A IGREJA E A REVOLUÇÃO DE 1924

nov 7th, 2010 | Por | Categoria: Trabalhos Acadêmicos        

NEI DUCLÓS

1. INTRODUÇÃO

(COM UM ADITIVO METODOLÓGICO)

Invocando Max Weber e seu instrumento revelador – a construção de um tipo ideal – vamos tentar criar um “quadro de pensamento que reúne determinadas relações e acontecimentos da vida histórica para formar um cosmos não contraditório de relações pensadas”. Essa construção, adverte Weber, reveste-se do caráter de uma utopia, obtida mediante a acentuação mental de determinados elementos da realidade. “Sua relação com os fatos empiricamente dados consiste no seguinte: onde quer que se comprove ou suspeite de que determinadas relações chegaram a atuar em algum grau sobre a realidade, podemos representar e tornar compreensível pragmaticamente a natureza partidular dessas relações mediante um tipo ideal.”

Isto posto, podemos forçar um pouco mão da nossa análise para afirmar o seguinte: com a atuação, nos anos 20, do pensador católico Jackson de Figueiredo – que entrou para essa militância por influência do D. Sebastião Leme, na época arcebispo de Olinda – a autocompreensão da Igreja Católica do Brasil tomou um novo rumo. Ela parou de pregar a ilegitimidade da República, que tinha promovido a ruptura entre Igreja e Estado e começou a levantar a possibilidade de se aproximar das instituições governamentais.

O espírito de restauração da monarquia deu lugar a uma tímida, mas ascendente participação da Igreja na vida oficial da República, senão diretamente, pelo menos por meio de seus próceres, como foi o caso de Jackson Figueiredo, que assumiu cargos importantes especialmente na presidência de Arthur Bernardes (1922-1926). ■

O quanto essa mudança de rumo tem mais a ver com a realidade da Igreja na Capital Federal e no Nordeste, e menos com a realidade paulista – que é que mais nos interessa diretamente – é um detalhe que poderia, numa pesquisa mais aprofundada, deitar por terra nossa armadilha conceituai. Mas podemos argumentar que a Igreja Católica sempre teve, em menor ou maior grau, um perfil único, especialmente depois da reforma ultramontana da segunda metade do século 19.

Pode-se argumentar que, de fato, a Igreja nunca se afastou do poder. Mas pelo menos é consenso de que as relações entre Igreja e Estado não eram a mesmas da época da monarquia e o fato de os sacerdotes não serem mais funcionários públicos faz com que essa reaproximação realmente tenha sido um fato relevante nos anos 20.

2. BOMBAS NA ESTRADA DE DAMASCO’

É possível então encarar a Igreja Católica em São Paulo como uma parte da instituição que, como no resto do Brasil, procurava se aproximar dos poderes da República, vista então como fato consumado, depois de mais de 30 anos de existência. A especificidade da realidade paulista é que havia, paralelamente a uma elite política, uma forte e emergente elite comercial e industrial que nem sempre se confundia com os responsáveis pelo exercício do poder público. O livro “Justiça”, de José Carlos de Macedo Soares, é solenemente claro sobre essa diferença, que ficou ainda mais profunda após os eventos de julho de 1924.

Antes de continuar nossa análise, é importante fazer um rápido balanço empírico sobre a chamada Revolução de 1924. Foi uma tentativa de tomada de poder de uma parte da oficialidade das Forças Armadas que redundou num fracasso. A cidade de São Paulo foi tomada pelos revolucionários, mas sitiada e bombardeada pelo governo estadual e federal durante 20 dias. Dos 700 mil habitantes, 300 mil pessoas fugiram de todas as formas: em trens de carga, de automóvel, a pé. Centenas e centenas de mortos enterrados em valas comuns, nos terrenos baldios ou nos quintais eram o espetáculo mais explícito de uma realidade: a de que havia extrema incompatibilidade entre o governo federal e estadual e a elite comercial e industrial paulistana, já que o bombardeio (a maior parte foram de alvos civis, como fábricas, bairros operários, hospitais e igrejas) foi a macabra opção de um poder que se viu ameaçado e encarou como traição o fato de a elite comercial e industrial paulista tentar salvar o próprio património.

