado. É hora do garoto se assustar. O susto mque ele – e o resto do país – levou.

“Descobri que as coisas mudam e que o mundo é pequeno nas asas da Pan Air”. O sólido mundo do menino no bonde é desafiado pelo batismo de vôo. O mundo, que era grande na visão infantil, e imutável, se transforma e é pequeno visto da janela de bordo. Ou seja, a iniciação, o rito de passagem, se fazia naturalmente, não precisava de uma ruptura horrenda como 1964. O mundo tinha sua memória e seus desafios, as crianças viravam adultos num país pacífico, sem medo, sem terror:

“E lá vai menino xingando padre e pedra/ E lá vai menino lambendo podre delícia/ E lá vai menino senhor de todo fruto/ Sem nenhum pecado, sem pavor, o medo em minha vida nasceu muito depois/”. Esse “muito depois” sabemos o que é: o golpe de 1964, a repressão de 1968, o clima sinistro de 1969 a 1973, o desespero até que o regime fosse obrigado a abrir um pouco (e abriu, soubemos depois, só para se legitimar, como de fato aconteceu em 1985).

“Descobri que a minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Pan Air”. No lugar das armas, que dão tiro e cospem fogo, a arma da memória. Dos tempos da Panair: dos tempos da Era Vargas.

“Nada existe que não se esqueça, alguém insiste e fala ao coração/ Tudo de triste existe que não se esquece, alguém insiste e fere o coração”. Duas frases quase iguais, tanto que se confundem, mas são diferentes. A primeira fala do esquecimento e da importância de alguém vir cutucar a memória. A segunda fala das cicatrizes, das coisas insepultas, que atormentam e que geram sofrimento toda vez que alguém coloca o assunto na roda. Esquecer para não sofrer ou lembrar e sofrer? Eis o dilemo do narrador da canção.

“Nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui na mesa de bar/ E aquela briga e aquela fome de bola/ E aquele tango e aquela dama da noite/ E aquela mancha e a fala oculta/ Que no fundo do quintal morreu, morri a cada dia dos dias que vivi/”. O que se fala na mesa de bar? Fala-se da memória, dos tempos idos, soterrados pela ditadura, da infância (a bola), da adolescência (a dama da noite), da marca deixada pelo golpe de estado no coração das criaturas do país (a mancha), que matou ou escondeu a expressão, a arte a poesia (a fala oculta), matando as pessoas junto com esse assassinato abrupto. Pois 1964 foi isso: a morte repentina de um país.

“Cerveja que tomo hoje é apenas em memória dos tempos da Pan Air/ A primeira Coca-Cola foi, me lembro bem agora, nas asas da Pan Air/ A maior das maravilhas foi/ Voando sobre o mundo nas asas da Pan Air”. A morte repentina origina o mito, o tempo que se foi. Não apenas a infância, mas a alegria de viver num país seguro, um lugar de onde se podíamos ver o mundo de cima. Não estávamos ao rés do chão como agora, quando os brasileiros procuram refúgio no Exterior, em busca de tudo o que foi assassinado, principalmente a paz e a chance de sobrevivência, a oportunidde de ter uma infância, uma vida adulta plena.

“Em volta dessa mesa velhos e moços lembrando o que já foi/ Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual/ Em volta dessas mesas existe a rua vivendo o seu normal/ Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais/ Em volta da cidade…” Velhos e moços são os deserdados da nação apunhalada de repente, pegos de surpresa pelo sinistro golpe de direita, apelidado de “revolução democrática”. Vemos a democracia que eles plantaram,, olhando em torno. Uma democracia que se lixa para a opinião pública.

17 comments
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  1. Obrigado!

  2. Boa memoria, nas asas da Panair, parabens

  3. Muito grato pela postagem, nunca ia imaginar que essa letra tivesse um significado tão importante que remonta nosso obscuro passado.
    ..

  4. Lindo texto. Essa música sempre mexeu com meu imaginário infantil, eu, que era um bebê quando ela foi composta. Ontem a ouvi novamente, depois de muitos anos e fiquei emocionada. Belíssimo texto nesses tempos (ainda) obscuros.

  5. Muito obrigado por suas palavras!!

  6. Parabéns pela análise desta poesia que nos convida a refletir que os “tempos da Pan Air”, que representavam tanta liberdade, hoje realmente não existem mais….
    Abraço

  7. Parabéns, fiquei emocionada de ler. Mais emocionada fico de ver Elis Regina cantando com tanta voracidade e intensidade.

