O PAPEL DA POLÍCIA POLÍTICA NO PROCESSO DE IMPLANTAÇÃO DA UNIDADE DAS FORÇAS ARMADAS (1930-1945)
dez 17th, 2009 | Por Nei Duclós | Categoria: História Militar, Trabalhos AcadêmicosNei Duclós
Um mergulho nos arquivos do Deops paulista, apresentado como trabalho de graduação na faculdade de História da USP. Uma sugestão de projeto de pesquisa.
I -Introdução
A divisão das Forças Armadas foi a herança mais preocupante da República Velha e o maior desafio para o novo Governo Provisório encabeçado por Getúlio Vargas. A busca de coesão interna dentro dos quartéis foi um processo que se arrastou pela década de 30 e só se consolidou com a implantação do Estado Novo – que no fundo é o produto dessa vitória. Ao mesmo tempo, ele se desenvolveu concomitantemente à idealização de uma nova nacionalidade, de cunho autoritário, baseada nos princípios da disciplina, obediência, organização, respeito à ordem e às instituições.
O Exército liderou esse trabalho, partindo da extrema fragmentação interna para a unificação do espírito corporativo. Era preciso dar o exemplo à Nação, que deveria despertar para grandes responsabilidades. Como disse o general Góes Monteiro em seu depoimento para Lourival Coutinho: “Nos primeiros meses do novo governo havia, praticamente, como que uma espécie de Exército duplo: o que obedecia diretamente às ordens GQG revolucionário e o que obedecia ao Ministério da Guerra”. Assumir o comando no Ministério da Guerra e neutralizar a ação dos oficiais e soldados revolucionários foi um árduo exercício de poder, que precisou de todos os recursos para se consolidar.
Um deles, naturalmente, foi o papel desempenhado pela polícia política na ação repressiva à multiplicidade ideológica dentro dos quartéis, onde legalismo, comunismo, integralismo e tenentismo mediam forças para controlar a tropa. O Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo nos fornece um valioso acervo para detectarmos esse aspecto importante do processo de implantação da unidade das Forças Armadas. Nos poucos prontuários consultados para a elaboração deste anteprojeto, um vasto universo oculto revelou-se intensamente, apontando vetores fundamentais para entendermos essa fase riquíssima da história brasileira.
A divisão interna nos quartéis tornou-se tema tabu, especialmente depois do regime militar de 64, de cuja esfera de influência ainda não nos libertamos. Levantar esse assunto, detectando as variadas nuances que ele assumiu com a ajuda da minuciosa documentação do Deops paulista – e de outros acervos, como o Arquivo do General Góes Monteiro, a vasta memorialística militar, além da extensa bibliografia sobre o período – nos ajudaria a entender uma instituição que ainda não esgotou totalmente seu potencial intervencionista (como demonstram os projetos da Calha Norte, os enfrentamentos com os sem-terra, a resistência em abolir o serviço militar obrigatório, além do fascínio que a farda exerce no imaginário popular).
O que me levou a escolher esse tema são perguntas antigas, relacionadas com a defasagem entre o pouco que se sabe sobre as Forças Armadas e o enorme espaço que elas ocupam na História do Brasil. Essas perguntam vem de longe, do Brasil profundo ao qual pertenço. Nasci nos anos 40 no extremo oeste do Rio Grande do Sul e fui criado escutando histórias de dois ex-combatentes da Brigada Militar gaúcha: meu pai, que lutou em 1930 e 1932, e meu tio, que participou da guerra – essa era a palavra usada – desde 1924 até 1932.
Quando comecei a ler os primeiros livros sobre o tema, em 1980, meu tio já estava velho e doente. Eu não sabia, na época, fazer as perguntas certas. Como sempre, limitava-me a ouvir. Pouco antes de morrer, revelando a imagem que tinha de si mesmo na longa luta de sua vida, ele costumava murmurar:
– Caiu a montanha.
A montanha era ele. Para conhecer melhor essa parcela da humanidade que nos legou a vida e entender este país que “não é para amadores” – como dizia Tom Jobim – é que comecei a estudar os militares. Este projeto será um passo importante nesta caminhada.
II -Objetivos: revelações da guerra surda.
Neste trabalho, pretendo provar que a repressão política dentro dos quartéis foi fundamental para consolidar a implantação da unidade das Forças Armadas. Ou seja, não desempenhou um papel marginal nesse processo, mas ocupou uma importância decisiva para erradicar os dissidentes da tropa, torná-la imune às influências externas, compor um espírito corporativo com unidade granítica e preparar os militares para grandes tarefas nacionais – o que se revelou em 1937, com o Estado Novo; durante a II Guerra, com a campanha da Força Expedicionária Brasileira; em 1945, com o golpe que depôs Getúlio; com o governo Dutra; e com as tentativas, desde os anos 50 (1955, 1961 e, finalmente, 1964) de tomar o poder dos civis.