É isso o que nos interessa para a nossa análise. No momento em que a Igreja procura canais de sintonia com as autoridades, viu-se, de repente, entre dois senhores: entre os que bombardeavam (as autoridades legais) e os que eram bombardeados( os donos de fábricas e armazéns e autoridades de fato da cidade sitiada – prefeito, revoltosos, empresários, mocidade engajada na segurança pública). De que lado ficar? A Igreja Católica teve um papel dúbio: acompanhou as ações da elite para preservar o património privado e público da cidade e ao mesmo tempo adotou a argumentação de ilegitimidade da revolução dos militares sediciosos.

Vamos descer a alguns detalhes tomando três casos exemplares como referência: a Igreja da Penha, a Igreja da Consolação e o Lyceu Sagrado Coração de Jesus. Permeando esses exemplos, vamos destacar as figuras de: D. Duarte Leopoldo e Silva, arcebispo de São Paulo, Fernando Bastos, pároco da Consolação, padre Luiz Marcícaglia, Inspetor do Liceu Sagrado Coração de Jesus e padre Antão Jorge Heckenbleinchner, da Igreja da Penha.

3. O EX-QUASE CARDEAL

Antes, vamos reproduzir o documento do arcebispo Dom Duarte Leopoldo e Silva, divulgado no dia 12/julho/1924, dois dias depois do início dos bombardeios e uma semana depois do início da revolta. Esse documento define a posição da Igreja durante aquelas férias de julho e foi fatal para que D. Duarte caisse em desgraça perante os governos estadual e federal. Sabe-se que, por adotar uma política de proteção da população e sintonizada com as providências que a elite tomou para garantir o património da cidade, D. Duarte perdeu a chance de virar cardeal. Seus inimigos foram até a Santa Sé para argumentar contra sua nomeação. Eis o documento:

“Aos católicos em geral:

Na situação angustiosa em que se encontra a população da capital, obrigada a contínuos e imprevistos deslocamentos, são inúmeras as pessoas, sobretudo velhos, mulheres e crianças, que se acham desprovidos de abrigo e alimentação. Nessa dura emergência, aconselhamos ao revmo. clero, às instituições religiosas e aos nossos caríssimos diocesanos em geral a prática da caridade para com os necessitados, sem distinção de espécie alguma, consoante a exigência e conforme as circunstâncias. É difícil traçar regras especiais para cada um dos operários do Bem, pelo que estaremos à disposição de quantos precisarem do nosso ministério, direção ou conselho, recebendo a todos indistintamente. Como quer que seja, parece conveniente que, desde já, se abram aos desabrigados os edifícios mais vastos quaisquer que sejam, inclusive as igrejas, se tal for necessário. As pessoas bem intencionadas, com prudência e critério, poderão evitar depredações sempre reprováveis, bem como obstar que a população seja explorada e desfalcada no que respeita ao necessário para a vida. Os revmos. Sacerdotes dirão na missa a oração Pro-Pace, e poderão usar de todas as faculdades que lhes forem necessárias no exercício do ministério e da caridade cristã, com exceção apenas dos que se requerem jurisdição especial. Confiamos na misericórdia de Deus, intercedemos todos pela breve e completa restabelecimento da paz entre nós, multiplicando as nossas preces e fervorosas orações.

Segundo Macedo Soares, D. Duarte fez visitas a bairros atingidos pelo bombardeio, transportou gente no seu automóvel particular para além das linhas militares, transformou as igrejas em abrigos populares, cedeu escolas e casas paroquiais para práticas hospitalares e instituiu comidas publicas para alimentar os retirantes.

