Curso de Filosofia – Régis Jolivet
Capítulo Segundo
O HÁBITO
Art. I. A NATUREZA DO HÁBITO
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1. Definição. — A palavra "hábito" vem de uma palavra latina
que significa ter ou possuir. É, no seu sentido mais geral, a propriedade
de conservar as modificações recebidas.
É necessário, porém, precisar a natureza do hábito.
Ela não se reduz absolutamente à inércia e à passividade. Todos nós sabemos,
por experiência, que o hábito tem por fim dar-nos maior facilidade de agir. É o
que queremos dizer quando nos desculpamos de não ser bem sucedidos num trabalho
novo, com palavras deste gênero; "Eu não estou habituado". O hábito
pode ser então definido, no sentido próprio, como uma aptidão adquirida,
para reproduzir certos atos com tanto mais facilidade quanto mais tenham sido
executados.
2. Hábito e costume. — O hábito não deve ser confundido com o costume. Sabe-se que os
seres vivos são capazes de se acomodar, até um certo ponto, ao meio e às
circunstâncias (clima, temperatura, alimentação etc.) : o próprio organismo se
transforma, de algum modo, sob a ação das novas condições em que for colocado.
É a esses fenômenos de adaptação passiva (chamados, por vezes, mas de
uma forma um pouco equívoca, hábitos passivos) que se dá o nome de
costume.
Ora, o costume não é ainda o hábito propriamente dito.
Assinala a plasticidade do organismo, mas esta plasticidade é apenas uma
condição do hábito: este implica desenvolvimento de atividade. Cria a
capacidade e permite ao ser vivo não apenas adaptar-se às circunstâncias, mas
dominá-las.
3. Automatismo e dinamismo do hábito. — Se é
verdade que o hábito é dinamismo, é também automatismo, e de fato é esta
característica que o senso comum reteve acima de tudo. Nada nos é mais familiar
que o desenvolvimento mecânico do ato habitual em que, a partir de um sinal
dado (como numa lição que se sabe de cor e que se desfia por completo a
partir da primeira palavra), todos os movimentos se encadeiam sem parar, e
por si mesmos, do principio ao fim. A consciência não apenas não tem por
que intervir, mas ainda, o mais das vezes, na intervenção corre o risco de perturbar
o desenvolvimento do ato habitual. Deste ponto-de-vista, de finir-se-á o hábito
como um impulso automático para continuar ale o fim um ato ou um conjunto de
atos a partir do sinal que os desencadeou.
Assim, o hábito é, ao mesmo tempo, automatismo e
dinamismo. O automatismo é o meio de que dispõe a natureza para realizar
seus próprio, fins, isto é, ela se serve do mecanismo para dele se libertar.
Para compreendê-lo, é suficiente imaginar o que
significarei como liberdade para o espírito os hábitos intelectuais (por
exem pio, as regras lógicas), para a vida moral as virtudes, para a vida
social a linguagem e a escrita, para vida prática as técnicas da profissão. Todos estes automatismos, assinalando novas conquistas e fixando-as sob a
forma de hábitos, libertam as forças do homem para novos progressos.
4. Espécies do hábito. — O hábito não cria qualquer
atividade especial: aplica-se a todas para dar-lhes um funcionamento mais fácil
e mais regular, e, quando se produz de novo, é sempre no quadro das atividades
fundamentais do homem. Podemos ter então tantos hábitos quantas funções
temos. Pode-se, contudo, dividi-las todas em três grandes classes, que são: os hábitos intelectuais, que interferem nas faculdades de conhecimento
(sob este aspecto, ;a ciência, considerada subjetivamente, é um hábito) ; — os hábitos motores, que são aptidões a executar, por meio de mecanismos adquiridos
pelo exercício e desenvolvendo-se de uma, forma automática, atos mais ou menos
complexos (como as técnicas da bicicleta, do patim, da escrita e, em
geral, das profissões) ; — os hábitos morais, que interferem na vontade
(as virtudes e os vícios).