A divisão das Forças Armadas tinha sido um fator decisivo para a vitória da Revolução de 30. Se elas estivessem coesas, o movimento revoltoso nem sequer teria sido desencadeado. Haviam três focos principais dessa divisão no momento em que Getúlio Vargas assumiu o governo provisório. O primeiro é representado pelos tenentes que na década de 20 levantaram-se em armas contra o governo federal e por isso foram presos, expulsos da corporação, exilados. As figuras principais dessa vertente são Juarez Távora – que assumiu o poder no Norte e Nordeste – João Alberto Lins e Barros, que assumiu o governo de São Paulo; e Luís Carlos Prestes, que antes de outubro de 1930 tinha sido posto de lado como comandante das forças revolucionárias.
A figura mítica, depois de Prestes, era Siqueira Campos – que morreu meses antes da revolução, num acidente aéreo sobre o Mar del Plata.
O outro foco é o dos chamados “jovens turcos”, elite militar cevada pelas reformas de Hermes da Fonseca e que, numa viagem à Europa, tinham se deslumbrado com a organização do exército alemão. Bertoldo Klinger e Góes Monteiro fazem parte dessa vertente, pois mantinham-se fiéis ao governo, mas assumiam uma postura crítica, expressa no jornal Letras em Marcha. Esse foco foi que assumiu o comando das Forças Armadas pegando carona no carisma dos tenentes revolucionários da década de 20 e acabou consolidando a unidade militar. E o terceiro foco era dos militares legalistas que acabaram dando o golpe de 24 de outubro que depôs Washington Luís. Um dos seus representantes era o general Andrade Neves, que assumiu a Casa Militar do governo Provisório.
Os anos 30 foram o embate entre as facções resultantes dessa divisão. Os militares dissidentes custaram a entender que a situação era diferente em relação aos anos 20, quando os dois 5 de julho e a Coluna Prestes formataram uma imagem carismática de heróis militares jovens, idealistas e determinados. Para eliminar a ruptura nas Forças Armadas, Góes Monteiro teve que enfrentar a agitação tenentista, comunista e integralista, e, especialmente, a revolução constitucionalista, a Intentona e o putsch de Plínio Salgado.
A Intentona foi um marco desse processo, pois definiu a importância de um Exército coeso, forte, unificado, sem as dissidências que o atormentavam e ameaçavam o governo. O golpe militar de 1937 definiu a vitória para a facção de Góes Monteiro. As Forças Armadas unidas dariam mais tarde o golpe de 29 de outubro de 1945 e o de 31 de março de 1964. Dois episódios que lembravam a velha ruptura – 1955, com o Marechal Lott e 1961, com o General Machado, no Rio Grande do Sul – foram acidentes de percurso. A unidade estava consolidada e só a insatisfação da caserna pós 1985 – aprofundada nos anos 90 – poderá lembrar vagamente o clima latente antes da irrupção do primeiro 5 de julho, em 1922.
O fracasso da Intentona revela que a repressão política na primeira metade dos anos 30 foi eficiente, já que o movimento comunista esvaziou–se e não levantou os quartéis, como esperava Prestes. As perguntas que devemos fazer para desenvolver esta tese devem ser as seguintes:
– como era tratada, nos arquivos do Deops, a infiltração comunista nos quartéis?
– quem eram e o que faziam as pessoas que foram detidas ou presas fazendo agitação a favor da dissidência das Forças Armadas?
– quais eram as tendências da ação desestabilizadora? Onde elas se manifestavam? Quais organizações estavam por trás delas?
– Que importância dava o governo para essa agitação?
Nesse levantamento, vamos detectar o perfil do militar dissidente, a literatura da agitação ideológica, a lista completa dos prontuários que se referem ao tema e servem para desvendá-lo, os motivos aparentes e reais para a repressão, o grau de envolvimento dos militares nas dissidências propostas pela agitação. Vamos levantar os elementos de ligação entre Forças Armadas e a polícia política, verificando o grau de subordinação hierárquica e os problemas resultantes. Pelos prontuários consultados, podemos dizer com segurança que podemos levantar a pregação do Partido Comunista Brasileira nas Forças Armadas, os motivos do fracasso dos dissidentes e do sucesso do governo.