  8. Elis reina. Uma bênção.

  9. Nessa horrenda e sinistra operação da entrega da Embraer para os americanos, a história da Panair me veio junto com a bela canção. Ontem, 23 de dezembro de 2018, conversando com amigos não conseguimos interpretar o que seria a orquestra para pelo motorneiro – hoje sei e vou contar. Parabéns pelos ensinamentos de seu texto.

  10. https://www.youtube.com/watch?v=B2UYaEVRkzQ

    DVD Rip, em qualidade melhor que a outra cópia disponível no YouTube. Um filme de Marco Altberg. Panair do Brasil é um documentário de longa-metragem que resgata a história da empresa pioneira na aviação comercial brasileira, símbolo de modernidade e eficiência. A empresa viveu seu auge na era JK. Ao tomar o poder, o regime militar passou a perseguir a Panair do Brasil e seus dirigentes resultando na cassação de suas linhas aéreas em 1965. O filme mostra como a Panair do Brasil sobrevive ainda hoje no coração e na esperança da chamada Família Panair, composta por antigos funcionários e seus descendentes, que sonham com a volta de seus aviões aos céus brasileiros.

  11. Era moleque quando ouvi o lançamento dessa música pelo rádio e foi amor à primeira vista, não só porque era cantada por nada menos que Elis, a maior interprete da MPB que esse país jamais teve, mas também por achar a melodia maravilhosamente melancólica. Quanto à letra? Bem, essa teve de esperar o moleque crescer para entendê-la.

  12. OBRIGADO POR ABRIR MINHA MENTE SOBRE AS FRASES DESTA LINDA CANÇÃO!

  13. Amei!
    Obrigada pelo trabalho sobre ” conversando no bar”. Nada tão parecido eu encontrei sobre esse clássico da música brasileira.
    Quando adolescentes eu, meus irmãos, irmãs e amigos cantávavamos esses hinos de nossa estórias do cotidiano brasileiro na voz de Milton immortal!
    Enchanted!
    Gratidão!

  14. Maravilhoso Milton!!
    Parte da nossa história sem dúvida. A música sempre nos uniu muito, a mim e meus irmão. Principalmente os aos dois mais velhos, cantávamos essa música , fazendos vocais lindos. Portanto ouvi-la nos remete ao nosso belos dias juntos, jamais serão esquecidos.!
    Obrigada Milton Nascimeto!

  15. parabens pelo resgate de tema tão instigante, trágico e importante da nossa historia. tudo que envove os milicos é sinistro e obscuro. . esta ferida do epsódio panair está aberta, o brasil está longe de ser passado a limpo. a tal abertura foi um engodo. a argentina nos dá lição quanto a isso. belo texto. contundente e nescessário!

  16. Eu fico obrigado com a frase “lambendo podre delícia” o que seria?

  17. Essa semana aos 67 anos de vida e 50 de Professora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental entusiasmada pelo show de nosso.maior astro MPB, decidi tirar m tempo para ler e entender as letras das músicas de Milton Nascimento. Domingo será o melhor show de minha vida! Mas uma coisa é certa vou deixá-las para muitos adolescente e minhas netas que ainda são crianças para que não cresçam na ignorância como cresci. Não por culpa de meus Pais que sempre nos incentivaram a estudar, mas por culpa do sistema autoritário, ditador que censurava tudo e nós que somos crias das escolas públicas sofremos as consequências porque os Professores eram proibidos de nos contar a verdadeira História do Brasil. Incentivem seus filhos e netos a lerem, perguntarem, conhecerem as artes das músicas que são extremamente culturais, para entenderem as músicas e as artes, pque eram censuradas porque contavam a verdade sobre como funcionava a ditatura e como ainda hoje convivemos com os resquícios dessa nossa infância que achávamos que éramos livres, mas fomos impedidos de saber o acontecia do lado de fora dos muros de nossas escolas. Que os estudantes, professores e artistas , encontrem meios mais eficientes e claros de levarem conhecimentos até as salas de aulas, desde os primeiros anos de escolaridade, com muita sabedoria, mais seriedade e clareza, para que os políticos que são nossos governantes saibam realmente o que é preciso fazer para que o nosso gigante país possa crescer e não desaparecer… Precisamos fazer com que realmente venha ” raiar a Liberdade no horizonte do Brasil! ” e nossas crianças cresçam aprendendo que para melhorar o futuro é preciso ter conhecimento, respeito, responsabilidade e não oba, oba, rebeldia, violência, falta de amor ao próximo e a nossa “Patria Amada Brasil!!!”Brasil mostre a sua cara!!! Nova Lima 13/112022.

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