Art. II. PAPEL DO HABITO
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1. Finalidade do hábito. O hábito é condição da continuidade o de
progresso.
a) Continuidade. O hábito dá à nossa vida
esta coesão pela qual os atos que realizamos formam, não um conjunto de episódios
isolados na nossa existência, mas uma trama cerrada e contínua em que o
presente se liga ao passado e prepara o futuro. Sem dúvida, a liberdade
conserva sempre o poder de intervir soberanamente neste encadeamento. Mas seu
papel é, antes, inicial, enquanto, pela atenção, que é uma das formas da
liberdade, é criadora dos próprios hábitos. Uma vez formados, estes se
desenvolvem por seu próprio exercício, e permitem conservar os frutos dos
esforços anteriores. É por isso que a vida adquire essa unidade e essa continuidade
que dela fazem uma espécie de obra de arte, em que todos os elementos estão
solidários e se organizam em torno de uma idéia central.
b) Progresso. Pelo hábito, por um lado, os resultados
adquiridos são mantidos e acrescidos. O pianista que possui a necessária
habilidade manual pode, a partir daí, aprender indefinidamente novos trechos. —
Por outro lado, o hábito é uma função de economia: reduz ao mínimo o
dispêndio de esforço exigido pela ação. É assim que o mecanismo da escrita, exercendo-se
por assim dizei "sozinho", permite aplicar inteiramente a atenção às
idéias que se quer exprimir por escrito. — Enfim, o hábito se torna criador quando
acrescenta às aptidões naturais modos novos de exercício, técnicas novas que,
dotando o ser vivo de habilidade original, abrem à sua atividade perspectivas
de desenvolvimento infinito.
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2. Efeito do hábito. — É bastante que nós nos observemos para descobrir
os efeitos do hábito.
a) O hábito reforça os órgãos e as faculdades. Desenvolve
os órgãos, conferindo-lhes força, resistência e agilidade. Ao contrário,
a inatividade os atrofia. É nesta constatação que se baseia a cultura física.
b) O hábito diminui a consciência. É bem o
que exprime a linguagem corrente, para a qual "agir por hábito"
significa "agir maquinalmente". Se a atenção foi necessária para
adquirir hábitos,, estes, uma vez formados, tendem a dispensar a atenção. Muitas
vezes, a atenção se torna uma fonte do erro, porque, fixando-se nos elementos de um conjunto, que funciona como um todo, arrisca-se a separá-los e daí a
desorganizar o sistema.
c) O hábito reforça as necessidades. Se o
hábito não cria necessidades, propriamente, não deixa de reforçar as tendências
que o colocaram a seu serviço. Age, então, como uma segunda natureza, enquanto
que as tendências e os instintos que coloca em ação adquirem, através dele,
uma força cada vez maior e cada vez menos contrariada, até o ponto em que o
hábito pode tornar-se, por vezes, uma verdadeira tirania.
Vê-se também, entretanto, que o hábito não deve
efetivamente seu poder tirânico senão à tendência, à necessidade ou à paixão
de: que se investiu para agir com mais facilidade. Por si mesmo não conhece
outra tirania senão aquela que rege o desdobramento do ato habitual a
partir do primeiro ato (ou primeiro elo da cadeia), chamado sinal.
Art. III. FORMAÇÃO E DESAPARECIMENTO DOS HÁBITOS
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1. Condições de formação. — O hábito depende, por sua formação, de
condições biológicas, fisiológicas e psicológicas.
a) Condições biológicas. Vimos que o hábito é
um meio de superar a natureza, acrescentando-lhe algo novo. Mas essa própria
superação está latente em nossa natureza, que se submete às servidões
da matéria, mas que é também espírito de liberdade: O hábito é, assim,
o efeito e o sinal da dualidade de nossa natureza, que é a um tempo corporal e
espiritual.