A partir desse levantamento, poderemos escrever sobre as repercussões políticas desse processo – como a militarização progressiva da polícia, por exemplo, o que aconteceu integralmente com o regime de 64, as relações da repressão política e o tenentismo e o ambiente macropolítico que originou esse processo – tratado, naturalmente, com a especificidade necessária para atingir nossos objetivos de levantar o véu dos porões da repressão política dos militares. Precisamos escutar os estampidos dessa guerra surda, pouco conhecida e que ainda ecoam no inconsciente e na vida da nação.
III. Balizamento: da fragmentação à unidade
O período escolhido é 1930-1945. Da fragmentação à unidade, as Forças Armadas cruzaram um período extremamente agitado, onde facções em conflito brigavam pelo poder dentro e fora dos quartéis. Essa refrega interna foi decisiva para a implantação definitiva do estado autoritário, a partir de 1937. Mas precisamos detectar as raízes desse conflito e, para efeitos da nossa pesquisa, elas se situam no salvacionismo militar, que é uma idéia explícita no imaginário nacional e se manifestou decisivamente em várias oportunidades como em 1922 ( os 18 do Forte), 1924 ( revolução de Isidoro Dias Lopes em São Paulo e a sublevação dos quartéis no Sul), e a Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes.
O salvacionismo está intimamente ligado à idéia de identidade nacional, à fragilidade do País diante da ameaça estrangeira, a necessidade de união em torno da Força e do Ideal para enfrentar os inimigos internos e externos. No século passado, os militares escolheram o positivismo como antídoto ao bacharelismo, à retórica, à herança ibérica do ócio e da contemplação (conforme detectado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil). Decidiram-se pelo heroísmo suicida – 1922 – depois que esse mesmo bacharelismo “usurpou” o poder tão arduamente consolidado por Floriano Peixoto na grande guerra civil entre 1893-1895.
O grande desafio do tenentismo foi criar uma mitologia própria, tão forte quanto a mitologia dos militares legalistas, fundada no mito de Caxias, na Proclamação da República e na ação do Marechal de Ferro. A mitologia tenentista explodiu no imaginário do País em 1922, quando a bandeira brasileira foi repartida como pão entre os heróis que saíram de peito aberto para enfrentar as forças legalistas. Esse rito de passagem desabrochou numa mitologia completa a partir da Revolução de 1924 e a conseqüente Coluna Miguel Costa-Prestes. O segundo 5 de julho é uma data fundamental do tenentismo, pois nessa data houve uma estratégia mais bem elaborada em relação ao primeiro 5 de julho e teve desdobramentos muito mais amplos.
É a partir desse mitologia que um advogado e político – Getúlio Vargas – toma o poder em 1930 vestindo farda. Getúlio não podia fazer uma revolução vestindo a roupa dos bacharéis, mas encarnando a mitologia tenentista. Incapaz de tomar o poder pelo voto – a lei da Velha República – ele tomou o poder à força, vestindo a roupa deixada sob encomenda por Prestes – que, como escrevemos acima, foi afastado do comando militar da revolução – e Siqueira Campos – que tinha morrido um pouco antes. Vargas assume o poder com duas armas – a roupagem militar dissidente e a eloqüência do discurso em praça pública substituindo a retórica de gabinete. O delírio popular que as imagens sobre 1930 revelam a força do salvacionismo tenentista e o jogo político de Vargas, que transforma-se no demiurgo dessa mitologia.
O tenentismo é a encarnação radical da idéia de salvação da pátria, pois implica agredir o país para defendê-lo. Isso faz com que o heroísmo, mesmo ostentando a pureza moral das intenções, adquira na prática uma sobrecarga de vilania. Essa contradição alimenta a repressão e devolve a violência revolucionária aos seus próprios autores, levando-os ao fracasso, através da aliança entre impulsividade e despreparo técnico. O resultado é o suicídio (1922), a fuga (1924), a renúncia (1930) ou a ilusão (1935).
O salvacionismo militar gira em torno do tenentismo, mas não é através dele que se consolida. Ao contrário, o salvacionismo utiliza o tenentismo, nutre-se da força poderosa do mito, para negá-lo e assumir o poder em seu lugar. É exatamente aí que reside o núcleo da nossa pesquisa. Nos prontuários consultados, verificamos que os agitadores nos quartéis baseavam-se na precedência tenentista para tentar convencer a tropa. Mas cometeram um erro básico. Enquanto o tenentismo agia essencialmente sobre os oficiais – isso, de quebra, influenciava a tropa – a agitação do PCB dos quartéis nos anos 30 tentava fazer uma paródia da Agitprop leninista especialmente com o soldados – que vinham das classes trabalhadoras e portanto, “revolucionárias”.
