A idéia de salvação da pátria na memorialística militar

maio 15th, 2005 | Por | Categoria: História Militar        



Nei Duclós

Vogamos incessantemente entre objeto
e a sua desmistificação, incapazes
de lhe conferir uma totalidade: pois,
se penetramos o objeto, nós o libertamos,
mas também o destruimos; e, se lhe
deixamos o seu peso, nós o respeitamos,
mas também o devolvemos ainda mais mistificado.
( Roland Barthes, Mitologias)

MITOLOGIA TENENTISTA.

As memórias dos militares que participaram dos movimentos armados na década de 20 são relatórios secos, objetivos, minuciosos, bem apropriados à cultura da caserna. Dificilmente escorregam para o anedotário e a bravata. Em geral, a decisão de escrever um livro serve para reparar uma injustiça histórica, impor uma versão pessoal ao consenso e evitar o esquecimento. Exemplos: Juarez Távora, João Alberto, Cordeiro de Farias e, do outro lado do balcão, Goes Monteiro e Abilio de Noronha.

Paradoxalmente, muitos autores que analisam esse período são apaixonados, em parte tendenciosos. Ou partem para o ataque frontal aos tenentes – como Paulo Sérgio Pinheiro em “Estratégias da Ilusão” – ou para sua defesa – como João Quartim de Moraes em “A Esquerda Militar no Brasil”.

Há, naturalmente, excelentes trabalhos sobre o ambiente militar do período, como é o caso de “Influência Estrangeira e Luta Interna do Exército”, de Manuel Domingos Neto (in “Os Partidos Militares no Brasil”), mas deve-se destacar a utilização ideológica do tenentismo como um lugar comum da historiografia brasileira. Em 1933, por exemplo, Virgínio Santa Rosa, em “O que é Tenentismo”, tenta encontrar na classe média o papel revolucionário que caberia ao operariado.

Além disso, há uma tendência em romancear o tenentismo, como atesta uma linhagem literária que nasce com Jorge Amado (“O Cavaleiro da Esperança”) e chega até hoje com João Meirelles Passos (“A Noite das Grandes Fogueiras”).

Ou seja, de todas as abordagens sobre o tenentismo, as memórias são as mais enxutas em termos de linguagem e, portanto, as que possuem maior credibilidade, pelo menos para os limites da nossa pesquisa. Pois se o mito, como quer Barthes, é lido como um sistema factual, quando é apenas um sistema semiológico, o caminho mais apropriado para rastrearmos a idéia de salvação da pátria nesse período importante da História do Brasil – 1922/1930 – são as fontes primárias, os relatórios públicos de profissionais do sigilo, e não o filtro ideológico dos historiadores. Isso não quer dizer que não devemos utilizar os livros escritos sobre o assunto, pois eles ajudam a esclarecer as complexas relações entre mito e História.

O salvacionismo militar gira em torno do tenentismo, mas não é através dele que se consolida. Ao contrário, o salvacionismo utiliza o tenentismo, nutre-se da força poderosa do mito, para negá-lo e assumir o poder em seu lugar.

O salvacionismo militar é uma idéia explícita no imaginário nacional e se manifestou decisivamente em várias oportunidades. Basta citar 1922 ( os 18 do Forte, ou a “raça de leões” de que falava Coelho Neto), 1930 (a revolução contra os “carcomidos”) e 1964 (a “Redentora”). Ao mesmo tempo, a memorialística militar é uma fonte primária riquíssima em elementos históricos que ainda guarda um excelente potencial de análise.

Esses dois elementos, a evidência da idéia salvacionista e a obscuridade a que ainda estão relegados os importantes livros de memórias dos militares, justificaria, no nosso entender, uma pesquisa. A sintonia entre os dois elementos – salvacionismo e memorialística – está fundada na idéia da permanência. O herói entra na luta para dar seu sangue pela pátria – e um herói nunca morre. Ao mesmo tempo, escreve um livro de memórias para ser lembrado, ou seja, sobreviver.

