A NÚMERO CINCO

jun 17th, 2010 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

A bola de couro número 5 era o Rolls-royce das pelejas esportivas dos tempos idos. Tinha o tamanho e o peso certo, toda costurada a mão, peça de artesanato que servia de parâmetro para campeonatos, torneios e amistosos. Era preciso reformular um campo inteiro para abrigar jogos com aquele objeto caro, raro e só acessível aos endinheirados, filhinhos de papai ou obsessivos em geral. Era como passar no vestibular: quem aplicasse um chute certeiro no biroço de ouro já era considerado craque do selecionado.

O grosso solado de sua curvatura exibia a resistência dos produtos intermináveis daquela época, quando carro, geladeira, pulôver, casaco ou sapato eram para toda a vida. Menos para nós, petizes em fase de crescimento ostensivo, que tornavam obsoleto todo esforço de perenidade. A única coisa que permanecia para sempre era a bola número cinco, que exibia o carisma dos Stradivarius ou dos licores clássicos.

Era uma obra renascentista a ser exibida para olhos arregalados de garotos de rua aos molambos, os que ainda estavam na fase de bola de meia e no máximo ganhavam algo intermediário, uma número três, por exemplo, que não exigia respeito. Quando uma número cinco aparecia nas redondezas, havia a suspensão imediata de toda atividade para uma sessão de admirações exclamativas.

O grande perigo era alguém muito ruim no drible ou no gol ganhar de presente, de modo imerecido, o que era desejado pelos bambas de todos quadrantes. O ritual então era sempre o mesmo: o jogador medíocre, mas abonado, era paparicado até afrouxar a guarda e soltar a belezura no meio do gado. Era o batismo de fogo, que tinha por objetivo estraçalhar, por vingança, o presente tão ansiado. Só quando todo o couro estava esfolado e os gomos se soltando nas costuras é que devolviam, quase murcha, aquilo que outrora tinha conquistado o olhar guloso da turma.

Era quando, em choro desatado, o chambão corria para debaixo da cama, a acariciar o que imaginara ser seu passaporte para a inclusão. Mas tudo não passava de uma tarde de ilusões. Porque a vocação e o destino eram coisas que escapavam de qualquer numeração e pertenciam a quem nascia para isso. Para quem dispunha daquele espírito soberbo de um centroavante diante do goleiro em pânico. Isso não se comprava na loja da esquina.

Crônica publicada no dia 15 de junho de 2010, no caderno Variedades, do Diário Catarinense

Deixar comentário