Essa tática mostrou-se inoperante, já que as Forças Armadas fundam-se na hierarquia, na camaradagem e na confiança mútua. O agitador dos quartéis não pode tentar convencer pessoas isoladamente, mas grupos coesos que existem dentro da fragmentação interna. O problema é que a Revolução de 30 deu vez a um tipo de oficial que se fortaleceu à sombra do tenentismo. Como nota João Quartim de Moraes em “A Esquerda Militar no Brasil”: “À época em que os tenentes despendiam suas energias em rocambolescas rebeliões sem futuro e numa longa caminhada pelo interior do país, um novo tipo de oficial se formava nas escolas da Missão Francesa. Tratava-se de um tipo de militar que não ganhou as manchetes dos jornais nem inspirou a criação de mitos.”
Esse militar assumiu o comando de um Exército fragmentado, apanhou durante anos até conseguir consolidar a coesão interna e nesse processo descobriu que para manter as Forças Armadas unidas era preciso compor um Estado Nacional adequado, igualmente forte e indissolúvel.
IV – Fontes: na pista do anti-mil.
Os prontuários do Deops são excelente material de pesquisa. Vamos pegar alguns exemplos. O de número 270, por exemplo, que faz o fichamento das atividades do ex-aluno-oficial da Força Pública Aurélio Gomes, baiano nascido em 1912, indiciado em 1937 e preso em 1938. A partir dessa pasta, chegamos a uma outra, bem mais rica, a de Waldemar Schulz, de número 4635, um elemento dissidente chave, pois trabalhava a soldo do PCB, tinha servido no Exército e na Força Pública – como músico! – e estava encarregadode formar uma célula dentro de um quartel da Força Pública em São Paulo e tomá-lo à força no dia do golpe planejado.
Com esses dois prontuários, fica clara a atividade do Anti-Mil, a Seção de Agitação e Propaganda das Classes Armadas do PCB encarregada de desestabilizar as Forças Armadas “burguesas”, conforme a literatura apreendida pela polícia. O personagem central do Anti-Mil é João Raimondi, civil do PCB e que contratou Aurélio Gomes e Waldemar Schulz para a agitação. Segundo a polícia, Raimondi fazia agitação nos quartéis desde 1932, tinha fundado o jornal “A Sentinela Vermelha” e era encarregado do trabalho militar do partido, dentro e fora do Exército.
Nos boletins apreendidos na casa onde morava, a intenção do PCB era clara: ação de desorganização do Exército relacionada com a ação política diária, com lançamentos de palavras de ordem. “O Soldado”, diz um dos boletins, “deve conhecer a palavra de ordem e os objetivos do PCB e adotá-los.“ A idéia era combinar trabalhos secretos dentro do Exército com ação revolucionária de massa, pela conquista do próprio Exército. O objetivo era a decomposição absoluta do exército “imperialista” e a passagem de soldados para o lado do proletariado.
Ao mesmo tempo, era preciso “desmascarar os métodos empregados pela militarização imperialista em benefício da burguesia”. A palavra de ordem era o armamento do proletariado. Era preciso fortalecer o soldado de origem proletária ou camponesa. Uma observação manuscrita de João Raimondi, apreendida pela polícia, notava que o movimento militar de novembro de 1935 só funcionou nas unidades que tinham o plano de levante elaborados, estudados e descritos minuciosamente. O trabalho não se limitava ao Exército, mas também à Marinha, à Guarda Civil, à Força Pública e às associações militares.
O objetivo do PCB era formar quadros para a futura Guarda Vermelha. Raimondi chegou a fazer, segundo a polícia, levantamento nos quartéis e seu movimento. O elemento de ligação entre Raimondi e a Força Pública era Waldemar Schulz. Muitos nomes foram levantados nestes prontuários, como por exemplo Davino Francisco dos Santos, Antônio Mendonça, José Aparecido da Fonseca, Fraterno Borba de Araújo, Hermógenes de Oliveira, José de Castro Corrêa, Carlos Rocha, Carlos do Nascimento Rosa, Osvaldo Ribeiro da Silva, Waldemar da Silva Braga, todos condenados em 1938 junto com Aurélio Gomes e João Raimondi e portanto ligados à agitação dentro dos quartéis.
Os civis eram: Raimondi, Starsys Macilevicius, José Constatino Costa, Gumercindo Ferreira Martins. Os militares eram: cabos Maurício Manoel Mendes, Antônio Donoso Vidal, Fraterno Borba de Araújo; tenentes Waldemar da Silva Braga, Davino, Matheus Feliz de Moura; alunos oficiais José Aparecido da Fonseca, Paulo Sannevend; sargentos Antonio Mendonça, Gregorio Norberto de Oliveira, Armando Ferreira de Paula, José de Castro Corrêa, Carlos Rocha, Júlio Geraldo de Mendonça; soldados Celso Nascimento, Antônio Ferreira e Orildo Ribeiro da Silva.
