Curso de Filosofia – Régis Jolivet
SEGUNDA PARTE
A VIDA INTELECTUAL
132
Da vida sensível à vida intelectual não existe simples continuidade. A atividade sensível
é limitada ao presente sensível imediato e desprovida desta universalidade que
define a inteligência racional do homem e faz com que as atividades sensíveis
se completem num clima racional, que as modifica
profundamente, É agora esta atividade
racional que temos de estudar, a
um tempo nu suas operações cognitivas e nos movimentos que inspira o governa.
Capítulo Primeiro
O CONHECIMENTO INTELECTUAL
O pensamento ultrapassa
o conhecimento intelectual, mas é pelas operações do pensamento, concepção,
juízo e raciocínio, que se caracteriza melhor a atividade cognitiva do
espírito. É, então, em torno destas noções que temos de ordenar nosso estudo do
conhecimento intelectual e de sua função mais geral, que é a atenção.
ART. I: A ATENÇÃO
§ 1. Natureza
da atenção
133 1. Definição. — As
diversas manifestações de nossa vida psicológica podem revestir duas formas
diferentes: a forma distraída e a forma atentiva. Na primeira,
nossos estados interiores e os acontecimentos exteriores se sucedem sem que
lhes apliquemos ativamente nosso espírito. Na segunda, concentramos neles
nossas faculdades de conhecimento. Pode-se, pois, definir a atenção como a concentração
da consciência sobre seu objeto.
2. Atenção e reflexão.
— A atenção pode aplicar-se quer à nossa vida psicológica, quer aos objetos
exteriores. Ê à observação ativa dos objetos exteriores que se reserva
geralmente o nome de atenção, enquanto que a observação ativa dos
estados interiores se chama reflexão. Tudo o que se segue se
aplicará a um tempo à observação subjetiva e à observação objetiva.
§ 2. Formas
da atenção
A atenção é suscetível de formas muito diversas,
conforme seja encarada do ponto-de-vista de seu mecanismo: distingue-se, então,
a atenção espontânea e a atenção voluntária, — ou, do ponto-de-vista das
funções psicológicas, nas quais ela se encontre: distingue-se, neste caso, a atenção
intelectual, a atenção afetiva etc.
1. Atenção espontânea e atenção voluntária.
a) A atenção espontânea é aquela que se impõe por si mesma ao sujeito. Ela não
é fruto de nenhum ato de vontade ao contrário, resulta passivamente das
preocupações dominantes do momento. Tal é a atenção do pintor às linhas e às
cores.
b) A atenção voluntária é a que resulta de uma concentração ativa e deliberada
das faculdades de conhecimento num objeto, seja interior, seja exterior.
2. Atenção afetiva e atenção intelectual.
a) A atenção afetiva exerce
um papel considerável nos emotivos, apaixonados e nervosos. Ela se aplica aos
sentimentos e às emoções de uma maneira por vezes obsedante.
Sob sua forma voluntária,
consiste num esforço vigoroso para disciplinar a sensibilidade.
b) A atenção
intelectual é, sob sua forma espontânea, a curiosidade natural
dos problemas intelectuais, e, sob sua forma voluntária, o que se chama a contemplação, ou fixação do espírito num objeto de pensamento, com um esforço firme para
eliminar as distrações e as preocupações estranhas ao objeto contemplado.
§ 3. Efeitos
da atenção 135 A atenção tem efeitos fisiológicos e efeitos
psicológicos. 1. Efeitos fisiológicos.
a) A atenção ativa a
circulação, principalmente nos centros cerebrais, relaxando-a na
periferia.
b) Relaxa o ritmo respiratório.
c) Produz
fenômenos motores: adaptação dos órgãos dos sentidos, convergência e
acomodação dos olhos, contração da fronte etc, paralisação dos movimentos do
corpo.
2. Efeitos psicológicos.
a) Retração do campo da
consciência. Na atenção somente conta
o objeto considerado: ele absorve, unicamente para si quando a atenção é
verdadeiramente grande, toda a consciência, que se esvazia momentaneamente de
qualquer outro conteúdo.
b) Multiplicação dos atos
perceptivos. A atenção normal não é
um ato absolutamente contínuo. Compõem-se, ao contrário, de uma série de
observações ativas e de reflexões concomitantes. De fato, ela se renova
continuamente, e se desenvolve segundo um ritmo de tensão e afrouxamento
sucessivos.