4. IGREJA DA CONSOLAÇÃO: ENTRE A DUPLICATA E O ABRIGO

Uma das casas paroquiais que virou abrigo foi o da Igreja da Consolação. Essa paróquia, que estava a cargo do jovem cónego Francisco Bastos, merece uma atenção à parte. Bastos era um brilhante aluno de teologia formado em Roma, que num primeiro instante foi convocado para servir a pequena capela do bairro dos operários da fábrica do industrial Jorge Street. Bastos conseguiu romper o bloqueio dos líderes anarquistas por meio do futebol. Isso quebrou o gelo com os operários e fez com que ele promovesse algumas tertúlias para discutir religião e política. Não foi bem visto pelo industrial e foi logo removido por D. Duarte para uma dura missão: assumir a Consolação, que estava enterrada em dívidas.

O responsável anterior tinha levantado duplicatas para poder reconstruir a velha igreja da Consolação. Endividou-se e acabou renunciando ao cargo. O dinheiro era manobrado por especuladores que conseguiam dinheiro da população, entre velhos e viúvas. Macedo Soares veio em socorro do padre,

numa jogada imobiliária: um vasto terreno de Cerqueira César tinha sido doado pelo pai do escritor Oswald de Andrade para a paróquia, que não conseguia assumi-lo porque precisava pagar uma dívida referente ao imóvel. Macedo Soares pagou essa dívida, loteou o terreno e trocou partes da terra pelas duplicatas vencidas.

Veja-se aí um exemplo das ligações profundas entre Igreja Católica em São Paulo e a elite comercial e industrial de São Paulo. Na hora em que esta resolveu ficar na cidade e salvar as fárbricas e armazéns das bombas e dos saques da população, a Igreja veio em seu socorro.

5. PENHA: UM PÓRTICO PARA OS CANHÕES

Hoje a velha Igreja da Penha está cercada de edifícios. Em 1924 ela estava “a cavaleiro” da cidade e foi um dos pontos escolhidos para o governo (por meio das tropas do general Eduardo Sócrates) colocar peças de artilharia para bombardear a cidade. O objetivo dos agressores era disseminar o pânico na cidade para forçar a migração da população e a rendição dos revoltosos Padre Antão Jorge Heckenbleinchner, seguindo as recomendações de D. Duarte, buscava alimentos para os retirantes, atravessava lugares perigosos e inúmeras vezes foi preso. Conseguia ser solto invocando sua posição de sacerdote. Por diversas vezes, Padre Antão tentou ser mediador entre os chefes do movimento. Na pregação de padre Antão e outros padres redentoristas, a revolução de 1924 era uma espécie de advertência do Senhor. Segundo Hedemir Linguitte, “nas revoluções de 1924 e 1930, os padres redentoristas conclamavam o povo, não para o desespero e o desalento, mas para que, aos pés de Nossa Senhora, implorasse o perdão das faltas e

misericórdia para todos os paulistas.” A população, naquela época, vinha sendo seduzida pelo canto de sereia do anarquismo e das greves.

6. BOMBAS NO LICEU

O Liceu Sagrado Coração de Jesus, nos Campos Elísios, foi um dos primeiros prédios a sofrer com a revolução. O Padre Marcicaglia, inspetor da instituição, atribuiu as bombas aos revoltosos e ao longo de todo o livro “Férias de Julho” em que historia os acontecimentos, ele se coloca numa posição conservadora, contra a revolução e o povo que promovia os saques. A legenda de uma foto de um pai de família negro, com suas crianças, coçando a cabeça diante do peso do saque, depositado no chão diz o seguinte: “Depois do saque, a saúva negra, embaraçada coça a cabeça”.

O episódio mais importante narrado pelo autor é o da grande manifestação dos alunos do colégio logo após a revolução. Num evento que contou com a presença de autoridades locais, entre as quais o governador Carlos de Campos, foi reafirmada, depois de desfile dos alunos uniformizados, a importância da legalidade.

7. CONCLUSÃO

A partir de um tipo ideal – a reaproximação da Igreja Católica com o Estado, em todo o Brasil, nos anos 20 – analisamos a participação da Igreja Católica num momento de ruptura política entre as elites. A Igreja teve uma postura de apoio à elite paulistana e de momentâneo confronto com as autoridades

estaduais e federais constituídas. Mas essa ruptura, apesar das sequelas, foi restaurada logo após o fim dos conflitos na capital, já que a posição do clero era claramente legalista.

