INVASÃO URBANA DA GRUTA DO PAMPA

abr 24th, 2010 | Por | Categoria: Cinema        

Nei Duclós

O cinema do Brasil, apesar dos festivais e de alguns sucessos da bilheteria, costuma se esconder. Por isso vejo tardiamente o que se faz dentro das nossas fronteiras. O jogo de gato e rato com as obras me cansa. Gostaria que tudo estivesse bem à mão para todo mundo assistir, mas não é isso o que acontece.

Como tomo conhecimento depois que os eventos sobre o lançamento já fizeram mais de um aniversário, corro para ler a crítica e só vejo injustiça. Ou por omissão ou por indiferença ou pelo vazio dos textos, que definem alguns lugares comuns para abordar um trabalho coletivo, complicado, árduo, enlouquecedor muitas vezes e que depende totalmente dos financiamentos públicos, pois não temos indústria, nem mercado sintonizado com o cinema nacional. A avalanche americana matou o resto entre nós, até mesmo o cinema italiano, que era tão presente. Hoje os americanos chegam ao cúmulo de refilmar tudo que é sucesso europeu.

Numa boa conversa em tarde chuva no feriado de Tiradentes, comentávamos com Miguel Ramos e Tabajara Ruas como víamos filmes de todas as nacionalidades nos anos idos, desde mexicanos até franceses e espanhóis. Hoje é tudo blockbuster, tiroteio, invasão do Iraque e gringos protagonizando todas em qualquer parte do mundo, principalmente traçando nativas asiáticas, hispânicas ou eslavas. Os Estados Unidos devoram o mundo e o invadem pelo comércio, a guerra e por uma invenção européia, o cinema.

Mas a visita na Lagoa no feriado foi boa também porque ganhei de presente de Miguel Ramos três preciosidades: o curta-metragem sobre “A Invasão do Alegrete”, de Diego e Pablo Muller, que é, acho, a primeira incursão cinematográfica no vasto anedotário do pampa, um ineditismo que precisa ser levado adiante, pois essa é uma riqueza larga e que renderá bons frutos; algumas cenas de divulgação de “Enquanto a noite não chega”, de Beto Souza, que está em fase de pré-lançamento; e, o mais importante por enquanto, que é o filme de 2005 também de Beto Souza, Cerro do Jarau. Não li nada que preste sobre este filme que mistura vários gêneros, onde se sobressai o policial. Mas posso estar enganado.

Cerro do Jarau tem o mérito de ousar despretensão com uma produção apurada, um roteiro bem feito e interpretações antológicas. Brinca com a lenda sobre a Salamanca do Jarau, mito trazido pelos espanhóis sobre a bruxa moura devoradora de homens que vive numa gruta no Cerro do Jarau, tema que inspirou João Simões Lopes Neto (que está sendo definido como “o Guimarães Rosa do Sul”, quando publicou sua obra muito antes de Rosa, que dele bebeu-lhe diretamente na fonte, do trabalho na linguagem a personagens, como o narrador Blau Nunes, que gerou Riobaldo de Grande Sertão, como publiquei no prefácio de uma edição de Lopes Neto para a Editora Globo).

O Cerro do Jarau exerce grande fascínio naquela região da fronteira. Lembro que as pescarias em lugares mais remotos estavam perto daquela elevação de terra, rara no horizonte estaqueado do pasto. O filme gira em torno da mulher e seu poder de costurar a história, onde os homens são coadjuvantes e suas vítimas. Implicaram com Beto Souza com o título escolhido, já que “ninguém conhece” a lenda. Haja. Primeiro porque isso é mentira, a lenda está entranhada na cultura geral do estado. Segundo, porque se fosse mesmo desconhecida aí é que deveria ser escolhida, ora pampas! Está tudo invertido no país das facilidades fofas.

Virou moda torcer o nariz para temas gaúchos no cinema. Vejam que coincidência. No momento em que os filmes no Rio Grande do Sul deram um salto com o trabalho de Tabajara Ruas e Beto Souza, entre outros cineastas, é que inventaram de implicar com o gauchismo. Não é demais? Sentiram medo da concorrência, pois um centro alternativo de cinema, fora das garras normais, capta financiamento e isso é um perigo para os devoradores de grana.

O diretor foi certeiro ao atualizar a lenda promovendo uma invasão urbana na gruta do ermo. Uma perseguição digna de um bom filme policial enfrenta o resgate da amizade cultivada na infância. Corações partidos lidam com o cinismo triunfante de um personagem que é a expressão máxima da interpretação entre nós: Miguel Ramos, o monstro, no papel do Correntino, o vilão hilário e sinistro. Costumo dizer que os atores/monstros, os que se transformam nas criaturas que inventam, fazem isso para nos assustar. Miguel Ramos, que ganhou tudo que é prêmio com esse papel, consegue. Tenho medo daquele correntino, síntese de todos os canalhas que conheci na fronteira, representado com perfeição pelo nosso ator maior.

Mas tem mais. Lu Adams no papel da mulher dilacerada por um casamento de traições e que procura no passado a redenção, está perfeita, sensual, intensa. Tarcisio Meira Filho faz muito bem o galã de duas caras, atrapalhado e fraco. Roberto Birindelli, Thiago Real, Nestor Monasterio e João França matam a pau em personagens coadjuvantes que dão grande sustentação á história. E no mais é o palco da música avassaladora do sul, o pampa aberto e limpo com sua mística e força, e o perfil de metrópole de Porto Alegre, mostrada não como paisagem, mas como um labirinto, conjunto indecifrável de prédios e pontes num clima noir. “Cinza é o nome da cidade apesar do claro que me abriu na alma” disse eu num poema do livro No Meio da Rua. É assim que eu via Porto Alegre e é assim que Beto Souza filma, com sua equipe técnica de primeira e o apoio de excelentes roteiristas. Geraldo Borowski e Fernando Marés de Souza, que trabalharam o script junto com Taba e Beto.

Querem mais de um filme? Ora, vão ver Avatar, que é, literalmente, uma bosta. Cerro do Jarau está numa caixa caprichada com dois cds, um é o filme e o outro são os extras, com cenas das filmagens, depoimentos e dois curta-metragens como bônus.

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