VISITA AO PLANETA TERRA
jun 3rd, 2005 | Por Nei Duclós | Categoria: ContosNei Duclós
Traços de nuvens um pouco roxas, montanhas verdes, mar calmo apesar do frio, ar por onde entra a memória, de tão puro. Quando foi que perdemos a pista daquele território que o caos urbano engoliu? PAISAGENS – Vejo daqui o mar. onde estava eu este tempo todo, longe da última paisagem sem dono, o gigantesco mar que nos abraça, fonte da poesia que sempre nos escapa? Vejo daqui o céu. Existem estrelas acima do Brasil, lua de dia, calma entre as pessoas, pássaros diferentes de pardais, vôos rasantes, cães tranqüilos. Você passa por um lugar, parece que nada acontece nele. Chega mais perto e vê: descortina-se o mundo perdido. Todos estão lá, intensificados em seus dias estendidos ao sol. Você passava ao largo, nem enxergava nada. O bom do Brasil é que o território é sempre maior do que conseguimos formatar em nossa escassa imaginação. O planeta é infinito, nós é que o tornamos limitado. O país é outro e ainda existe. Você pisa na areia limpa e esquece o que aprontam no outro lado do mar. Por que me envolver com tantas coisas que nada me dizem respeito? À tarde, o silêncio é tão profundo que chega a ser inverossímil. Você roça a alma no chão de um tempo que ainda está aqui, descansa até o osso, recupera-se da loucura. Lembro os quintais da minha infância. Eram inúmeros, todos reunidos num só. Num quintal de praia, aos nove anos, o rio Tramandaí oferecia botos com corcovas à mostra, em movimento. Num outro, caixotes de madeira eram carruagens. Um revólver de madeira estava escondido junto com uma pedra muito fina, de todas as cores. Ainda estará lá esse tesouro? Será que encontraram, taparam aquele lugar onde escondi meu coração de menino? Bastaria tirar o entulho do final da parede que descia diretamente no pátio, para descobrir o que ainda pulsa como lembrança e faz barulho de lata. PALMAS – Alguém bate palmas no quintal. Fazíamos teatro, com cortinas que eram colchas, todos fantasiados de palhaços, a derrubar bancos de madeira, a exibir carantonhas para a platéia familiar, que gargalhava. Dois cachorros perdigueiros e um policial atrapalhavam-se por toda parte, inúteis quando não havia caça, deslocados do seu ambiente verdadeiro, o longo deserto do pampa, que encerrava um susto atrás de tufos de capim. O matraquear das asas do pássaro cruzava a surpresa do caçador. O faro acompanhava o vôo junto com os dois canos da arma azeitada. O tiro às vezes se perdia. E devolvia em eco o nosso espanto grudado no vidro da porta do carro. Íamos juntos no safári paterno, não pela caça, mas pela algazarra. O grande acontecimento era o fiambre enrolado em papéis de pão. A vida garoava na volta e estávamos exaustos em nosso espírito desarmado. Tomávamos café às quatro e meia da tarde, junto com mil vizinhos. Todos queriam compartilhar a mesa, nem sempre farta, mas pontual como um relógio de quartel. Vida que resgato agora, diante do infinito mar. Paisagem do litoral, onde o Brasil começa e do qual jamais devemos nos afastar demais. Aprendemos aqui os passos miúdos e profundos do amor. Para onde me levam esses passos, palavras que jogo na rede para pousar no coração de quem sabe do que se trata? É o Brasil, situado no planeta Terra. O único lugar do mundo onde poderia haver felicidade. Longe da amargura que tomou conta de nós, ou de mim, que se esvai finalmente depois de tanto embate. Decido chegar perto da vitória que me carregou para longe, onde descobri o século, o futuro, a eternidade, palavras que nada valem diante de um pássaro equilibrado num fio. Mas nosso corpo agradece, caindo como pluma no travesseiro morno da imensidão do país. Quem somos nós a não ser criaturas de alma imortal, a roçar a superfície do universo como se estivéssemos brincando de esconder? Um, dois, três, te peguei. Pague a prenda: me diga um olá, acene do outro lado da rua, me convide para um passeio. Do céu pinga a maravilha de estar vivo.
Crônica publicada no caderno Donna, do Diário Catarinense, no dia 14/08/05)