§ 4. Pedagogia
da atenção
136 Deste estudo da atenção se
seguem naturalmente duas conseqüências importantes, do ponto-de-vista prático.
1.
Desenvolver a atenção voluntária.
— É esta a verdadeira atenção humana, se for exato que a atenção espontânea é
comum a nós e aos animais. Ora, desenvolver a capacidade de atenção voluntária
é ainda, como já o notamos mais acima, a propósito do "sujeito" (97),
tornar-se alguém cada vez mais senhor de si, substituindo as diversas atrações
que o enredam por sua própria força, se permanecer passivo diante delas, pela
atividade refletida que não se deixa distrair de sua tarefa, e que empresta a
nossas faculdades o máximo de seu poder.
2.
Dirigir a atenção voluntária. —
Pois não basta ser capaz de atenção, mas é necessário ainda fazer um bom uso
dela, Há toda uma educação a dar à nossa faculdade de atenção.
a) No estudo, é sabido que se aprende com muito mais facilidade
aquilo a que nos "aplicamos", como se costuma dizer, do que se
percorre distraidamente.
Na vida moral, por
outro lado, um dos preceitos mais importantes é desviar a atenção das imagens
e dos sentimentos que solicitam nossas piores inclinações, para aplicá-la com
força e perseverança às idéias e às tendências elevadas, como às sugestões do
dever. As tentações não têm possibilidade de nos vencer, a não ser que
encontrem em nós a cumplicidade de uma atenção malsã, e, de resto,
freqüentemente "fugir à tentação" não é nada mais do que recusar
atenção.
c) Relativo/mente à
sensibilidade. Enfim, por meio de uma atenção voluntária, metódica e
contínua, ajustada aos princípios do dever e às grandes idéias morais, é possível
chegar a criar em si uma sensibilidade tão disciplinada e reta, que a
prática do bem se torne uma obra cada vez mais fácil e agradável.
ART. II. O PENSAMENTO EM GERAL
§ 1. Noções
gerais
137 1. Imagem e
idéia. — Ao analisarmos os conhecimentos que já adquirimos, não podemos deixar
de distinguir ditas categorias bem distintas. Umas aplicam-se às
realidades concretas’, singulares, e têm uma posição definida no espaço e
no tempo; por exemplo, esta mesa em que escrevo, esta casa em que habito, este
sentimento que experimento neste instante. As outras, ao contrário, são
gerais e aplicáveis a um número indefinido de objetos: uma casa, uma mesa,
um triângulo, um sentimento. As primeiras são imagens, as outras idéias ou conceitos.
2.
O conhecimento abstrativo. — O
conhecimento intelectual é o que se orienta por idéias gerais e abstratas. Isto
não significa que não tenha relação com o conhecimento sensível. Ao contrário,
apóia-se nele e dele extrai seus próprios materiais, por um processo que se
chama abstração, que estudaremos mais adiante.
3.
Os dois aspectos da vida
intelectual. — A inteligência compreende uma dupla série de funções. Umas (concepção das idéias, juízo, raciocínio) têm por objeto a elaboração
dos materiais (ou imagens) fornecidos pelos sentidos externos e internos: estas
funções compreendem o que se chama pensamento. As outras têm por objeto
a conservação dos materiais do conhecimento, imagens e idéias, e a associação
espontânea ou ativa desses materiais: estas funções são as da memória e da associação das idéias.
§ 2. O Pensamento
A. Noção.
138 1. Que é pensar?
— Pensar, em geral, consiste em conhecer em que consistem as coisas e que
relações têm entre si. Ver o triângulo que está inscrito no quadro-negro é
uma percepção sensível. Definir o triângulo por uma noção aplicável a
todos os triângulos universalmente (ou a todos os triângulos de uma espécie
dada) é um ato de pensamento. Assim, também, ocorre com o juízo, que
enuncia que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois retos, como
também com o raciocínio, pelo qual se estabelece esta asserção. Da mesma
forma, ainda, determinar a causa de um fenômeno é formular uma relação que
é acessível apenas à inteligência. Poder-se-ia dizer, de maneira mais geral,
que pensar é compreender, isto é, compreender as coisas, tanto em si
mesmas, como em suas razões de ser.
