A luz que a treva revela

maio 14th, 2005 | Por | Categoria: Cinema, Trabalhos Acadêmicos        

Nei Duclós

A fé e a dúvida sobem o rio Quebec encarnadas em dois grupos humanos: um formado por dois franceses, um padre e um carpinteiro, e o outro por uma clã de índios. No início da viagem, rumo a uma longíngua missão, a fé prevalece: o padre está convencido de que poderá catequisar os nativos e para isso conta com absoluta confiança nos desígnios de Deus – e também nenhum temor em relação à morte, considerada certa diante dos perigos esperados (índios inimigos, inverno, ingleses).

Mas aos poucos a dúvida assoma na paisagem humana e reflete a dura geografia de uma realidade pagã. Ela cristaliza a diferença entre os dois mundos: um fixo, do signo da terra, formado por hábitos negros, relógios e ferramentas; outro móvel, do signo da água, composto por guerreiros, mulheres e canoas. A divisão cava fundo no coração dos índios, cresce com a aparição de um feiticeiro e torna-se irrefreável com a alegria debochada das jovens nativas.

A dúvida também finca bandeira em terreno sagrado: o padre, voyeur involuntário do sexo alheio, começa a provar a tentação; sua castidade sofre diante da promiscuidade alheia, enquanto seu único aliado, o carpinteiro – que sonhava em seguir a carreira eclesiástica -, aos poucos escorrega para o feitiço de uma cultura mais integrada ao ambiente. Esse clima acaba fazendo o patriarca indígena quebrar sua promessa de levar os franceses até o destino, a desviar o caminho em direção ao território de caça, deixando para trás o padre desprotegido.

A ruptura gera a fraqueza dos viajantes. Arrependido, o patriarca volta com seu grupo para apanhar o padre, mas todos são emboscados pelos índios inimigos. A prisão, a tortura, a fuga e a morte coroam a narrativa, que versa sobre a humanização viabilizada pelo fracasso. Quem buscava a glória, encontra a decepção, quem pregava a fé, encontra a superstição, quem propunha Deus, enxerga o Homem. O velho padre moribundo da missão distante, desesperançado diante do abismo entre culturas, é o retrato explícito dessa queda católica no meio da neve.

Como toda narrativa que usa a História como matéria-prima, o filme peca pelo anacronismo. O padre é encaminhado para o fracasso pelo roteiro, que o pinta frágil na sua fé, esquecendo a determinação granítica dos missionários católicos no Novo Mundo. Por sofrer de má-vontade crônica diante da Igreja Católica, o cinema do Primeiro Mundo, como os índios, é incapaz de entender os padres e sua civilização inspirada na cruz e fundada na pedra.

Sem querer, o cineasta comete o pecado que condena ao compor o universo indígena com os lugares comuns da idéia que faz da barbárie : o coito por trás (em oposição ao sexo frontal entre o carpinteiro e a índia); o feiticeiro anão, da mesma estatura da visão que o filme dedica à espiritualidade dos índios; a violência gratuita – e pseudo-ritualística dos índios inimigos.

Assim, a fé que o espectador dedica ao filme no seu início abre espaço para a dúvida forjada por estes equívocos. E fortalece a certeza de que, se não nos é possível fugir ao anacronismo, nos resta detectá-lo. Talvez pesquisar e refletir sobre essa defasagem entre o passado e os desígnios de cada narrador seja o único objetivo possível da História. O que não nos cabe é deixar-nos levar por essa luz difusa e colorida das certezas datadas. Com todos os seus problemas, o filme nos adverte sobre o Hábito Negro, nome do intruso que, ao pregar a luz, encarnou a treva.

*A resenha sobre o filme “Hábito Negro”, de Bruce Beresford, foi apresentado para a professora Laura de Mello e Souza, da USP.
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