Os militares que deram apoio ao movimento estavam encarregados da divulgação e preparo dos boletins e panfletos, além da propaganda verbal nas reuniões. Cada unidade militar possuía células organizados que aguardavam a palavra de ordem. Diz a polícia: “Tão bem organizada estava a célula comunista da Força Pública e tão intensa era a propaganda desenvolvida nessa milícia que, se não fora a eficiente e oportuna ação policial, dentre em breve teríamos que presenciar novo levante armado, semelhantes aqueles que felizmente foram prontamente sufocados em 1935 na capital e no nordeste do País.” A pesquisa precisa detectar se o movimento abortou pela ação policial ou pela ineficiência interna. O discurso da polícia, naturalmente, se auto-elogia.
O processo dos indiciados, segundo descrição contida no prontuário 270, possui provas documentais e autos de busca e apreensão, termos de declarações das qualificações, provas testemunhal e pericial dactiloscópica.
Para apoiar o levantamento nos prontuários do Deops, vamos utilizar também a memorialística militar, que é uma fonte primária riquíssima em elementos históricos que ainda guarda um excelente potencial de análise. Esses dois elementos, a evidência da idéia salvacionista e a obscuridade a que ainda estão relegados os importantes livros de memórias dos militares, justificaria, no nosso entender, a utilização dos militares autores de livros nesta pesquisa. A sintonia entre os dois elementos – salvacionismo e memorialística – está fundada na idéia da permanência. O herói entra na luta para dar seu sangue pela pátria – e um herói nunca morre. Ao mesmo tempo, escreve um livro de memórias para ser lembrado, ou seja, sobreviver.
Outro motivo é que nas memórias estão os argumentos psicológicos mais profundos de um personagem histórico – até mesmo as eventuais mentiras sobre os fatos narrados são relevantes. Nesse tipo de texto, poderemos detectar tranqüilamente as idéias que motivaram o autor a entrar numa luta de vida ou morte. Mais um motivo seria a sobrevivência do salvacionismo militar. Hoje os quartéis estão silenciosos, mas a idéia de que eles um dia poderão se manifestar para colocar ordem na bagunça da democracia civil, ainda permanece. A simpatia com que é vista a possível fujimorização do País comprova esse dado.
Para fazer a pesquisa, é preciso primeiro definir as fontes: livros de memórias publicados ou inéditos; depoimentos escritos, gravados, televisionados; reportagens, artigos e textos que contenham depoimentos pessoais de militares que participaram das revoltas . Serve também os depoimentos dados por terceiros sobre os personagens dessa história: parentes, amigos, colegas de farda, subalternos, superiores hierárquicos, inimigos, etc. Os documentos restritos, sigilosos ou não, da área militar, podem também servir como subsídios.
V – O que diz a historiografia?
No longo período de leitura a que me dediquei em uma década e meia sobre os militares brasileiros revoltosos, e na pesquisa que fiz no sistema Dedalus da USP, não detectei nenhuma obra exclusivamente voltada para esse tema, o do papel da polícia política no processo de coesão interna das Forças Armadas. O principal título referente ao assunto polícia política no período proposto, pelo que vi, é o de Elizabeth Cancelli – “O mundo da violência – a Polícia da Era Vargas. Mas, mesmo esse livro nada diz sobre o assassinato de dois militares presos no presídio político paulista durante uma tentativa de fuga e que consta no prontuário de Waldemar Schulz. Ou seja, existe um acervo valioso escondido nos arquivos do Deops que guarda muitas surpresas.
Em geral, a historiografia especifica sobre os militares ainda está muito presa às paixões que a intervenção militar nos destinos do país suscita, ou seja, muito voltada a temas como o espírito anti-popular dos tenentes, muito presa a distorções metodológicas como a questão da luta de classes e seu relacionamento com o movimento militar, entre outras dificuldades. Na minha opinião, deve-se mergulhar no espírito corporativo das Forças Armadas, é lá que reside seus segredos.
O núcleo de pesquisas estratégicas sobre as Forças Armadas, da Unicamp, é que desenvolve o trabalho mais interessante sobre o assunto. Os livros de Alain Rouquié e João Quartim de Moraes, apesar de suas limitações, são muito importantes para esta pesquisa. Mas acho que o assunto militares brasileiros ainda encerra os principais desafios para a historiografia.