Nas memórias estão os argumentos psicológicos mais profundos de um personagem histórico – até mesmo as eventuais mentiras sobre os fatos narrados são relevantes. Nesse tipo de texto, poderemos detectar tranqüilamente as idéias que motivaram o autor a entrar numa luta de vida ou morte.

Ainda hoje existe a sobrevivência do salvacionismo militar. Os quartéis não estão mais silenciosos, e a idéia de que eles um dia poderão se manifestar para colocar ordem na bagunça da democracia civil, ainda permanece.

Escolhemos o período 1923-1930 como a época a ser pesquisada, não obrigatoriamente a data em que os livros foram escritos.

2. MITOLOGIA: A FARDA E A ORATÓRIA.

Os militares escolheram o positivismo como antídoto ao bacharelismo, à retórica, à herança ibérica do ócio e da contemplação (conforme detectado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil). Decidiram-se pelo heroísmo suicida – 1922 – quando esse mesmo bacharelismo “usurpou” o poder tão arduamente consolidado por Floriano Peixoto na grande guerra civil entre 1893-1895 ( os motivos que desencadearam essa guerra estão esplendidamente narrados nas memórias do Almirante Custódio de Mello).

O grande desafio do tenentismo foi criar uma mitologia própria, tão forte quanto a mitologia dos militares legalistas, fundada no mito de Caxias, na Proclamação da República e na ação do Marechal de Ferro.

A mitologia tenentista explodiu no imaginário do País em 1922, quando a bandeira brasileira foi repartida como pão entre os heróis que saíram de peito aberto para enfrentar as forças legalistas. Esse rito de passagem desabrochou numa mitologia completa a partir da Revolução de 1924 e a conseqüente Coluna Miguel Costa-Prestes. O segundo 5 de julho é uma data fundamental do tenentismo, porque houve uma estratégia mais bem elaborada em relação ao primeiro 5 de julho e teve desdobramentos muito mais amplos.

É a partir desse mitologia que um advogado – Getúlio Vargas – toma o poder em 1930 vestindo farda. Getúlio não podia fazer uma revolução vestindo a roupa dos bacharéis, mas encarnando a mitologia tenentista. Incapaz de tomar o poder pelo voto – a lei da Velha República – ele tomou o poder à força, vestindo a roupa deixada sob encomenda por Prestes – que não quis assumir o comando militar da revolução – e Siqueira Campos – que tinha morrido num acidente em Mar del Plata.
Vargas assume o poder com duas armas – a roupagem militar dissidente e a eloqüência do discurso em praça pública substituindo a retórica de gabinete. O delírio popular que as imagens sobre 1930 revelam significa a força do salvacionismo tenentista e a competência política de Vargas, que transforma-se no demiurgo dessa mitologia.

A pesquisa deve, portanto, dissecar as duas mitologias em confronto – a tenentista e a legalista -, suas manifestações, signos, iconografia, discurso e oratória. Deve detectar assim os motivos da sua permanência no imaginário nacional, levantando os momentos posteriores à época enfocada em que o salvacionismo militar se manifestou quando estava no poder ou na oposição. É preciso lembrar de episódios que enriquecem a diversidade do tema, como a quartelada de 1935 – também manifestação do salvacionismo militar – e o contragolpe de Lott – salvacionismo armado que garantiu a posse de um presidente civil.

3. A PÉ, A CAVALO E DE TREM.

O tenentismo travou sua primeira batalha a pé, pelas areias de Copacabana em 1922. Foi uma derrota e uma lição. Mas também serviu como referencial mitológico clássico, já que os 18 do Forte, empunhando pistolas e fuzis, caminhando em direção à morte, lembram heróis da Antiguidade. A pesquisa poderia investigar como esse mito espalhou-se pelo país através da tradição oral, dos jornais, dos discursos.