Além do mais, a lição do bombardeio serviu para que a elite emergente pusesse as barbas de molho. Não é por nada que o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo é fundado em 1928, nessa fase entre 1924 e a revolução de 30, em que São Paulo teve que se reciclar para impor-se diante de outros poderes mais fortes.

A Igreja continuou na sua postura conservadora, de reaproximação com os poderes da República, mas só acabou reassumindo sua importância com o regime páos 1930, que restabeleceu as ligações da Igreja com o Estado. Não apor acaso, a grande figura da Igreja logo depois de 30 é exatamente o Cardeal D. Sebastião Leme, o homem que acompanhou o presidente Washington Luís na sua última viagem para o exílio.

8. BIBLIOGRAFIA

Francisco Bastos, Monsenhor – REMINISCÊNCIAS DE UM PÁROCO DE CIDADE – – 192 páginas, Edições Paulinas, SP., 1973

Hedemir Linguitte – SANTUÁRIO DE NOSSA SENHORA DA PENHA -SUA HISTÓRIA, SEUS SACERDOTES, SUA GENTE -, 168 páginas, SP, 1989.

Luiz Marcicaglia, Padre – FÉRIAS DE JULHO – ASPECTOS DA REVOLUÇÃO MILITAR DE 1924 AO REDOR DO LYCEU SALESIANO DE SÃO PAULO- -1927, II Edição, Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 257 páginas.

Paim, António e Barreto, Vicente – EVOLUÇÃO DO PENSAMENTRO POLÍTICO BRASILEIRO – Itatiaia/EDUSP, 464 pgs., 1989.

9. ANEXO BIBLIOGRÁFICO91.

Tipo ideal.

Pg.106 – Construção de um tipo ideal.

■       obtém-se um tipo ideal mediante a acentuaçã

A “OBJETIVIDADE” DO CONHECIMENTO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS. IN WEBER – SOCIOLOGIA. Org: Gabriel Cohn, Coordenador: Florestan Fernandes. Editora Ática, Quinta Edição, São Paulo, 19o unilateral de um ou vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenómenos isoladamente dados, difusos e discretos

■   esses dados podem acontecer em maior ou menos número ou mesmo faltar por completo e se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogéneo de pensamento

■   trata-se de um utopia onde torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro na sua pureza conceituai

■   a atividade historiográfica determina em cada caso particular a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal

■   desde que cuidadosamente aplicado o conceito escolhido cumpre as funções específicas que dele se esperam em beneficio da investigação e da representação

Pg. 107. Significação dos conceitos de tipo ideal para uma ciência empírica

■ é possível formular muitas e mesmo inúmeras utopias, nenhuma parecida
com a outra

■   nenhuma poderia ser observada na realidade empírica como ordem realmente válida numa sociedade, mas cada uma pretenderia ser uma representação da ideia da cultura capitalista

■   cada uma poderia pretender reunir certas características da nossa cultura, significativas na sua especificidade, num quadro ideal homogéneo

■   é possível, assim usar diferentes princípios de seleção para as relações suscetíveis de serem integradas num tipo ideal de uma determinada cultura

■   é preciso sublinhar que os quadros de pensamento ideais são no sentido puramente lógico, e não no sentido de exemplar

Pg. 108 – Especificidades do tipo ideal

■   construção de tipos ideais abstratos não interessa como fim, mas única e exclusivamente como meio do conhecimento

■   quem quiser determinar a significação cultural de um evento individual tem que trabalhar obrigatoriamente com conceitos determinados de modo preciso e unívoco sob a forma de tipos ideais

■   a clareza de uma exposição não é prejudicada pelo caráter impreciso dos conteúdos, basta uma vaga concepção ou a presença difusa de uma especificação particular do conteúdo conceituai

Trabalho Para O Curso De Pós Graduação História Da Igreja Professor Augustin Wernet Aluno: Nei Carvalho Duclós

 

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