2. Idéia, juízo,
raciocínio. — Vê-se, assim, que o pensamento compreende três operações
distintas:
a) A concepção das idéias, que consiste em apreender o que a coisa é (o triângulo,
como figura que tem três lados). Ela se exprime na idéia, ou conceito, que
exprime uma essência (ou o substituto de uma essência).
b) O juízo, que consiste em afirmar (ou negar) uma relação de
conveniência entre várias idéias (o círculo é redondo, o tempo está bom, o
homem é racional).
c) O raciocínio, que consiste em estabelecer liame lógico entre
vários juízos.
Estas operações já foram estudadas em
Lógica formal. Cumpre, todavia, acentuar que a Psicologia observa de um
ponto-de-vista diferente do da Lógica. Ela tem por fim determinar, não, como
faz a Lógica, as leis ideais do pensamento correto (6), mas a natureza
do pensamento, as condições de fato e as leis experimentais de seu
exercício.
3. Natureza da
inteligência. — O pensamento difere, essencialmente, do conhecimento
sensível. Este efetua-se por órgãos corporais, ao passo que a inteligência é uma faculdade inorgânica
pela qual a alma conhece as coisas de uma maneira imaterial.
Sem dúvida, a inteligência tem
condições orgânicas, que são os nervos e o cérebro, mas condições não são
causas. (Para tocar violino, o artista carece de um arco. Mas o arco não é
causa da melodia: é apenas a condição). Deve-se, por isso, dizer, com Aristóteles, que "nós pensamos
sem órgão de pensamento" (88).
139 4. As formas do pensamento.
a) Discurso e intuição.
Distingiiem-se: o pensameyito discursivo (ou discurso), que consiste em pesquisas múltiplas e sucessivas. O seu
tipo é o raciocínio. Ele se impõe cada vez que a verdade não é vista imediatamente;
— o pensamento intuitivo (ou intuição), que consiste na visão imediata
e global de um objeto ou de uma verdade. (Toma-se também muitas vezes a palavra intuiçõ.-:-no sentido de pressentimento, que é um sentido menos
rigoroso.)
b) Intuição e discurso estão
constantemente associados no ato do
pensamento. De fato, todo trabalho do espírito parte de uma intuição para
chegar a outra intuição, por meio do discurso. Na princípio de nosso
conhecimento há objetos (as coisas) e noções (noções de ser, de causa etc, e
primeiros princípios), aprendidos por uma intuição espontânea, uma sensível,
outra intelectual. J partir destes objetos primitivos, institui-se um trabalho
discursivo, que tem por fim aprofundar e precisar o conhecimento do real dado
aos sentidos, e descobrir a ordem das coisas e suas razões cc ser. Este
trabalho tende a terminar numa nova intuição, que fornece a cada passo uma
visão mais rica do real. Saber verdadeiro, mente, afinal de contas, é
ver.
140 5. Os
instrumentos do pensamento. — Nós somos seres a um tempo espirituais e
corporais, e por isso é que nosso pensamento deve encarnar-se no sensível. Isto
se produz por meio da linguagem e da escrita.
a) Natureza da linguagem. A
linguagem é um sistema d sinais sonoros (a palavra) ou visuais (o gesto
e a escrita), qi têm por fim a expressão dos fatos psíquicos e, mais
particularmente, do pensamento.
b) Pensamento e
linguagem. Pode parecer inútil perguntar, como fez de Bonald, o que vem primeiro, o pensamento ou a linguagem,
uma vez que a linguagem atesta o pensamento e praticamente se confunde com ele.
Contudo, no complexo pensamento-lin-guagem, é sem dúvida possível definir qual
o aspecto ou o elemento que tem a primazia formal, quer dizer, definir uma ordem
lógica. Ora, deste ponto-de-vista, é evidentemente ao pensamento que compete
atribuir o papel essencial, uma vez que, se o pensamento se atualiza na e
pela palavra, esta não faz mais do que exprimir o pensamento. Sem
pensamento, não existiria linguagem, mas simplesmente reações emocionais estritamente
expressivas do estado afetivo de um indivíduo incapaz de se aperceber das
diferenças entre ele próprio e o que o cerca.