No segundo round, o trem entra como elemento de ataque, mas de maneira episódica – quando, por exemplo, Juarez Távora sai de Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, e investe contra a cidade vizinha de Alegrete, onde conta com o apoio de João Alberto; ou quando a Coluna da Morte, de João Cabanas, se desloca para o Interior. Mas nessa fase o trem é mais um elemento de fuga, como demonstra a saída de São Paulo dos revolucionários comandados por Isidoro Dias Lopes.

É cavalo que dá o perfil do período 1924-1926. Luís Carlos Prestes rompe o cerco dos dez mil numa manobra diversionista, de guerrilha, montado junto com sua tropa e se dirige ao Paraná a cavalo. A coluna Miguel Costa-Prestes, que percorre o Brasil, remete aos heróis cavaleiros da Idade Média e o relato dos seus feitos – O Cavaleiro da Esperança, de Jorge Amado -, bem que poderia fazer parte do acervo literário que acabou enlouquecendo Dom Quixote.

A força mitológica da Coluna sobrevive até hoje, como demonstra a série de reportagens de Luís Carlos Prestes Filho para a revista Manchete, o livro de Anita Leocádia Prestes, A Coluna Prestes, o livro de Domingos Meirelles, A Noite das Grandes Fogueiras, entre outras manifestações.

Se a pé os tenentes perderam, a cavalo deu empate. A vitória só viria em 1930, com o trem determinando as operações. O trem da vitória que carregava Getúlio Vargas e foi recebido festivamente no Paraná é um dos símbolos da revolução de 30. Só que no momento da vitória, o tenentismo não fica com o núcleo do poder, que cai nas mãos dos bacharéis – Vargas e Oswaldo Aranha. Os tenentes ficam praticamente na periferia do poder – Juarez Távora como Vice-Rei do Norte e João Alberto como interventor em São Paulo, sendo utilizado como escudo varguista contra as pretensões do Partido Democrático e a popularidade de Miguel Costa.

É importante, num trabalho de História das Idéias, definir o perfil dessas manifestações e como elas influíram na formação das mitologias e repercutiram na vida do País. Esse imaginário, que vem do Brasil profundo, foi soterrado pela mídia nesta segunda metade do século, mas permanece vivo. Uma rápida conversa com algumas pessoas que eram crianças em 1924, no bairro da Mooca, serviu para comprovar isso. Um dos entrevistados começou a fazer uma longa justificativa de que sua família não tinha colaborado com os revolucionários e por isso não merecera o tratamento dado pelos policias mineiros, que invadiram o bairro para pegar pretensos “traidores”. Ao mesmo tempo, quando se fala em fujimorização no Brasil, invoca-se involuntariamente o salvacionismo militar que a pé, a cavalo ou de trem chega com as tropas para “tirar o País do abismo.”

BIBLIOGRAFIA

;Esta é uma pesquisa feita desde 1980. Os livros relacionados abaixo, com exceção do livro do Marechal Setembrino de Carvalho e os dois “À Guisa”, de Juarez Távora, fazem parte da minha biblioteca particular.