Biològicamente, o hábito não tem, pois, outra condição
que não seja a de responder de alguma forma aos desígnios da natureza, o que
significa que a natureza apenas exclui os hábitos que a contrariam ou
negam. Um certo costume pode permitir tolerar os excessos e as falhas (é o
caso de Mitrídates quando se
exercitava em absorver doses cada vez mais fortes de veneno), mas dentro de limites
que a natureza jamais permite transpor.
b) Condições fisiológicas. Os elementos que
compõem o hábito formam um todo organizada, de tal maneira qie o sistema
por inteiro tem a tendência de se reproduzir, desde que a condição inicial (ou sinal) seja dada. É assim que a lição aprendida de cor se desenrola por
si mesma, desde que se possuam as primeiras palavras. Inversamente, o bloco
ou o sistema tenderá a se desagregar quando as condições de sua execução
estiverem modificadas. Assim, a recitação é bruscamente interrompida,
quando uma palavra é trocada.
Fisiològicamente, a condição essencial do hábito será,
então, de um lado, a criação de vias nervosas, facilitando a passagem do
influxo nervoso (fenômeno do franqueio), — e, de outra parte, a
agilidade e a disciplina do sistema muscular (cada vez que se trate de hábitos
motores).
Invoca-se muitas vezes também a repetição. Com
efeito, esta se torna indispensável, desde que se trate de vencer uma resistência
orgânica. O número das repetições, como a solidez do hábito, será por outro
lado extremamente variável segundo as espécies e os indivíduos. Mas, de
qualquer forma, o hábito é ao menos esboçado desde o primeiro ato, e, por
vezes, este primeiro ato, completado por uma intensidade ou uma aplicação
extrema, pode gerar um hábito perfeitamente constituído.
c) Condições psicológicas. Estas
condições podem resumir-se na inteligência, que toma consciência dos
mecanismos exigidos pelo hábito e lhe compreende o sentido exato, — e no interesse, que dirige a atenção. É a atenção que exerce o papel principal na formação
dos hábitos. É ela que escolhe os movimentos úteis e elimina os
movimentos inúteis, — que coordena os diversos movimentos entre si, — e intensifica os atos terminados, concentrando-se inteiramente neles.
Deste ponto-de-vista, as experiências que se
relacionam com as condições da aprendizagem são particularmente
interessantes. Todas elas mostram claramente o papel preponderante que exercem
os fatores conscientes no progresso da aprendizagem, a qual se resume na
aquisição de um sistema de hábitos.
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2. Condições de desuso. — Os hábitos se adquirem e podem perder-se, mesmo os
mais inveterados. As leis de desaparecimento (ou desuso) são exatamente
contrárias ás leis do formação: é possível desfazer-se dos hábitos quer
abstendo-se de os exercer, quer desorganizando o sistema que compõem.
a) A abstenção. A abstenção, ou
não-cumprimento dos atos habituais, pode admitir duas formas, ou dois graus,
sendo um a diminuição progressiva do número de atos habituais, o outro a sua
supressão radical repentina. Em qualquer dos casos, e a vontade que deve
intervir para inibir o efeito normal do sinal, e da mesma forma o rompimento e
o desdobramento dos movimentos, gestos ou palavras, que constituem o mecanismo habitual. É o caso do fumante que, para vencer sua paixão, se abstém de carregar
consigo a carteira de cigarros, cujo contato no seu bolso determina automaticamente
(como um sinal) o gesto de apanhar um cigarro e de acendê-lo. Pouco a
pouco, quando o esforço de inibição se mantém (de qualquer forma que seja), o
hábito desaparece, por não ser exercido.
Com mais forte razão, o hábito desaparece pela falta
de exercício, desde que não seja mais do que uma técnica, (arte ou
profissão, esporte ou jogo) que cessa de praticar, e não o instrumento de uma
paixão, que deve ser vencida. O pianista, que Já não faz. mais exercícios e não
toca mais, termina por não saber mais tocar, a não ser desajeitadamente; o
esportista, que não treina, mais, se esquece rapidamente a técnica do seu
esporte.
b) A desorganização. Observa-se por vezes
que o hábito podo ser destruído por substituição, quer dizer, pela
aquisição de um ha bito contrário ao que se quer destruir. É certo que, na
ordem nu» ral, sobretudo, esse processo é dos mais eficazes, pois dá um
objetivo positivo à atividade. Mas isto se aplica muito mais à tendência
ou à paixão do que ao próprio hábito. Para vencê-lo, o meio mais eficaz, com a
abstenção, consiste em desorganizar o sistema por ele constituído. Mas
esta desagregação é raramente total, quando o hábito estiver sòlidamente
constituído. É o que explica a revivescência dos hábitos perdidos e a
facilidade mais ou menos grande, que se experimenta, de reavivá-los.