Sob este aspecto, diremos que
a linguagem nasceu da tripla necessidade que o homem experimenta (e que
procede de sua natureza racional) de se exprimir ou de se afirmar a si
mesmo diante do mundo, — de exprimir o sentido que ambiciona dar ao
mundo, — de comunicar-se com seu semelhante para realizar seus projetos
e, em conseqüência, para atingir sua própria libertação e conquistar sua
autonomia. — Quanto a saber como é atualizada esta tripla
necessidade, pode-se admitir que foram a um tempo o gesto, a mímica, o grito e
a imitação dos ruídos naturais (onomatopéias) que serviram de primeiro apoio.
Art. III. A IDÉIA
141 1. A abstração. — A idéia geral resulta de
uma operação, que
se
chama abstração.
a) Em geral, abstrair é considerar
à parte, num todo complexo, os elementos que o compõem. É esta operação que designamos, em Metodologia, pelo nome
de análise (44).
b) Enquanto operação que produz a idéia
geral, a abstração é o ato pelo
qual a inteligência pensa um objeto, deixando de lado seus caracteres
singulares. Assim, resultam de uma abstração as idéias de virtude, de bem,
de triângulo, de mesa, de homem etc, que excluem a consideração de todos os
caracteres pelos quais a virtude é tal virtude (humildade, caridade), o bem é
tal bem (esta pêra para quem tem sede), o triângulo, tal triângulo (este triângulo
isósceles inscrito na mesa) etc.
c) A generalização. A idéia abstrata pode
ser imediata pensada como aplicável a todos os objetos da mesma espécie. (A idéia
de triângulo convém a todos os triângulos, isósceles, escalenos etc., a
idéia de homem, a todos os homens, pretos, brancos, João, Tiago etc). Ela é,
então, ao mesmo tempo que abstrata e, enquanto abstrata, geral. Dá-se-lhe,
muitas vezes, deste ponto-de-vista, o nome de conceito.
É claro que a abstração pode
ser mais, ou menos, geral. A idéia de mesa redonda, por exemplo, é menos geral
do que a de mesa conceito de suporte é mais geral do que o de mesa (a mesa é uma
espécie do gênero suporte); a idéia de homem é menos geral que -de ser vivo.
Podemos assim elevar-nos pouco a pouco a uma a: — tração cada vez mais
completa, que nos conduz à idéia mais universal de todas, que é a idéia do
ser, ou idéia do que é, ou existe (de alguma forma que seja).
2.
Abstração total e abstração
formal. — Distingue-se abstração total (ou extensiva), que consiste em
considerar o gênero separado da espécie ou a espécie separada do indivíduo (pai
exemplo, o animal separado do homem ou que qualquer outra espécie de animal, —
o homem separado de Pedro, Tiago etc), — e a abstração formal (ou
intensiva), que consiste em considerar a essência (ou a forma) separada
do sujeito no qual ela se realiza (por exemplo, a humanidade, a brancura,
separada dos sujeitos em que existem, ou a justiça separada dos atos de
justiça). A abstração formal compreende por sua vez vários níveis ou graus.
3.
Os graus de abstração formal. —Aristóteles distinguiu três graus
progressivos de abstração formal, que dão três níveis de inteligibilidade
crescente. Com efeito, num objeto material a inteligência pode abstrair de
início as qualidades sensíveis, considerando-se separadas de suas notas
singulares: é o grau de abstração próprio às ciências da natureza, que têm por
objeto, por exemplo, o calor, o peso, a força, a velocidade, a vida etc; — depois,
a quantidade, como tal, sendo considerada independentemente das
qualidades sensíveis que nela influem: é o grau de abstração próprio à
Matemática, que tem por objeto os números e as figuras; — enfim, o próprio
ser, considerado independentemente de qualquer matéria, unicamente como
ser. Este terceiro grau de abstração é o grau próprio à Metafísica.
Segue-se do que precede que os
conceitos são cada vez menos determinados à medida que nos elevamos na
abstração. A idéia de ser é a menos determinada de todas, uma vez que ela
convém a tudo o que é ou pode ser. Inversamente, o indivíduo (Pedro, este
cavalo, esta mesa) é a realidade mais determinada.
