NESTA ÉPOCA

jan 3rd, 2010 | Por | Categoria: Crônicas        

Nei Duclós

Hábitos estranhos tomam conta das pessoas nesta época do ano. Manchas vermelhas enormes desfilam em corpos indiferentes, como se queimadura de último grau em peles brancas fosse a coisa mais natural do mundo. É tocante ver as vítimas na fila do sorvete com essas manchas, numa espécie de resgate dos tempos em que não se falava em camada de ozônio ou protetores solares.

No fundo, os costumes formatados por gerações anteriores continuam firmes diante das novidades. Expor-se em demasia faz parte de um acervo que inclui celebrações, encontros ruidosos, fogos. Mas principalmente o álibi perfeito para furar toda espécie de compromisso. Tudo se justifica com a expressão “nesta época”. A encomenda que foi despachada para um lugar e acaba misteriosamente num depósito suburbano de megalópole remota. O serviço prometido e ansiosamente aguardado que cai no buraco negro da viagem súbita dos encarregados, ou então do estranho sumiço dos clientes. “Fecharam tudo e foram embora” é o que dizem os vizinhos para abnegados funcionários em pânico.

A certeza de ganhar um extra, por parte de quem está empregado, e a possibilidade de faturar algo fora da rotina, para quem vive os altos e baixos do trabalho autônomo, repassa coletivamente uma ansiedade sem precedentes. Cortiços alugados a preços de hotéis cinco estrelas. Ou faxinas e jardinagens urgentes imploradas com lágrimas ao custo de uma viagem a Paris. O excesso de migração para os grupos que emitem ordens ou fazem pedidos acaba valorizando os remanescentes que resolvem tudo.

Assim mesmo, sobrevive uma qualidade imponderável, a boa vontade. Não se trata do “espírito” que obrigatoriamente deveria tomar conta do ambiente hostil até duas semanas atrás. Mas da índole de pessoas que encontramos por acaso, na nossa faina de tomar providências antes que o ano acabe. É quando vemos o quanto vale um gesto que desarma um pesadelo, dado muitas vezes de graça.

O encantador é que essa surpresa faz parte da natureza de quem soube ser solidário quando todos procuravam apenas satisfazer seus prazeres e necessidades. Sobreviverá à festa, assim como existia antes dela. Precisamos é ter a sorte de encontrar os que cultivam o amor no deserto. Talvez possamos ser como eles, imitá-los de todas as formas, de janeiro a dezembro.

Crônica publicada no dia 29 de dezembro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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