LUGAR PARA MORAR

dez 17th, 2009 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Ter um canto nem sempre significa teto, cama, criado-mudo, escrivaninha, TV. Pode ser que morar seja um verbo mais amplo e se refira à atual fase da oferta excessiva de informações, onde nos sentimos desprotegidos e procuramos um lugar onde descansar as retinas. Trata-se de uma armadilha: notícia demais nem sempre quer dizer diversidade de fontes, variedade de protagonistas, multiplicidade de situações. A maçaroca de coisas que nos atingem, ou procuram atingir, por meio de todas as mídias, podem circular pelo Mesmo, aprisionando nossa percepção em alguns guetos, ruas reviradas, casas demolidas, eventos recorrentes, personalidades eternas.

Há uma surda insurreição contra essa impostura que é o resultado da filtragem que fazem dos fatos, como se de repente estivéssemos com a visão limitada em 60 graus disponíveis nas telas ou nas páginas impressas. O olhar que varre a realidade se sente traído pelo que vê e ouve e que lhe é oferecido como a versão acabada de tudo. Há uma contradição entre o que precisamos e queremos saber, e o que nos colocam à frente, tudo amarrado com alguma mensagem ditada por todo tipo de interesse.

Mas isso é outro paradoxo, pois tudo está disponível, inclusive o que aparentemente nos é negado. Hoje é possível escutar os clássicos cantados pela Doris Day sem ter viajado a Nova York ou ido a alguma cdteca caríssima; rever pela milésima vez o filme definitivo (que, como todos sabem, é Os sete samurais, de Akira Kurosawa); lembrar a letra da marchinha de carnaval perdida (“dizem, em voz corrente, que em Goiás será a nova capital, leve, tudo para lá seu presidente, mas deixe aqui o nosso carnaval”); provar que existe um filme chamado O quinto poder, de Carlos Pedregal, que é sobre as mensagens subliminares no Rio de Janeiro dos anos 1960; tudo isso faz parte do grande acervo que a tecnologia colocou à nossa disposição.

É pela seleção do que gostamos de ter por perto (Lord Jim, de Joseph Conrad, traduzido por Mário Quintana), de reler (Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz), de escutar (Morning has broken, de Cat Stevens), que formamos nosso ninho, o lugar para morar. Podemos estar em qualquer parte do mundo, coloque Frank Sinatra para cantar. Fuja para o deserto, desde que seja possível escutar Villa-Lobos rodopiando sobre o beijo entre Ioná Magalhães e Othon Bastos. Donos desse espaço único, podemos então enfrentar a mesmice dos fatos, já que temos o alimento necessário para cruzar o Inverno.

Basta deixar de lado a moda, esse condomínio impessoal que a todos nivela. Acabamos incorporando outro tipo de perfil, muito parecido com muitos de nossos pares. Somos capazes de ver O filho da noiva, de Juan José Campanella, a comédia dramática encantadora que os argentinos souberam produzir em 2001, sem sentir vergonha de estar falando de algo tão distante (cinco anos hoje é mais ou menos um século). Moramos nesse lugar encantado em que a cultura não é a medalha que brilha na festa, mas o pão que aguarda, perto do fogo, o momento de nos aquecer na noite interminável.

O resto é tornado, enchente, contratempo. Talvez, no miolo do furacão, algo nos deslumbre e fique fazendo parte das relíquias que juntamos ao longo dos anos.

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