UMA COREOGRAFIA ILUMINISTA DA HIDRA*
– O que os chineses acham da revolução francesa? perguntou Henry Kissinger.
– Ainda estamos observando, respondeu Lin Piao.
Nei Duclós
Revolução Francesa revisitada por meio da obra de Rétif de la Bretonne – escritor libertino, memorialista, historiador, repórter e cronista do século XVIII – revela-se, neste livro, desprovida da aura mística original e “contaminada” pela multiplicidade de enfoques. O autor da análise, um diplomata de carreira que foi ministro da Cultura, produz um ensaio que se propõe a estabelecer um fluxo de identificações entre as contradições da época e as da obra analisada.
Para isso ele assume uma atitude prudente ao cercar seu objeto de estudo. Sua intenção é não atiçar a desconfiança natural de seus eventuais e selecionados leitores – ele dirige-se a um público restrito, já que jamais traduz citações em latim e francês, inacessíveis para quem está fora dos muros da universidade. é evidente que esse caminhar de gato escaldado sobre brasas serve para evitar ser confundido com um admirador de Rétif, ou com o que esse escritor considerado menor representa – a princípio (antes que o leitor chegue à última linha) a subliteratura e o oportunismo.
Esse distanciamento é denunciado pelo uso sistemático de adjetivos na hora de classificar as obras do seu personagem. Estranho vai para “Drame de la vie” e “As Póstumas”; inclassificável para “As noites de Paris”; espantoso para “Noite revolucionárias”; curioso para um trecho de “Paysan Perverti”; descabelada para uma determinada narrativa sobre a perseguição a uma família republicana. Sobre a personalidade de Rétif, o adjetivo mais utilizado é excêntrico. Parece, com isso, que o personagem nunca merece confiança.
O olhar oblíquo sobre o texto de Rétif transforma-o assim numa hidra enjaulada, que exige atenção em cada cabeça ameaçadora rediviva.
A providência seguinte é identificar essas cabeças – ou seja, as contradições de um muralista de produção fluvial – para poder manejá-las como instrumentos de análise do período revolucionário.
As contradições são de natureza política e social, revelando um devasso que é ao mesmo tempo moralista, um aristocrata que orgulha-se das raízes camponesas, um monarquista que acaba convertido à causa da República e um ser múltiplo que aspira permanentemente à unidade.
Rouanet propõe-se a provar que as contradições são necessárias, sem deixar de desmontar os elementos justapostos de cada uma delas e apresentar a chave para entendê-las.
Vamos selecionar um exemplo da metodologia de Rouanet. Ele analisa a posição do escritor francês, em alguns textos, contra a propriedade privada, e em outros, a favor dela. Uma racionalização vagamente marxista, segundo Rouanet, para solucionar esse impasse, seria a de que Rétif via o socialismo como objetivo último e não como possibilidade imediata. Mas isso é insuficiente. A chave da questão estaria na posição assumida por Rétif de que é preciso manter a propriedade privada antes que a revolução política seja completada por uma revolução social. Como esse tipo de explicação encobre a questão central, Rouanet muda de perspectiva: o importante é saber de onde vem a contradição e o que ela nos ensina sobre o autor analisado e a Revolução.
A demonstração evolui a favor de Rétif que, mesmo sendo uma figura marginal da sua época, acaba ocupando nela um papel central. Isso serve para eliminar as resistências do leitor quanto ao objeto de estudo e abre caminho para alguns elogios, como a competência profética de Rétif em muitas questões e às avançadas posições que assume, apesar de oscilar, muitas vezes, entre a bajulação e o delírio. Selecionar o trigo maduro da erva daninha é um trabalho que Rouanet estabelece sem esmagar e queimar as cabeças da hidra, mas fazendo com que elas obedeçam a uma mesma coreografia. Trata-se de uma dança racionalizada por Rouanet, herdeiro do Iluminismo que, ao mexer com as vísceras do século XVIII, empreende ao mesmo tempo uma assepsia.
Separando 1789 – a revolta popular – de 1793 – o Terror -, Rouanet confessa ser impossível assumir em bloco a Revolução ou desmembrá-la abstratamente, mas coloca Rétif como um elemento esclarecedor para o dilema. Descobrir que a mítica Revolução das liberdades é também a fonte dos totalitarismos é uma constatação dura demais para quem navega nas águas iluministas. A hidra coreografada – a obra de Rétif na versão de Rouanet – serve como antídoto para a perplexidade gerada pela evolução das ciências históricas.
Faltou reforçar um aspecto que é marginal em Rouanet em relação ao trabalho de Robert Darnton, que em livros como “Boemia Literária e Revolução” e “O Iluminismo como negócio” destacou a natureza profissional do trabalho dos escritores panfletários, fonte maior das suas contradições, já que escreviam para vender e acompanhavam as oscilações do poder. Entre o sucesso de público e a censura, Rétif equilibrava-se sobre uma navalha – mais um ponto a favor para identificar sua obra com a revolução.
O importante é que o período analisado permanece em aberto. O trabalho de Rouanet abre espaço inclusive para aprofundarmos a questão da proximidade entre o intelectual e o poder, um assunto que naturalmente toca o ex-ministro de maneira especial.
BIBLIOGRAFIA
ROUANET, SéRGIO PAULO- “O Espectador Noturno – a Revilução Francesa através de Rétif de la Bretonne”,-Companhia das Letras, SP, 1987 |
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essa história é muito loucaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!!1