ESTRELAS DA CONEXÃO ENTRE CÉU E TERRA

jul 19th, 2010 | Por | Categoria: Cinema        

Nei Duclós

Escola, disse aqui esses dias, quando escrevi sobre o filme francês Entre les murs, serve para o ensino e o aprendizado do uso da língua, passaporte para todas as outras matérias. Esa conceituação cabe perfeitamente no filme indiano Pedras preciosas como estrelas na terra, minha tradução livre de Taare Zameen Par (2007), dirigido e interpretado pelo ator cult Aamir Khan, considerado um perfeccionista e desde a primeira infância envolvido com cinema, por obra dos negócios familiares; escrito pelo também consideradíssimo Amole Gupte (quem consulta o supersite IMDB vira especialista em cinema indiano desde criancinha); e estrelado pelo fenômeno de nove anos Darsheel Safary, que ganhou todos os prêmios no seu país no papel do garoto disléxico, que quase se suicida e é salvo pelo professor de arte.

O filme é uma graça suprema e não passa em lugar nenhum no Brasil porque estamos entupidos de blockbusters, onde roda dinheiro fácil. E porque destruímos a infância, rebentamos com a inocência e devoramos o nosso futuro às gargalhadas e tiros. Em contrapartido, o filme indiano tem de tudo: é drama, é musical, é didático. Ensina como trabalhar a individualidade no que ela tem de escassa para descobrir o que nela sobra. Mostra que nenhuma exclusão é saudável ou vai consertar quem quer que seja. Ao contrário, vai intensificar o problema e levar a um desfecho trágico. E contrapõe a vocação e a sensibilidade ao pragmatismo cego de quem quer formar robôs competitivos.

Naif demais, óbvio demais? Como precisamos dessas obviedades que foram jogadas fora! Infelizmente, de repente nos sentimos superiores, por dentro, modernos e progressistas. Somos um bando de cínicos, isso sim. Muitas de nossas escolas estão na mãos de traficantes. Cada vez mais, a alunocracia impõe o terror aos professores, empurrados para a miséria e o sufoco. Escola aqui é lugar de merenda e conversa fiada. O discurso educacional se esmera em ser correto enquanto a realidade das pixações, da violência e do despreparo impera.

Bem oposto à Índia, que exporta alunos preparados no seu rígido sistema de ensino. Tem formando e pós-graduando indiano em tudo que é lugar. Eles estão com tanta presença no sistema de ensino, que podem se dar ao luxo de trabalhar algo mais amplo, mais preciso, mais significativo, mas voltado para o futuro que é abordar os alunos especiais, que devem ser incluídos nas escolas normais e não serem confinados em guetos. Mas chega de peroração. Vamos ao cinema.

Esta obra indiana é sobre conflitos de percepção entre o mundo adulto e infantil. Enquanto no francês Le Petit Nicolas (2009), baseado na obra do escritor René Goscinny e do artista Sempé, dirigido por Laurent Tirard, trata de mundos paralelos entre a infância e o mundo adulto, os indianos falar sobre os pontos de interseção entre esses dois universos. Nicolas é uma representação baseado na memória, já que o livro original que gerou a série e agora o filme, de 1960, resgata o rígido sistema escolar dos anos 40, suas brincadeiras, suas histórias e seus encantos e problemas.

A narrativa é feita pelo personagem mirim. O autor escreveu como se fosse a história ideal que gostaria de ouvir quando criança. Isso cria uma atmosfera de sonho em todo o filme, levando-o para o humor, garantido pela independência entre as duas visões de mundo, dos adultos repressores e dos alunos em outra, tudo dentro de normas duras e famílias nucleares tradicionais. Fico me perguntando se não foi melhor assim: só quando há limites é possível saborear a transgressão, só quando há disciplina dá para sentir o gosto da liberdade.

Na hora que libera geral e as aulas ficam lúdicas, por vaidade e preguiça dos adultos irresponsáveis, no recreio a garotada sai dando tiro, no mínimo. No filme indiano O professor de arte faz todo mundo dançar e pular, mas há um entorno de rigidez. Não se trata da dança o tempo todo, mas de um necessário contraponto ao que existe ao redor. Tudo é dialético e não se pode puxar demais para nenhum dos lados. No fim, o ensino inovador da arte serve para fazer a escola tradicional respirar, mas não a destrói, ao contrário, a atualiza e a preserva.

A escola mostrada no filme indiana é só para meninos, todos usam uniformes, são obrigados ao asseio, a limpeza, ao bom comportamento e ao estudo brutal das disciplinas. Isso cria um problema, pois o protagonista disléxico vive em outro mundo e precisa ser amparado pelo brilhante professor de arte para aprender a ler e escrever e assim poder convencer os outros professores de sua capacidade e finalmente mergulhar no que gosta, pintar.

Não é um caminho fácil. O professor se esforça para convencer o diretor, os outros professores e a família do garoto que há uma solução para o problema. Claro, consegue, o filme tem happy e end e exagera nas interpretações over e nas situações exageradamente emocionais (foi feito para chorar, enquanto Nicolas, para rir). Mas é um trabalho maravilhoso dos realizadores dessa obra, que deveria ser visto no Brasil para servir de parâmetro. Não para alimentar discursos, que disso estamos fartos. Mas para estimular os bons exemplos, em que os adultos abrem mão de sua percepção viciada e veem melhor o que as crianças nos trazem. Só o cinema, arte que se enxerga o tempo todo, poderia se sair bem dessa.

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