  • Amado, Gilberto – Depois da Política, Livraria José Olympio Editora, RJ, 1960.
  • Barata, Agildo – Vida de Um Revolucionário – Ed. Melso Soc. Anônima, RJ, 1962.
  • Barros, João Alberto Lins de – Memórias de Um Revolucionário – Civilização Brasileira, RJ, 1954 – I Volume – A Marcha da Coluna.
  • Barthes, Roland – Mitologias, Difel, SP, 1982.
  • Camargo, Aspásia e de Goes, Walder – Meio Século de Combate – Diálogo com Cordeiro de Farias – Nova Fronteira, RJ, 1981.
  • Carneiro, Glauco – Lusardo, o último caudilho, Volume I – Nova Fronteira, RJ, 1977.
  • Carvalho, Mal. Setembrino de – Memórias: Apontamentos para uma História do Brasil, Ed. do Autor, 1951.
  • Coutinho, Lourival – O General Goes Depõe, Livraria Editora Coelho Branco, RJ, 1955
  • Duarte, Paulo – Agora, nós – Chronica da Revolução Paulista, com Alguns Heróis da Retagurda, SP, 1927.
  • Fausto, Boris – A Revolução de 30 – Historiografia e História, Brasiliense, SP, 1983.
  • Fontoura, João Neves da – Borges de Medeiros e seu Tempo – Ed. Globo, RJ, PA, BH, 1958.
  • Franco, Virgilio A. de Mello Franco – Outubro, 1930 , Schimidt Editor, 1931.
  • Leite, Mauro Renault e Junior, Novelli (orgs.) – Marechal Eurico Gaspar Dutra, O Dever da Verdade.
  • Lima Sobrinho – A verdade sobre a Revolução de Outubro – Gráfica Editora Unitas Ltda., SP, 1933.Mello, Almirante Custódio José de – O Governo Provisório e a Revolução de 1893
  • Malta, Octavio – Os tenentes na Revolução Brasileira – Civilização Brasileira, 1969.
  • Moraes, Denis de e Vianna, Francisco – Prestes, Lutas e Autocríticas – Vozes, Petrópolis, RJ, 1982.
  • Monteiro, Norma de Goes (org.) – Idéias Políticas de Arthur Bernardes, Volume I, Senado Feral, Brasília, 1984.
  • Moraes, João Quartim de – A Esquerda Militar no Brasil, Volume I: Da Conspiração Republicana à Guerrilha dos Tenentes, Editora Siciliano, SP, 1991.
  • Noronha, Abilio de – Narrando a Verdade – Contribuição para a História das Revolta em São Paulo – SP, 1924.
  • Oliveira, Eliezer Rizzo de/ Cavagnani Filho, Geraldo L., Moraes, João
    Quartim de/ Dreifuss, René Armand – As Forças Armadas no Brasil, Espaço e Tempo, RJ, 1987.
  • Peixoto, Alzira Vargas do Amaral – Getúlio Vargas, Meu Pai, Editora Globo, Porto Alegre, 1960.
  • Pessoa, Epitácio – Pela Verdade, Livraria Francisco Alves, RJ, SP, BH, 1925.
  • Sob a Metralha – História da Revolta em São Paulo – Cia. Graphica Editora, Monteiro Lobato, SP, 1924.
  • Rouquié, Alain (coord.) – Os Partidos Militares no Brasil – Record, 1980.
  • Rosa, Virgínio Santa – Que foi o Tenentismo – Civilização Brasileira, RJ, 1963.
  • Silva, Hélio – 1926, A Grande Marcha e 1922 – Sangue na Areia de Copacabana, , Civilização Brasileira, RJ, 1964.
  • Soares, Gerson de Macedo – A Acção da Marinha na Revolução Paulista de 1924 – Ed. Guanabara, RJ, 1932.
  • Sodré, Nelson Werneck – Do Tenentismo ao Estado Novo – Memórias de um Soldado, Vozes, RJ, 1986.
  • Távora, Juarez – Uma Vida e Muitas Lutas – Volume I: Da Planície à borda do Altiplano (Biblioteca do Exército Editora e Livraria José Olympio Editora, RJ, 1974)- Volume II: a Caminho do Altiplano (Livraria José Olympio Editora, RJ, 1974) – Volume III: Voltando à Planície (Biblioteca do Exército Editora, RJ, 1977) / À Guisa de Depoimento Sobre a Revolução Brasileira de 1924 – Volumes I e III, Mendonça, Machado & Cia, RJ, 1927 e 1928, respectivamente.
  • Vergara, Luis – Fui Secretário de Getúlio Vargas – Ed. Globo, RJ, 1960

2 comments
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  1. Orr , eu queria sobre o desdobramento !

  2. Acho que este site é o campeão de comentários enigmáticos. Querias sobre o desdobramento de quê? Qual desdobramento? Do assunto acima? Queres saber mais?

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