4. Os primeiros
princípios. — A idéia de ser, que resulta da primeira visão da inteligência
sobre as coisas, dá imediatamente origem a juízos que se chamam primeiros
princípios, que só fazem exprimir as leis do ser, intuitivamente apreendidas
no ser. São estes: o princípio de identidade; o que é, é, ou ainda: o
ser é idêntico a si mesmo, — e o princípio de contradição: a mesma
coisa não pode, ao mesmo tempo e na mesma circunstância, ser e não ser.
Cabe citar agora, entre
as noções que nos dá intuitivamente, ainda que confusamente, o primeiro contato
do espírito com as coisas, as noções de causa, ou
"aquilo-que-produz-alguma coisa", — de substância, ou
"aquilo-que-subsiste na transformação", de fim, ou
"aquilo por que uma coisa é feita". — Como a idéia de ser, estas
noções dão origem a princípios universais: princípios de causalidade, de substância,
de finalidade.
A questão do valor destas
noções e destes princípios será tratada na Crítica do conhecimento.
142 1. O problema dos
universais. — Este problema, que é um problema crítico, tem também um aspecto
psicológico. Sob este aspecto, convém falar dele aqui.
Que valem as idéias gerais, ou
universais? O que suscita esta
questão, é que nada parece corresponder aos universais, no real, onde não
existe mesa em geral, mas somente tais mesas determinadas, nem homem em geral,
mas apenas tais homens singulares.
a) O nominalismo. Uns {nominalistas) asseguram que os universais não existem nem no real
nem no espírito e que são puros nomes (nomina). — Esta opinião vai
contra a evidência, uma vez que pensamos realmente alguma coisa através de
idéias gerais.
b) O conceptualisrao. Outros (conceptualistas) concedem que à
idéia geral corresponde certamente uma realidade no espírito, mas não fora do
espírito. É esta operação que Aristóteles
chamava "indução".
c) O realismo moderado. A opinião conceptualista não pode ser admitida em sua
forma absoluta, porque vemos claramente que aos universais corresponde
alguma coisa no real: há no real alguma coisa que responde à idéia de
homem, de virtude, de bem etc. Apenas, esta qualquer coisa que corresponde à
idéia geral não existi no real da mesma maneira que no espírito, isto é, sob
forma universal (como o acreditaram falsamente os Realistas ou Reais), :mas sob forma singular e individual. Eis porque se diz que os universais
são abstraídos dos singulares. Esta última opinião é muitas vezes designada
sob o nome de realismo moderado.
2. Intelecto
agente e intelecto passivo.
a) Exclusão do
inatismo e do ontologismo. O realismo moderado exclui a um tempo o inatismo, segundo o qual as idéias existiriam na inteligência, seja em ato, seja
(como o pensava Descartes) virtualmente,
antes de qualquer atividade do espírito, como uma espécie de tesouro
inteligível do qual a inteligência só teria de lançar mão — e o ontologismo (defendido
por Malebranche e ROSMini), que professa que a
inteligência apreende suas idéias, não nas coisas, mas na essência divina
(teoria da visão em Deus).
Nem uma nem outra destas
doutrinas pode ser admitida. A experiência prova que nós não temos idéias
inatas, nem em ato, quer dizer, plenamente formadas, uma vez que temos
consciência de elaborar pouco a pouco nossas idéias por meio da experiência, —
nem virtualmente, uma vez que a vontade não é suficiente para adquiri-las, como
ocorreria se estivessem virtualmente à disposição da inteligência.
Quanto ao ontologismo,
era mister que víssemos a Deus, uma vez que as idéias em Deus nada mais são que
o próprio Deus. Ora, é evidente que nós não vemos a Deus e que
conhecemos só muito imperfeitamente sua natureza, como o mostraremos na
Teodicéia, apenas baseados nos efeitos de seu poder.
