OS BLOCOS DE MESTRE BAZINHO

dez 17th, 2009 | Por | Categoria: Contos, Crônicas        

Nei Duclós

A cidade é chão de terra que levanta poeira com as sandálias do povo em desfile. Eles chegam das casas na linha do trem para tomar a avenida Presidente Vargas, sob o comando dos mestres da bateria, dos batutas que ensinam o som e a dança. A escola é feita de lantejoulas e saias, de calças sedosas e cartolas de papelão amarelo, de evoluções em curva, de carros puxados à força pelos mais moços, que levam em seus ombros suados rainhas e princesas, enquanto as alas rodopiam diante da multidão sentada em cadeiras de vime, mais tarde de alumínio e hoje arquibancadas de madeira crua, reomontadas a cada ano sob o império das doações e incentivos. A escola era o chão dos maestros, mas não davam camisa. Era preciso migrar para os blocos, esses sim fontes de uma renda mínima, que garantisse a comida fora dos limites do carnaval. Isso era o território de Mestre Bazinho, convocado para equilibrar a concorrência entre os foliões, que imitavam as escolas só na aparência, pois eram mais soltos, menos formais, mas não podiam descuidar da qualidade do refrão.

RIO – Os braços levantados das moças dos clubes, caprichadas em seus paetês e miçangas, farfalhavam pernas e torsos sob o céu pouco estrelado devido às fortes luzes que jorravam dos postes. Era um passeio provisório, o das ruas. O momento decisivo era a entrada no salão, quando a platéia se levantava de uma vez só quando mestre Bazinho organizava o triunfo da canção-tema e dos acompanhamentos profissionais de pessoas sob sua guarda, gente de casas derrubadas sobre o rio. Havia sempre o sopro de instrumentos que davam o tom da cantoria, enquanto um surdo, um tarol, um tamborim, uma cuíca e um ganzá salpicavam o chão da elite com os passos do ritmo e da melodia. Entre os músicos, muitos eram dos quartéis, soldados da Brigada, do Exército, dos fuzileiros navais. Concentrados no seu ofício, só tinham olhos e ouvidos para o maestro, que dominava a cena com sua sabedoria instantânea que vinha de longe.

ENTRUDO – Não havia chance de arriscar diante do adversário. Por isso mestre Bazinho era convocado para todos os blocos importantes da cidade. Ele conseguiu essa façanha organizando a agenda como um mapa de guerra. Precisava do soldo que vinha daquelas vozes e corpos, e lhe dava prazer disputar o título com ele mesmo. Não que evitasse o confronto com seus pares, que existiam, mas com outras obrigações e objetivos. Eles não queriam se desvirtuar da religião das escolas, que demandava esforço o ano todo, incluindo aí a formação de novos músicos, escolhidos a dedo pelos olheiros dos mestres, que freqüentavam todas a s rodas em busca do trinado perfeito, do bater impecável sobre o couro de origens diversas. Não se podia deixar de lado esse tipo de providência, pois o carnaval era um sugador de gente, que vinha inapelavelmente e chegava com o estrondo do entrudo, quando a população enlouquecia, armada de baldes de água de tocaia nas esquinas. Sobre os muros, atrás das árvores, quem viesse ofender a folia com seus ternos de linho branco, seus penteados para a missa, seus véus de castidade, eram punidos com o jorro desmoralizador da bagaceira, que assim se vingava da situação a que fora condenada naquela fronteira entre o pasto e a honra.

NOTAS – Era chegar a bandalheira para que os músicos lembrassem aos cidadãos travestidos de mulher, às senhorinhas mergulhadas no lança perfume, de que existia uma civilização antes e depois do vendaval. Os músicos participavam de bandas sérias, envergavam fardas, tocavam nas comemorações da pátria, insuflavam vento à bandeira nacional que protegia o solo e acenava para o céu. Os músicos não poderiam faltar com suas notas, talento, força muscular e presença de príncipes num reino decaído. Eles herdavam a seriedade que antes pertenciam apenas às autoridades, aos professores, às mestras, às visitas ilustres, como o presidente da República que um dia deu um tiro no coração e que envergava roupa branca para refletir o sonho do povo em procissão pela História. Os aprendizes de mestre Bazinho traziam com sua arte a soberania do país em festa e rompiam o limite que havia entre pobres e ricos, entre analfabetos e eruditos, entre sonhadores e pragmáticos. Eles levavam tudo de roldão, sob o olhar de mestre Bazinho, o dono do evento, que nos bastidores era tratado como rei e que para o público era a garantia de que todos caprichariam para vencer, porque tirar o primeiro lugar era a medalha mais cobiçada. Ser destaque de evento sério é uma coisa, ganhar no meio do buchincho era outra, motivo maior de celebração pelo tempo afora.

BAÚ – Agora as fantasias estão perdidas, talvez alguma sobreviva em algum baú, se é que existem baús. Uma visita ao sótão, quando há sótão, e lá está a caixa onde se guarda o passado. A tampa está sem chave e basta vontade para tirar lá de dentro algo que faz barulho ao tocar. É um vestido, uma gravata borboleta, uma máscara, um frasco vazio de lança perfume. Quem quer saber de carnaval se já estamos no outono? Quem lembra o calor da festa no salão lotado, ao sabor das marchinhas eternas? Voltou o tempo de se aprumar, ir à solenidade, ouvir atentamente os discursos, participar de mesas com flores artificiais e coques altos, que coroam pescoços rodeados de pérolas. O ministro, o presidente, o governador, o prefeito estão presentes. De repente, no meio da banda oficial e vestida a caráter, cai no chão um clarim. É Argeu, da escola os Rouxinóis. Ele fica devastado pelo barulho que faz seu instrumento, e que atrai todos os olhares. Mestre Bazinho, sempre ele, olha o aprendiz com benevolência. Argeu se abaixa, pega o clarim, passo um lenço rosa sobre ele e, constrangido pela situação, faz de conta que vai dar um sopro. Será que sairá uma nota aguda, despropositada em meio ao silêncio majestoso de todos os presentes?

PALMAS – Argeu não sabe o que está fazendo. Quer se desculpar pela gafe, quer ser incluído como músico eficiente e sério. Não é um qualquer, desse que deixam cair as coisas, que não dão bola para as liturgias. Então ele dá um soprinho para ver se o bicho ainda funciona. Como tem força de dez leões no peito vasto, a nota sai límpida e alta, e toma conta do ambiente batendo no teto. A platéia então, automaticamente, esquecida da seriedade do outono, acompanha a nota como se estivesse ainda no início do desfile. Palmas ritmadas, acompanhadas pela voz uníssona do refrão daquela abertura dos bailes. Tará, tará, tará, tará, ta rarara ráááá. Aí ecoam as palmas de verdade. O carnaval temporão, como um raio tardio na tarde fria, cai nos rostos iluminados por aquela revelação: éramos o carnaval de mestre Bazinho, na fronteira do Brasil Soberano, quando havia nação e tínhamos a missão de manter aceso o fogo da nossa identidade, inventada pelos músicos e comandada pelo maestro que agora ria seu riso cheio de graça, que sempre fez a glória do folião número um daquela cidade, que era nossa pelo menos uma vez por ano – e quando Deus permitia, em qualquer estação da nossa infinita esperança.

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