Art. IV. INCONVENIENTES E PERIGOS HÁBITO
96 O hábito, dizemos, tem o seu reverso: comporta certos
inconvenientes e certos perigos, que se importa assinalar, e muitos moralistas
ficaram tão impressionados com isto que quiseram condenar o hábito como
nefasto. É o que faz Jean-Jacques Rousseau
no seu Emílio. Devemos conhecer, também, os argumentos que se
fazem valer contra o hábito, para apreciar-lhes, em seguida, o valor e o
alcance.
1. Requisitório
contra o hábito. — Este requisitório faz valer as seguintes observações:
a) Há maus hábitos. Quando se fala dos
benefícios do hábito, esquece-se muito que não existem só bons hábitos, e que
existem hábitos maus. Familiarizamo-nos com o mal facilmente, na verdade mais
facilmente que com o bem, e pode-se dizer do hábito o que Esopo dizia da língua: que ela é ora
uma coisa excelente e ora uma coisa detestável.
b) O hábito ê fator de endurecimento. Mas
será que jamais possa ser uma coisa excelente? Considerando tudo pelo lado
melhor, e não falando dos hábitos maus, é necessário salientar que se o hábito,
por debilitar a consciência, nos torna cada vez menos sensíveis às emoções, e
assim nos torna aguerridos e nos endurece, torna-nos também insensíveis ao
belo e ao bem, cria a monotonia e a saciedade, a tudo embota, e gera
tédio.
c) O hábito gera o automatismo. Enfim,
se o hábito é função de economia, é também função de automatismo, enquanto subtrai nossos atos ao império da reflexão e da vontade. Afirma-se
assim como o inimigo mais inflexível da liberdade e da responsabilidade.
4. Apreciação.
a) Este requisitório se aplica mais à rotina do que ao hábito, É a rotina que suprime a iniciativa, que paralisa a
atividade inteligente e livre, que gera a saciedade c faz
do ser vivo uma máquina.
b) É verdade, contudo, que o hábito tende, a degenerar em
rotina, como o espírito de economia
em avareza, e a prudência em pusilanimidade. Mas é sempre possível remediar este perigo. De inicio, pela reflexão e
a atenção, que renovam sem cessar os hábitos , enriquecendo-os e transformando-os,
incorporando à aquisição que
representa o hábito formado as novas conquistas que realizam; — em
seguida, pelo espírito de iniciativa, ou, mais precisamente, o hábito
da iniciativa ou da liberdade, que é um hábito como os outros, e, do ponto-de-vista da educação, o primeiro dou hábitos.
O hábito da reflexão e da liberdade, eis o que se
trata anteÉ de mais nada de adquirir, quer dizer, o hábito de dominar seus hábitos, de controlá-los pela razão e, se for
necessário, de destruí-los ou de reformá-los pela vontade. Assim, estaremos
armados contra mm rotinas; e, os
hábitos, longe de constituir um perigo, serão pre-Ciosos auxiliares, e a
própria condição do progresso no bem.
c) Hábito e liberdade. É, com efeito, o
principal sofisma, do requisitório, que se levanta contra o hábito, pretender
que ele suprima necessariamente a liberdade e a responsabilidade. Se é verdade
que o hábito, abandonado a seu automatismo, atenua grandemente
a liberdade e, por conseguinte,
a responsabilidade dos meios que produz, convém notar, inicialmente, que o hábito
é voluntário na sua causa, quer
dizer, nos atos livres, que o geraram, – depois, que
o exercício do hábito deixa
subsistir a liberdade e a responsabilidade
na mesma medida em que a vontade,
usando deliberadamente de hábito, confirma e reforça a iniciativa livre
de onde ele se origina.
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