b) A condição radical da formação
das idéias. Esta condição é realizada
pelo concurso de uma faculdade que Santo
Tomás, seguindo Aristóteles, designou
sob o nome de intelecto agente (ou ativo). Com efeito, as imagens
formadas nos sentidos pelo conhecimento sensível não são capazes de agir por
si mesmas na inteligência, que é completamente imaterial, porque permanecem
submetidas às condições da matéria, enquanto representam objetos materiais
determinados. É o que se exprime ao dizer que elas não são inteligíveis em
ato, quer dizer, cognoscíveis como tais pela inteligência. Para
tornarem-se inteligíveis em ato, é necessário que as imagens sejam elevadas ao
nível de {materialidade da inteligência, e, por conseguinte, despojadas de suas
condições sensíveis, singulares e concretas. Esta operação se realiza por
uma espécie de iluminação das imagens sensíveis, que é a função própria do
intelecto agente, e que constitui a abstração intelectual.
c) O conhecimento intelectual
propriamente dito. O intelecto agente
é, assim, uma faculdade ativa, que age como condição de intelecção. A
inteligência propriamente dita (faculdade passiva) recebe o nome de intelecto
passivo, enquanto recebe as espécies inteligíveis formadas pelo
exercício do intelecto agente. Estas espécies inteligíveis fecundam, por
assim dizer, a inteligência, que pode desde então produzir o ato de
intelecção ou ato de conhecimento intelectual.
ART. IV. JUÍZO, RACIOCÍNIO E CRENÇA
143 1. Natureza do juízo.
a) Originalidade do
juízo. Dissemos que o juízo realiza uma síntese. Ora, esta síntese não
resulta, como afirmou Condillac, da
presença de duas sensações simultâneas à consciência, nem, como quiseram os
associacionistas (HUME, Stuart Mill), da
simples associação de realidades que têm entre si uma relação de contigüidade.
Estas concepções pecam
por fazer do juízo um processo de passividade, ao passo que o juízo
resulta, ao contrário, da aplicação do espírito ao real para
apreender e afirmar as relações das coisas entre si.
b) O juízo, ato de perceber
uma relação. É verdade que muitos juízos se formulam espontaneamente. Mas
isto pouco interessa, porque o que caracteriza o juízo é o ato de afirmar
uma relação entre idéias, ato que não se encontra, nem na justaposição
mecânica das sensações, nem na associação espontânea de imagens ou de idéias.
2. Natureza do
raciocínio. — Os filósofos que pretenderam reduzir o juízo a uma associação
mecânica de idéias formularam a mesma tese a propósito do raciocínio. Mas esta
teoria é igualmente insustentável, por ser o raciocínio autêntico í> desenvolvimento da atividade
intelectual, e obra construtiva do espírito.
3. A crença.
a) Noção. Julgar
é afirmar uma relação, aderir ativamente a uma relação percebida. É
esta adesão consciente que designamos pelo nome de crença.
Este sentido técnico
da palavra crença deve ser distinguido dos outros sentidos que são dados
freqüentemente à mesma palavra. É empregado para designar uma simples
opinião provável (creio que o tempo estará bom amanhã), — um juízo aplicado
a verdades certas, mas não suscetíveis de prova experimental
(domínio das crenças morais: crê-se na justiça, no progresso, no primado do
espiritual etc.) — enfim, as verdades que repousam no testemunho, seja
humano (verdades históricas), seja divino (crenças religiosas).
b) Papel da
inteligência e da vontade. É um fato que a crença não depende da,
inteligência apenas, ao contrário do que afirma Spinosa, salvo nos casos em que a evidência é absoluta (caso
do princípio de identidade, por exemplo), porque, nestes casos, ver e aderir ao
objeto seriam uma só coisa. De outro lado, a afirmação ou a negação são
geralmente condicionadas, em maior ou menor quantidade, por influências que
provêm da sensibilidade ou da vontade, e que se exercem sobre a inteligência.
A crença não depende, tampouco, apenas da vontade, ao contrário do que afirma Descartes : a prova disso está em que invocamos sempre, para
justificar nossas crenças, não nossa pura vontade, o que seria risível, mas
motivos de ordem intelectual ou sensível.
A crença depende ao
mesmo tempo da inteligência e da vontade, mas de modos diversos. O papel principal e direto pertence à inteligência,
que percebe a relação e lhe dá seu assentimento. Ã vontade, pertence um papel
indireto: é ela que mantém e desvia a atenção, que aplica a inteligência ao
objeto, e repele as distrações, afasta os preconceitos e as paixões.
