JAM SESSION EM KANSAS CITY

dez 18th, 2009 | Por | Categoria: Cinema        

Nei Duclós

No filme de Robert Altmann, Kansas City (1996) a narrativa é composta de vários rios paralelos de ação que se encaminham para o desfecho. O assalto do ladrãozinho que se faz passar por negro é a Depressão econômica de 1930, setor desemprego. O cabaré onde se desenrola a detenção do meliante e a jam session inesquecível de vários músicos de primeira grandeza, é a cultura criada a partir da concentração de renda permitida pelo crime organizado; o seqüestro da amante (Miranda Richardson, sonsa e assassina) do político influente como forma de libertar o assaltante, bolado pela mulher deste (Jennifer Jason Leigh, escrachada e perfeita no papel da mulher desesperada), é o cinema dos anos 30, em que ação e paixão se enlaçam num pacto mortal.

LOUCURA – Há seqüências memoráveis, como a vingança do gangster (Harry Belafonte, em performance totalmente inspirada em Marlon Brando do Godfather) contra seu taxista. Enquanto os asseclas esfaqueiam a vítima ao fundo, em primeiro plano Belafonte conta a piada de um judeu, um negro e um branco. O gênio da garrafa apareceu para os três e disse que poderiam fazer um pedido cada um. Quero todo o meu povo de volta para a África, disse o negro. Quero meu povo inteiro nas terras sagradas de Israel, disse o judeu. Todos os negros na África e todos os judeus na Terra Santa? perguntou o branco para o gênio, que confirmou. Então quero um Martini. Existem tomadas que é pura metalinguagem, como a lenta e indecisa saída do cinema das duas mulheres, a que seqüestrou e a que está à mercê do revólver da outra. Elas saem, praticamente de costas, olhando para a tela onde estão Clarck Gable e Jean Harlow. O amor se torna impossível pelas circunstâncias de violência. O voto de cabresto no bar lotado de bêbados, a imensa casa da família negra que acolhe a menina grávida, a tensa relação entre a mal amada e a enlouquecida de tesão, são pontos de tensão que parecem levar um grand finale de loucura coletiva. Espera-se que aquele dia de eleições, em que uma grande personalidade política está em apuros tentando salvar a amante, em que os políticos estão de plantão para garantir a vitória, em que os pobres fazem propaganda dos democratas, acabará num tiroteio, numa barafunda, numa apoteose. Mas todas as armadilhas se desatam, para restar uma só: a do casal que caiu na trama social da miséria, diante da própria ousadia de tentar remendar seus erros.

REDENÇÃO – Todo filme é sobre cinema e Kansas City não escapa desse destino. A mulher apaixonada que quer salvar o marido que cometeu um erro da mão dos bandidos quer ser a estrela de cinema, pois é na sala escura que ela aprendeu a amar. Seu amor é idealizado pela sétima arte e foi lá que encontrou sua redenção. Bem oposta à sua vitima, que optou pelo ópio, a cacatonia, a indiferença e a crueldade. O cenário que apóia e envolve a narrativa é a idealização de um passado tomado pela insanidade, o jogo, o alcoolismo e a ambição. O acaso, representação dos detalhes que fazem a diferença (um item forte no cinema de Altmann) nos leva para o assalto ao posto de gasolina, que permite o roubo de alguns litros de combustível por parte de quem só estava passando por ali, ou ao testemunho inocente de um Charlie Parker ainda menino, que carrega a menina grávida para a casa da mãe. O liberalismo, a explosão criativa, o amor alucinado chocam-se com as facas, os revólveres, os telefonemas sinistros, as armações, e o cassetete.

LIMITES – O filme vale pelo que sonha: a vida que chega à divindade pelo jazz pode medrar num poço de amargura e destruição; o amor que se manifesta numa situação terminal, é inspirado no cinema que foi feito para alienar, mas acaba levando o espectador para o sentimento, impossível de se realizar na vida diária. Por isso Kansas City é pura transfiguração. Não é um filme de gangsters, é sobre a reflexão que o crime faz sobre seus próprios limites. Não é um filme romântico, já que um abdômen em tiras e um tiro na cabeça selam o destino dos amantes. Não é um filme de época, pois essas Kansas City é uma armação do diretor alimentado pela memória (ele nasceu lá), mas traído pela necessidade de fazer o seu cinema. Não é um filme de vanguarda, pois sua narrativa é fiel ao roteiro que ruma para o desenlace. Não é um filme retrógrado, pois não há concessões para o pesadelo da América. É um filme, como todos, sobre cinema: o que a tela iluminada pode fazer na sala repleta de sonhadores, que aponta armadilhas dentro do próprio filme. Lá, na Kansas City de Altmann, as pessoas saem da sessão em direção à derrota. Aqui, de onde vemos a obra, encontramos esse choque entre o que parece ser real e o que foi inventado para a nossa revelação.

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