Entretanto, professam-se tais ou tais doutrinas por não se ter jamais querido aplicar a inteligência ao exame das razões contrárias a estas doutrinas,
ou, ainda, porque elas encontram a cumplicidade de nossos sentimentos e de
nossos interesses. Os sentimentos podem exercer uma tal influência sobre o
pensamento, que eles organizam o raciocínio, não segundo as exigências
lógicas do objeto, mas segundo a conclusão escolhida inicialmente. Quantos
homens dão por demonstrado o que desejam! A inteligência, neste caso, abdica
de sua prerrogativa essencial.
Art. V. A EDUCAÇÃO INTELECTUAL
144 "Mais vale
uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia", dizia Montaigne, a propósito da memória. É
que o fim da educação intelectual é, antes de tudo, a formação do juízo:
aprender a ver bem as coisas e a bem apreender suas verdadeiras relações, eis o
que convém realizar. E isto é tanto mais importante quando a educação
intelectual se subordina à educação moral como um meio a um fim. Com
efeito, não devemos separar nossas diversas atividades em compartimentos
estanques; formar o espírito é uma maneira de formar a vontade, afinando a
consciência, dando-lhe mais esclarecimentos sobre seus deveres, alargando seu
horizonte.
A. A concepção das idéias.
A idéia é abstrata e
geral. Já dissemos quanto os espíritos jovens têm dificuldade em assimilar o
que é abstrato. Devemos agora voltar a este ponto, para precisá-lo.
1. A abstração.
a) Um bom método de
formação intelectual quer que partamos, em tudo, do concreto: a criança
experimenta uma verdadeira antipatia pela abstração, porque não a compreende e
só representa para ela palavras mais ou menos vazias de sentido.
b) As noções gerais, fim da
formação do espírito. Faz-se mister, contudo, sair do concreto e do
singular, pois o que a educação intelectual nos pretende dar são as noções
gerais, portanto, necessariamente abstratas. As lições de coisas devem
encaminhar as lições de idéias; do contrário serviriam de quase nada para a
cultura intelectual. Chegar-se-á até aí progressivamente e tomando o cuidado
de sempre manter contato com os fatos, as observações particulares, nas quais
se apóiam as idéias abstratas. Pouco a pouco, chegar-se-á a habituar-se a
pensar por idéias, em vez de pensar por imagens, e, pois, a grupar seus
conhecimentos de maneira lógica.
2. A generalização.
— A criança generaliza cora uma extrema facilidade, mas, muitas vezes,
atabalhoadamente, apóiando-se nas semelhanças mais longínquas e mais
fantasistas. Já para a criança pequena, todos os homens são "papás".
Numa idade mais avançada, esse instinto generalizador se torna mais circunspeto,
mas permanece facilmente prematuro e arbitrário, sem que a experiência seja
bem sucedida em corrigir este defeito.
As causas destas
generalizações indiscretas, na criança, iremos encontrá-las na deficiência de
vocabulário, na falta de reflexão e de conhecimentos precisos. No adulto, a
causa é a irreflexão. Por isto é necessário aprender a refletir, coisa
menos comum e menos fácil do que se pensa, porque supõe que se resista, graças a
um esforço mais ou menos árduo, à tendência ao menor esforço e à precipitação,
e, sobretudo, que nos premunamos cuidadosamente contra a tendência a reduzir as
coisas familiares para nós aos clichês feitos, que nos são habituais. O
pensamento não se acomoda de forma alguma à confecção! Na ordem prática, que
diz respeito às coisas singulares, é importante estar atento às diferenças das
coisas e das pessoas, e não existe pior fonte de desinteresse do que substituir
as realidades da vida por esquemas que se per imitem uns aos outros.
3. O
psitacismo. — As palavras carregam idéias, e, como dissemos, lhe dão rigidez e
estabilidade. São indispensáveis. Mas
têm os seus perigos: perigos de que todos nós somos mais ou menos vítimas, ao
falar sem pensar, usando fórmulas feitas, cujo sentido exato nos escapa, e
palavras ressonantes: Liberdade, Justiça, Tolerância etc, que dissimulam
idéias bastante vagas. Jamais se desconfiará suficientemente desta tendência
a contentar-se com palavras, sem ir às idéias. Devemos, por isso, estar
prevenidos contra a propensão natural ao psitacismo, aplicando-nos em definir
o sentido das palavras que empregamos para evitar a utilização de palavras
cujo sentido ignoramos, para afastar as palavras sonoras que só escondem noções
confusas e que não são apenas indício de um pensamento pobre e vago.
B. O juízo.
145 Formar o juízo:
eis o essencial da educação intelectual.
1. Deve-se cultivar o juízo? — Pareceu por vezes
que isto estava sendo contestado pela afirmação de que "o bom senso é o
que há no mundo de mais bem compartilhado" (Descartes), e um mora lista diz que "se todo mundo se
lastima de sua memória, ninguém lamenta o seu juízo". Este último
argumento não tem valor, evidentemente, porque o amor-próprio seria suficiente
para dissuadir-nos de proclamar nossa deficiência de julgamento, e, por outro
lado, aqueles que dele mais carecem são sempre os que se crêem melhor
aquinhoados.
A verdade é que os homens
são muito desigualmente dotados quanto ao juízo, enquanto que alguns parecem
ter o juízo naturalmente falso. Isto significa que cultivar o juízo é uma
necessidade. Mas, como fazê-lo?
2. Como cultivar o juízo?
a) O espírito de
discernimento. Formar o juízo vem a ser, em suma, formar o que se chama o
"espírito crítico" ou o espírito de discernimento, a fim de
chegar a substituir por crenças espontâneas e irrefletidas crenças apóiadas em
razões claras e fortes. A confiança nos é natural, ei a disposição, tão
poderosa na criança em crer nas afirmações de outrem ou em adotar passivamente
as maneiras de pensar e de sentir da sociedade em que vivemos, resiste na maior
parte dos homens às desilusões mais graves. A credulidade nos é essencial, uma
vez que somos seres sociais. Mas pode acarretar perigos, e deve ser
constantemente temperada pelo espírito crítico, que cumpre, portanto, formar ou
afinar.
b) Os instrumentos
do espírito crítico. A bem dizer, não há método especial para formar o
espírito crítico. Tudo, na educação, deve contribuir para isto: o estudo da
gramática e das línguas, o das letras e das ciências, e, antes de tudo, o estudo
da Filosofia. Tudo nos deve servir para adquirir o gosto da prudência na
afirmação, da precisão nas idéias, da modéstia, da finura e penetração,
qualidades estas que determinam a retidão do juízo.
A vida social será também de grande auxílio. Se ela nos impõe, sob
certos aspectos, um conformismo perigoso para o espírito crítico, força, sob
outros, uma perpétua confrontação de nossos pensamentos e de nossos
sentimentos com os de outrem e, por isso mesmo, cria-nos a necessidade de apóiar
nossas asserções e nossas crenças em razões precisas e claras, para convencer
aos outros ou responder a suas dificuldades. Daí resulta, para os espíritos
ativos, uma constante atualização de seus juízos espontâneos, um enriquecimento
e um aprofundamento de suas crenças refletidas.
146 C. O RACIOCÍNIO
1. Raciocínio e razão — O raciocínio não é a razão, e existem muitos
raciocínios que são um desafio à razão, sem deixar de ser, em si mesmos, de
uma lógica inatacável. Os loucos, como se sabe, são muitas vezes maravilhosos
lógicos: o mal está em que as premissas de seus raciocínios são absurdas.
Muitos homens se lhes assemelham, mais ou
menos, quando raciocinam sobre noções incompletamente elaboradas, sem nenhum
cuidado de relacionar à experiência suas imprudentes deduções. Os utopistas
como Rousseau são desta espécie,
e muitos espíritos revolucionários não foram, se assim se pode dizer, senão
maníacos do raciocínio vazio ou do contra-senso. Na vida corrente, nada é mais
freqüente do que esses raciocinadores improvisados.
2. Espírito de
geometria e espírito de sutileza. —
O raciocínio não poderá, portanto, valer absolutamente por si mesmo. A aptidão lógica, o rigor no encadeamento das idéias são
qualidades preciosas, desde que acompanhados pelo bom-senso, pela atenção à
experiência, previsão das exceções, vivo sentimento da complexidade do real, que
impedem de considerar as coisas da vida com a rigidez própria da matemática, É
o que PASCAL queria dizer, quando aconselhava que estivessem sempre associados
o espírito de geometria e o espírito de sutileza.
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